
Pouco antes do início do serviço de almoço, pelas 12h30, o Pabe revela o seu lado mais íntimo. Ainda sem clientes na sala, ouvem-se os preparativos discretos de quem está prestes a entrar em cena. Longe do nosso campo de visão, alguém canta fado, alheado do que o rodeia, quase como de um ritual se tratasse. Já se prepara o ambiente para receber quer quiser entrar.
A rua Duque de Palmela, em Lisboa, que pisca o olho à zona do Marquês de Pombal, é daquelas que guardam referências discretas, mas marcantes. Durante anos acolheu a redação do jornal Expresso, continua a ser morada da Livraria Buchholz — há mais de 80 anos no mesmo lugar — e alberga a Associação Caboverdeana, conhecida pela tradicional cachupa ao almoço às terças e quintas-feiras, acompanhada de música que mantém viva a cultura cabo-verdiana na cidade. Do outro lado da estrada, encontra-se o Pabe, que pertence, com todo o mérito, ao universo da restauração de luxo. Mas é, ao mesmo tempo, um clássico lisboeta. Tão clássico que tende a ficar esquecido no meio da avalanche de novos conceitos que abrem na cidade.

Na memória coletiva da cidade, tornou-se cenário de episódios relevantes da nossa história política. Fundado em 1972 por Parviz Parviz, familiar do Xá da Pérsia, nasceu como restaurante-bar de luxo inspirado nos pubs ingleses. Depressa se tornou ponto de encontro de jornalistas, políticos, empresários e intelectuais.
A ligação à história contemporânea portuguesa não é apenas simbólica, foi vivida à mesa. A proximidade com a redação do Expresso fez com que o restaurante se tornasse, durante anos, o palco dos célebres "Almoços no Pabe", onde participaram nomes como Mário Soares, Jorge Sampaio, Sá Carneiro e Francisco Pinto Balsemão.

A mesa mais emblemática da casa, conhecido como a “mesa do Dr. Balsemão”, ainda hoje é conhecida como o lugar onde se discutiram ideias, estratégias e decisões que ajudaram a moldar a democracia portuguesa. Num tempo em que a política se fazia também de encontros informais e confidenciais, o Pabe era mais do que um restaurante: era terreno neutro. Hoje a mesa continua disponível para encontros que peçam mais discrição, isolada por portas de vidro do resto da sala.
Mais de 50 anos depois, o espaço conserva essa elegância clássica, com madeiras nobres e sofisticação de outros tempos. Exemplo dessa elegância são as chávenas de café da linha Christian Lacroix, o uso de loiça da prestigiada Royal Crown Derby ou os talheres em prata. Tudo fruto de uma renovação de perto de dois milhões de euros que lhe devolveu o brilho sem lhe mudar a essência. A decoração clássica e de sempre mantém-se, mas foi a cozinha e as áreas técnicas que ganharam uma nova vida.

Em 2018, Luís Espírito Santo, apaixonado por restauração e cliente habitual do Pabe aceitou o desafio de ficar com a casa, em conjunto com um sócio. “Era cliente há mais de 20 anos, até que um dia me fizeram a proposta de ficar com o restaurante”, recorda ao SAPO Lifestyle. O primeiro instinto foi levá-lo para o universo do fine dining, mas rapidamente percebeu que esse não era o caminho certo.
“Sempre disse que um dia ia ter uma tasca de luxo”, diz com humor. Confessa que gosta muito de restauração e de boa comida, e quis que a carta fosse representativa da gastronomia portuguesa clássica. A cozinha, hoje liderada pelo chef Luís Roque, propõe essa gastronomia portuguesa clássica, com ingredientes de excelência – como a cabeça de xara da Salsicharia Canense – e apresentação cuidada.

Na carta encontramos sugestões inesperadas como o figo com maionese trufada e presunto, o irreverente scotch egg com um twist português com a tal cabeça de xara e texturas de trufas (18€), ou o delicado ceviche de peixe do dia com leite de tigre (17€), que coabitam com os tradicionais peixinhos da horta (14€). Já nos pratos principais, temos o tornedó Rossini, com fois gras, molho Madeira e figo confitado (42€), o bacalhau à Brás (31€) ou o polvo à lagareiro (37€), servidos com a solenidade de quem sabe que há clássicos que não se mexem, apenas devem ser aprimorados.
As sobremesas mantêm-se fiéis ao espírito da casa: clássicas, bem executadas e com pequenos toques que surpreendem. A mousse de chocolate e caramelo salgado (10€) é indulgente e não faz má figura, enquanto o icónico pudim Abade de Priscos (12€), servido com gelado de vinho do Porto, é um tributo à doçaria conventual com um toque de frescura. Já “O nosso doce da casa”, feito segundo a receita da Avó Manuela (12€), é uma daquelas escolhas que ninguém sabe exatamente o que é, até provar, e talvez querer repetir. Para os que preferem algo mais leve, as farófias com creme inglês, fava tonka e sorbet de tangerina (9€) oferecem um final perfumado e equilibrado. Mas há muito mais por onde escolher, das entradas às sobremesas.

O serviço é irrepreensível, um dos méritos de Cláudio Xavier, chefe de sala, com o saber-fazer que só os anos de atenção, memória e discrição conseguem fazer. Observá-lo em ação é perceber o que distingue um profissional experiente de um mero funcionário: quando toma nota dos pedidos, retém preferências, adapta sugestões e antecipa vontades. Para os clientes habituais, não é raro que o vinho favorito ou a forma como preferem o ponto da carne já estejam memorizados.
São esses gestos quase invisíveis que elevam o serviço do Pabe a um patamar raro: além de profissional é silencioso e respeitador, onde o equilíbrio é tudo. “O serviço tem de ser atencioso, mas não chato. Não queremos que o empregado seja uma sombra do cliente”, diz Luís Espírito Santo.

Por exemplo, à porta, ainda encontramos o Senhor Gomes, o porteiro do Pabe que estaciona os carros com a mesma cortesia com que se recebe um cliente habitual. Porque aqui os clientes são mesmo especiais, independentemente de serem habituais ou não.
Luís Espírito Santo é exigente: com os produtos, com os fornecedores e com a experiência oferecida. E quando chegou o momento de formar equipa, foi buscar quem lhe transmitia confiança: “Eu já conhecia o Cláudio e dizia-lhe que um dia, se abrisse um restaurante, o ia buscar. O que acabou por acontecer.”
Cláudio Xavier está na restauração há quase quatro décadas. Passou por casas históricas como o Madeirense, o Serra da Estrela e o hotel Dom Pedro. Hoje, além de dirigir a sala com exigência e discrição, forma estagiários vindos de escolas profissionais. “Trinchamos e espinhamos o peixe à mesa. Fazemos peixe ao sal, grelhado”, explica-nos, acrescentando que “este ainda é um serviço muito clássico, mas um clássico não necessariamente mau”, diz.
Percebe-se o que o chefe de sala quer dizer. No Pabe, o serviço é pensado ao detalhe. O bife tártaro (37€) preparado à mesa, com toda a precisão de um ritual quase extinto, é um dos momentos altos. O mesmo se aplica ao crepe Suzette (32€), finalizado diante do cliente com aquele brilho flamejante típico.
Na mesa ao lado, um dos empregados mais séniores corrige uma jovem estagiária na forma de colocar a toalha na mesa, com um rigor milimétrico. Essa atenção ao detalhe, o respeito pelo produto e pela história, e a consistência no serviço valeram-lhe recentemente a distinção máxima de 3 Garfos no concurso Lisboa à Prova 2023-2024 — que partilha com restaurantes estrelas Michelin como Alma, Cura, Kabuki e Sála de João Sá, mas também Lapa e Varanda do Ritz — sendo este um projeto da consultora de comunicação Única em colaboração com a Câmara de Lisboa, Turismo de Lisboa e a AHRESP.
O restaurante conta ainda com uma carta de vinhos extensa e uma esplanada, que não fazia parte da configuração original. Surgiu no contexto de pandemia e veio para ficar. “Proporcionou-se sobretudo no tempo pós-Covid, e também tendo em conta a lei do tabaco”, explica o proprietário.
Há, aliás, um paralelismo curioso entre interior e exterior. Enquanto o interior clássico nos transporta genuinamente para dentro de um pub inglês — com balcão, madeiras nobres e luz baixa —, a esplanada corta completamente com essa referência. Arejada, urbana, mais descontraída, é quase outro restaurante. Dois espaços com identidades distintas, que convivem bem e até podem servir públicos diferentes. É também isso que faz do Pabe um lugar versátil, onde se pode tanto marcar um almoço de negócios como jantar calmamente num fim de semana sem pressa.
Os turistas costumam chegar ao jantar. Ao almoço, são os clientes habituais que dominam a sala, fiéis de longa data à procura da qualidade e discrição que sempre fizeram parte da casa. O grande objetivo de Luís Espírito Santo é atrair novos públicos que valorizem a restauração de luxo, mas também o cuidado no serviço, a excelência dos produtos e o respeito pela tradição.
Num momento em que Lisboa atrai cada vez mais turistas e certas zonas se tornaram irreconhecíveis pela gentrificação acelerada, há projetos que se mantêm fiéis a si próprios. O Pabe é um deles: continua a ser um bastião da restauração de luxo clássica, sem perder o sentido de lugar nem ceder a modas passageiras. É um restaurante onde se come bem, sim, mas onde o mais importante continua a ser a forma como se é recebido. E isso, em Lisboa, está cada vez mais difícil de encontrar.
O SAPO Lifestyle esteve no Pabe a convite do restaurante.
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