Num tempo digital em que a mera aproximação a uma resma de papel acomete de irritação cutânea os acérrimos defensores do acesso à cultura em formato ecrã, vamos inaugurar este artigo sobre um novo restaurante em Lisboa com uma viagem de 11 páginas pelo sempre muito fiel “Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa”. E fazemo-lo ao encontro de singela palavra de apenas quatro letras mas, espanto nosso, com perto de umas 400 entradas no dito tomo.
Vamos neste périplo à cata de vocábulo, ter como destino a palavra “Erva”. Aqui está ela, na página 3419 (tanto já percorrido e só vamos no “E”) e, para espanto do viajante, perceber a multiplicidade de designações. Este é, de facto, um mundo povoado de Erva, de suas espécies e subespécies. Todas elas sintetizadas em termos simples, imediatos que se colam ao ouvido e já não soltam. “Erva, planta pequena, anual e vivaz” é como se lê no nosso Houasiss da língua de Camões.
Ora, serve como uma luva o pretexto usado para dar entrada ao artigo, na forma e conteúdo ao novo restaurante lisboeta, fresquinho na sua curta vida, mas maduro e vivaz na forma como quer fazer (e já faz) a abordagem à sua cozinha. Erva, casa situada na Avenida Columbano Bordalo Pinheiro, faz neste contexto, justiça à definição do termo porque, como nos explica o homem que lidera a cozinha, o jovem chefe Carlos Gonçalves, “quer ir à essência, ao sabor natural dos alimentos, à diversidade dos produtos, ao encontro de quem localmente os trabalha, promover uma troca justa e voltar a olhar para o sazonal”.
Poderia ser só conversa, mas percebe-se a genuinidade no empenho sereno das palavras deste homem de 36 anos, lisboeta de nascença, mas que cresceu mais a sul, noutras margens do Tejo, no Moita e que aos “sete ou oito anos já fazia comida em casa. Por volta dos nove anos, a minha mãe quando saía, deixava-me recado sobre como preparar as refeições e eu fazia-as”, conta-nos. A família de Carlos tinha terrenos próximos das salinas e o miúdo aí ia apanhar camarão. Um talento para a cozinha que Carlos Gonçalves também expressava nos doces. “Confecionava e vendia bolos no verão. Não segui pastelaria porque não gostava de pesar ingredientes”, sublinha as palavras com um sorriso.
Está então como “peixe na água” o chefe de cozinha neste Erva. Isto porque não obstante ter a sua cartilha, a carta que construiu nos últimos cinco meses, assumidamente de feição portuguesa, vê-se com liberdade e margem de ação. A começar no contacto com os fornecedores, alguns deles pequenos produtores a operar localmente. Da teoria para o prato, serve como bom exemplo, a saladinha que nos chega à mesa a acompanhar uma Pá de Cordeiro e um puré de batata com dois queijos (“polémico” como afirma Carlos Gonçalves). Dentro da saladeira há um mundo de sabor traduzido em pouco aparato, como aliás quer ser a cozinha do chefe que trabalhou com o mestre Fausto Airoldi, homem “com uma visão fora do normal e que me entregou um livro essencial, o de Maria de Lourdes Modesto”. Obra que para o chefe deste Erva tornou-se indissociável da sua cozinha.
Não nos afastando da salada, a dizer que tudo o que nela provamos viaja desde uma aldeia, Runa, da nossa região Oeste onde um pequeno produtor dá vida a centenas de espécies de tomate, dezenas de aromáticas e vegetais. Como definir o sabor de um tomate cereja que cresceu com amor? Não se define, deleitamo-nos.
Serve ainda este prato de cordeiro como mote para outra das abordagens que Carlos Gonçalves faz neste seu Erva, onde a cozinha está no próprio espaço do restaurante, frente ao comensal. Tempo. Melhor explicado, cozinha com tempo. “O cordeiro esteve numa marinada feita à moda Beirã [mais uma vez o contributo de Maria de Lourdes Modesto] e assou a muito baixa temperatura durante horas. Finalmente foi ao forno de carvão”, explica-nos o chefe. O objetivo é termos à mesa uma peça de carne que dispensa faca no desmanche. Fazemo-lo com uma colher.
Um vagar que não começa à mesa, mas também no crescimento dos ingredientes que chegam a uma carta contida nas referências. “Temos carnes maturadas, de raça bovina minhota. São animais que pastam nos lameiros do Norte do país com tempo para crescerem. Têm uma carne excelente, com interstícios de gordura que lhe vão potenciar o sabor”.
Vê-se por estes dois exemplos do elenco do Erva que não estamos num restaurante vegetariano. Erva, no conceito e na abordagem como vimos na abertura ao artigo. Na carta temos o peixe da lota de Peniche, por exemplo, a Corvina com um arroz de lingueirão apetitoso temperado com o “sal” que cresce nas dunas do litoral português, a salicórnia, erva durante muito tempo esquecida, agora recuperada para as lides culinárias nacionais. Outra das motivações de Carlos, “reencontrar os produtos portugueses. Estamos a incentivar a produção nacional e a pagar ao pequeno produtor o preço justo”.
Um entusiasmo pelo que é nosso que está a levar este profissional com 18 anos de carreira a trabalhar produtos como o grão preto, o trigo barbela, este “base para os cuscos transmontanos”, congéneres do couscous que vamos encontrar em outras latitudes mais a sul, no Norte de África.
Um olhar sustentável que Carlos Gonçalves estende ao prato. Serve-nos, como snack, umas gambas do Algarve marinadas, acompanhadas de abacate servidas sobre uma tira estaladiça de pele de frango. “Assei a pele a 190 ºC. Não percebo porque não se faz mais uso desta parte do animal. É uma delícia”. Confirmamos. Ainda com sabor a mar, uns Samos de bacalhau, grão e ovas fumadas e, nas entradas, um Bacalhau fresco com maionese de alho, pickle de cebola e molho unagui. Comemo-lo em duas dentadas que valem por oito.
Quem se perde por peixe encontra ainda nesta carta de estreia do Erva, um Carapau com salada algarvia, tomate e beterraba, e um Atum marinado com melancia, laranja e presunto Pata Negra.
O conceito é degustar com calma, sentir a toada do restaurante onde prepondera, sem desfeita ao nome, o verde. Um projeto do estúdio de arquitetura de Francisco Igrejas que se mostrou fiel à narrativa da casa. Recurso a madeiras recicladas, ferro que pode no futuro servir de base a outras estruturas, uso de microcimento no chão, iluminação energeticamente eficiente. De momento quem visitar o Erva vai encontrar a exposição temporária da artista plástica Rueffa. Não estranhe assim um encontro em modo Pop com Beethoven, Mozart ou António Variações.
Como também não estranhe a sedução de uma sobremesa onde o gelado de coco serve frescura a uma taça de fruta picada miudinha.
Nesta época de harmonias enogastronómicas (a palavra não consta no Houaiss, mas lá entrou no padrão vigente de conversação), o Erva alinha com o casamento entre vinhos e comida. Apresenta uma carta com referências nacionais e em consonância com o elenco dos comestíveis. De sublinhar que no bar contíguo ao restaurante vamos encontrar os cocktails de assinatura do Bar Manager, Nelson Antunes, especialista em mixologia molecular.
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