Não resisto começar esta conversa com um exercício de reflexão em torno do nome do seu blogue (e também do livro “Flagrante Delícia”). É a própria Leonor que nos dá as definições subjacentes ao nome escolhido: “ardente”, “intenso”, “voluptuoso”. De que forma se materializam estes adjetivos nas suas criações?

A comida não é apenas uma necessidade mas, é também emoção e prazer. Procuro que a sobremesa seja algo para além do simplesmente doce, que provoque o corpo e inquiete a alma. A comida são sentidos, são memórias, é cultura, indivíduo e sociedade e tento pensá-la em todas as suas dimensões para que a experiência seja o mais completa possível. Apesar de tudo, o processo é muito intuitivo e prende-se mais com uma filosofia do que com o objecto em si.

Ao lermos o currículo académico da Leonor “tropeçamos” na frequência de um curso de direito antes de ingressar no mundo da pastelaria e da alta cozinha. Como se dá esta mudança?

O facto de o meu caminho ter passado por direito foi um erro desde o início porque nunca me identifiquei com o curso. Sempre gostei imenso de cozinhar mas, seguir cozinha era algo completamente impensável. Só comecei a considerar essa hipótese quando me apercebi que faltava às aulas para ficar a cozinhar e que adormecia a ler livros de receitas.

Ainda assim, demorei algum tempo até ganhar coragem para dizer aos meus pais que queria estudar cozinha e penso que só o consegui assumir porque tive o apoio do Miguel. A partir daí foi tudo muito repentino e em dois meses estava em Palma de Maiorca para começar o curso.

O que se sente quando um jornal como o “The New York Times” classifica como “incrível” o seu blogue?

Quando descobri que o New York Times tinha referido o meu blogue (só descobri alguns dias depois através do incrível número de visitas que me chegavam a partir daí) fiquei incrédula. É fantástico ver o meu trabalho reconhecido e não posso sentir-me mais orgulhosa e feliz.

Qual é a receita para despertar as atenções do outro lado do Atlântico?

Acho que a receita é simples...fazer aquilo que gostamos a todo o custo. Sacrifícios, empenho, dedicação e amor. Fazer todos os dias e tentar fazer sempre melhor.

A sua pastelaria tem muita técnica (digamos ciência), mas também é arte, inspiração e apresentação cénica. Onde vai a Leonor buscar essa inspiração para contar as suas “histórias” em forma de doces?

As minhas histórias surgem de formas diferentes e, muitas vezes, inesperadas.

Estou constantemente a sonhar e penso que a minha inspiração é consequência natural disso. De resto, não sei explicar exactamente como é que tudo acontece ou o porquê de apresentar uma história de determinada forma. Limito-me a ser igual a mim mesma, que foi o que sempre fiz e é como se tudo surgisse naturalmente.

Há algum ingrediente com o qual tenha uma relação de particular afinidade?

Para mim a manteiga é o ingrediente de excelência na boa pastelaria e não abdico da manteiga nas minhas sobremesas.

Pelo contrário: que, ou quais, ingrediente(s) dão mais luta?

O chocolate e o açúcar são os ingredientes mais difícies de trabalhar pela extremo rigor que exigem no controlo das temperaturas e na sua manipulação.

Agora o livro: “Flagrante Delícia” foi distinguido com o prémio de melhor design de gastronomia. Um casamento feliz entre as suas criações e as fotografias de Miguel Coelho. Quais são os maiores desafios quando nos propomos fotografar “com alma” um doce?

Fotografar um doce exige um trabalho preciso que consiste em conjugar a visão do autor com a visão do fotógrafo sem nunca deixar de pensar na visão do público. Esse é, sem dúvida, o maior desafio.

 

A imagem é um factor extremamente importante e decisivo para vender o produto. O mesmo doce pode transmitir sentimentos completamente diferentes dependendo da luz, do ponto de vista e do cenário e aquilo que procuramos sempre é que a imagem seja fiel à nossa intenção e que o público interprete exactamente aquilo que queremos transmitir.

Em seu entender as sobremesas portuguesas são bem tratadas a nível da restauração? As sobremesas portuguesas, salvo algumas excepções, não têm o mesmo nível da comida. Se entrarmos no universo das pastelarias o caso torna-se muito mais grave porque não há nenhuma que não funcione à base de pré-fabricados.

Infelizmente, nos dias de hoje, é muito difícil encontrar boa pastelaria porque é impossível competir com o preço de custo de um pré-preparado, com o seu tempo de preparação ou tempo de duração na prateleira.

Por outro lado, os pré-preparados permitem contratar pessoas com baixas qualificações (o que significa salários mais baixos) porque não exigem um grande domínio técnico ou capacidade criativa. O resultado é um produto sem qualidade, mas que tem um lucro enorme e que consegue o preço porque o público está disposto a pagar.

O facto de haver uma má formação de base é outro factor que não ajuda em nada a pastelaria porque se tratam de cursos profissionais que não procuram desenvolver lideres e pessoas criativas mas, que se limitam a preparar pessoas para um trabalho mecânico e pouco estimulante. Se juntarmos a isso o facto de haver pouca partilha nesta área e poucas pessoas dispostas a ensinar, é muito difícil que se consiga evoluir (recebo constantemente emails de pessoas que acabaram os seus cursos e se sentem desiludidas porque não conseguem arranjar emprego sem ser a trabalhar com pré-fabricados ou, nem nesses empregos conseguem ser aceites porque lhes dizem que têm demasiada formação para tal).

Apesar de tudo, penso que este cenário está agora a começar a mudar em Portugal porque cada vez há mais pessoas qualificadas e com vontade de criar projectos próprios e que se diferenciem dos outros e, ao mesmo tempo, há um público que começa a estar cada vez mais informado sobre aquilo que é uma boa alimentação e a procurar novas soluções que sejam mais honestas e saudáveis, estando disposto a pagar o seu preço justo.

Do lado da procura: considera que o consumidor português é ainda pouco exigente quando falamos de pastelaria/doçaria?

Há um tipo de consumidor com um nível cultural mais elevado e que já se preocupa com a alimentação, nem que seja porque ela esta intimamente ligada à saúde.

Por outro lado, a maior parte dos consumidores não têm a noção completa daquilo que estão a comer e nem lêem os rótulos das embalagens (rótulos esses que sabemos não estarem completamente regulamentados). Limitam-se a seguir algumas tendências e, por exemplo, compram tudo o que é biológico no supermercado mas, ao mesmo tempo, compram bolos de pastelaria com listas infinitas de corantes, conservantes, melhorantes, etc.

A maior parte dos consumidores não estão habituados a comer bem e não distinguem um sucedâneo de um chocolate ou os aromas artificiais dos naturais. No geral, no meio de tanta informação há uma enorme desinformação sobre a comida. A exigência aumenta com uma boa educação e cultura alimentares.

Portugal tem uma apreciável tradição doceira, nomeadamente a nível conventual. Na sua opinião estamos perante um produto “exportável”?

O grande problema da exportação de alguns produtos alimentares é que implica o aumento do seu prazo de validade o que, na maior parte das vezes, é conseguido com aditivos alimentares que comprometem a sua qualidade.

Penso que a exportação se torna interessante se for feita segundo os mais exigentes padrões de qualidade o que, na minha opinião, se prende não só com o próprio produto mas, com a forma como está embalado. A imagem e a qualidade devem ser indissociáveis, e se não acredito num produto banal com uma embalagem bonita, também não acredito num bom produto apresentado de uma forma banal.

No fundo, só acredito numa exportação “de luxo”. Se falamos em exportar produtos feitos a partir de pré-preparados então, penso que será melhor não o fazer e não vulgarizar aquilo que é a nossa identidade.

Ainda nos doces tradicionais: o que pensa a Leonor da banalização do termo “tradicional” apenas com o fito comercial? Não estaremos, aqui, a colocar em risco a imagem e a integridade dos produtos realmente tradicionais e arreigados às memórias e ao saber-fazer de uma determinada região?

Eu não concordo absolutamente nada com a banalização do termo “tradicional” e penso que determinadas classificações deveriam ser exclusivas a produtos merecedores de tal (quer pelos ingredientes que levam, quer pelo método como são elaborados). Se juntarmos as classificações erradas ou enganadoras com a falta de cultura e educação gastronómica das pessoas, o problema toma proporções gigantescas e difíceis de contornar. Se não for estabelecido um padrão de qualidade, qualquer mix pode ser vendido como “pão-de-ló de Alfeizerão, pão de rala, castanhas de ovos ou toucinho do céu” e o próprio consumidor não consegue ter garantias sobre a autenticidade do produto.

Em termos internacionais qual é para si a pastelaria de referência e porquê?

A resposta mais óbvia seria referir a pastelaria francesa como base de toda a pastelaria mas, actualmente, não considero que haja uma pastelaria de referência, mas pasteleiros de referência.

A pastelaria, no geral, tornou-se descaracterizada e são alguns chefes, espalhados um pouco por todo o mundo, que a elevam a um patamar superior.

Depois do blogue, do livro, o que podemos esperar do trabalho da Leonor para o futuro?

Aquilo que eu mais quero é poder contribuir de alguma forma para a evolução da pastelaria. Para já, quero imenso abrir um espaço meu onde possa investigar, criar e pôr em prática as minhas sobremesas e tentar mostrar que é possível seguir novos caminhos onde a pastelaria possa ser original e autêntica.

Jorge Andrade Fotos: Leonor de Sousa Bastos