Pode uma pequena hóstia com poucos gramas, recheada de doce de gemas de ovos, casar com a história da exploração da cana-de-açúcar na Madeira, a vida num mosteiro do século XV e a extinção das ordens religiosas? A pergunta é extensa e a resposta, um “sim”, tem muito a contar. Tudo o que encerra história, algum segredo, o saber fazer e gestos perpetuados, não pode ter uma resposta curta. No caso dos Ovos Moles de Aveiro não a tem definitivamente.

O facto de este ser o primeiro doce a nível europeu a receber Indicação Geográfica Protegida comprova a importância para a história e economia locais desta especialidade. Ovos Moles de Aveiro, os genuínos, só mesmo em alguns concelhos deste distrito da região Centro. Na feição este doce não ilude a matriz cultural do território. Temos as barricas de hóstia, com figuras marítimas pintadas à mão; temos os ovos associados no passado à vida das instituições religiosas do território; finalmente as pipas, construídas em choupo, madeira abundante no lugar.

Uma jornada pela história de um produto que remonta ao século XV e que continua a ser perpetuado em casas como a Oficina do Doce, paredes meias com a azáfama da Ria. Orientados pela Laura, responsável pela Oficina, somos convidados a entrar na cozinha e a presenciar in loco gestos repetidos à exaustão. “Os ovos moles precisam de tempo e carinho para a produção”, adianta Laura, “um processo que leva três dias desde a preparação até ao embalamento”.

Fomos à fábrica e descobrimos os segredos dos Ovos Moles de Aveiro

Antes um pouco de história. Sem os encontros que esta produz não estaríamos neste século XXI a degustar um produto que remonta à introdução da cana-de-açúcar na Madeira. Uma parte deste açúcar rumava ao continente e, ai, por esmola régia, acabava dentro dos mosteiros e conventos. Entre estas instituições estava o Mosteiro de Jesus de Aveiro (século XV) que dava uso medicinal ao doce açúcar. “Era uma fonte de energia para doentes subnutridos”, salienta Laura.

Açúcar que acaba por ser utilizado com evidente mais-valia na doçaria. Entra aqui outro precioso ingrediente das gulodices lusas, as gemas de ovos. Bom uso para aquela parte do alimento cujo destino inicial era o lixo. As preciosas claras eram, então, utilizadas para engomar os hábitos das freiras. De engomadeiras a cozinheiras doceiras, as freiras passaram a capitalizar as gemas e com elas, com o açúcar e uma pontinha de água nasciam os Ovos-Moles de Aveiro. Acresce que o invólucro do doce não seria estranho à vida monacal. A hóstia de sabor neutro, associada à liturgia, protege e evidencia o sabor do doce.

Fomos à fábrica e descobrimos os segredos dos Ovos Moles de Aveiro

Diz-nos Laura, enquanto nos apresenta um recipiente cheio de ovos moles, “temos de pensar que estávamos numa época em que a conservação dos alimentos por longos períodos obrigava a muito engenho e os ovos moles eram excelentes para prolongar o tempo de vida das gemas”.

Com a extinção das ordens religiosas, no século XIX, a receita dos Ovos Moles de Aveiro extravasa as paredes do mosteiro. Dona Odília Soares, empregada da instituição, conhecia a receita e confecionava os ovos moles. Estava aberto o caminho para secularizar esta especialidade.

 

Mãos na massa

Aqui, sobre a bancada da Oficina do Doce, assistimos à fase final de um processo que se iniciou no dia anterior e em grande escala. Oitenta ovos moles carecem de ½ litro de água, um quilo de gemas liquidas pasteurizadas e outro tanto de açúcar. Acrescenta Laura, “para fazermos os ovos moles, misturamos a água com o açúcar até formar ponto de espadana, aos 117 ºC. Deixa-se arrefecer até aos 110ºC para, então, juntar as gemas e cozer”. Importante, “a massa não dever ser mexida em círculo, mas sim em movimentos de ida e vinda”.

Entretanto já temos as hóstias preparadas para receber os ovos. Por enquanto assemelham-se a folhas alvas, sem as formas que as caracterizam no final. São 22 figuras, detalhadas no caderno de especificações desta especialidade regional. Todos as conhecemos: o peixe, a navalheira, a concha, o búzio, a barrica, o berbigão, a noz ou a castanha. Na Oficina do Doce há 11 figuras em hóstia a uso. “Uma massa que se produz a partir de farinha de trigo, água e um fio de azeite”.

Assim se faz a quinta-essência da doçaria de Aveiro, os Ovos Moles

De um lado os ovos moles, do outro as folhas de hóstia. Está na hora de promover um casamento que dura há séculos. Laura socorre-se de um molde (com duas metades gémeas) onde estão gravadas as figuras marinhas. Com um saco de pasteleiro, os pares de moldes são preenchidos – “cuidado para não extravasar”, avisa a doceira. Os moldes já unidos vão à prensa, semelhante a um pesado livro que se fecha.

Estão unidas as duas metades. Abre-se o molde e com auxílio de uma tesoura, recortam-se os excessos de hóstia. Sobre a mão repousa um Ovo Mole de Aveiro acabado de nascer. “Uma barrica das pequenas tem 69 calorias, tantas como um iogurte magro”, avança Laura. Agora, esta peça da nossa doçaria descansará mais um dia, antes de ser comercializada. “Na época alta chegamos a produzir mais de uma tonelada de ovos moles”, confidência a nossa interlocutora. O mercado da saudade também é importante para o negócio.

Oficina do Doce
Rua João Mendonça, nº 23, Letra JKL
Tel. 234 098 340
Email: geral@oficinadodoce.com

O formato comercial que não se restringe apenas às barricas de hóstia, também encontramos o doce em miniaturas de barricas de madeira de choupo e em porcelana. Uma vez mais dois traços da identidade da região. A barrica para transporte do moliço, uma alga utilizada como fertilizante agrícola; a porcelana ligada à indústria local.

Conhecedora de todos os segredos dos ovos moles, Laura deixa um conselho: “não os guarde dentro do frigorífico, pois o creme vai cristalizar e a hóstia amolece. Guarde-os na despensa à temperatura ambiente”. Assim se conserva alguns dias.

 

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