Longe, a quatro mil quilómetros de terras lusas, no Planalto Arménio, finca-se um gigante rochoso com mais de cinco mil metros de altura. Tem a montanha o nome de Ararate e uma dimensão que vai muito para além da geográfica. Nela, crê a tradição judaico-cristã, a Arca de Noé terá repousado. Também nela repousam os olhos os arménios que, a partir da sua capital, Erevã, avistam os contornos da montanha mítica, símbolo de identidade nacional e representada no brasão de armas deste país da região euroasiática.
Para nós portugueses, geográfica e culturalmente longe destes territórios de fronteira entre o oriente da Europa e a Ásia, Ararate soa-nos musical e traz-nos, ao embalo da palavra, uma quase mensagem de mito. Um território com o qual os portugueses permutaram no passado, por via terrestre. Uma memória que nos ficou, por exemplo, num apelido comum na língua de Camões, Arménio, ou seja “o natural da Arménia”.
É com uma filha deste país de longa e complexa história que nos sentamos à mesa em Lisboa. Karine Sarkisyan reside desde há quatro anos na capital portuguesa. Antes, por cá passou férias com a família. Uma relação de paixão pelo nosso país que, desde outubro de 2018, se faz como embaixadora de uma das dimensões que mais aproxima os povos, a alimentar. Karine que já detinha entre nós o restaurante D. Afonso O Gordo, lançou-se na gestão, bem próximo à Fundação Calouste Gulbenkian, no número 70 da Avenida Conde Valbom, de um espaço que faz mostra e prova de uma cozinha que nos é quase desconhecida, a Arménia.
Chegados aqui e ao nome com o qual Karine apadrinhou a sua casa de comeres arménios, percebemos a ligação com o arranque do presente artigo. Que outro nome, senão Ararate, para reviver longe de casa a identidade do seu país? E que feliz coincidência, como nos confidência Karine, esta a de “encontrar um espaço onde antes funcionava um outro restaurante de comeres lisboetas, próximo à Fundação criada sob a alçada de um dos nomes maiores da Arménia”, o de Calouste Gulbenkian, mecenas, homem de cultura e grande negociador.
Caraterísticas, as de negociadora e empreendedora, que não faltam a Karine Sarkisyan. Perseverança é atitude que se cola bem à aventura de abrir, longe do árido planalto arménio, uma casa que respeita, tanto quanto possível, a cozinha do país de origem. “Para apresentarmos o nosso Dolmá, um prato tradicional muito antigo, com carne de vitela ou cordeiro picada com arroz e embrulhada em folhas de videira. Não são, contudo, quaisquer folhas de videira. Não as encontrámos em Portugal. Tivemos de trazer 80 quilos desde a Arménia. São conservadas em sal”.
Outro desafio: Um dos pratos principais da carta é a espetada, de carne, peixe ou legumes. O shashlik é prato antigo, com mil e quinhentos anos. Exige lume aberto e um grelhador com características especiais. Para Karine as dificuldades começaram na procura do grelhador típico do país, muito raso, a grelha quase toca o carvão, cujas cinzas dão um intenso sabor fumado aos alimentos. O grelhador do Ararate, com duas toneladas, veio de um fornecedor espanhol que o desenhou propositadamente.
É obra, como também o foi recriar em Lisboa, na decoração do espaço, o ambiente arménio. “Trabalhámos com artesãos portugueses em todas as madeiras, desde as da porta [um portento], às das mesas e cadeiras. Os candeeiros, as louças, as cerâmicas, tudo é trabalho português”, sublinha Karine. Isto numa sala onde não falta arte de labor doméstico, com pinturas a óleo, da autoria de um tio da proprietária, artista plástico de nome feito na Arménia, que retratou os ascendentes familiares. A destacar, ainda, uma réplica de um tapete, o Pazyryk, o mais antigo representante da tapeçaria humana, recuando a cinco mil anos antes de Cristo. “Este tapete levou seis meses a produzir, salienta a nossa anfitriã”, no momento que, sobre a mesa, repousam já alguns pratos da extensa e complexa - diríamos desafiante - carta do Ararate.
Cardápio entregue nas mãos do chefe de cozinha Andranik Mesropyan, jovem arménio que veio para Portugal para embarcar neste projeto. “O grande desafio passa não tanto por recriar os pratos mais tradicionais, mas por encontrar os produtos certos, consegui-los frescos e com regularidade”, salienta a proprietária do Ararate,
Cozinha singular
Encruzilhada de territórios, a Arménia faz síntese na sua cozinha das permutas com regiões próximas. Do Oriente adotou os temperos exóticos; da Ásia Central ficou a conhecer o grão; dos Turcos aprendeu a técnica de grelhar carne em carvão e introduziu o kebab na sua alimentação. Já a Europa contribuiu com os legumes e verduras.
Uma cozinha onde imperam a beringela, o pimento, o tomate e a cebola. Desta rica base de legumes nasce a maioria dos pratos tradicionais, a que as ervas aromáticas emprestam sabor, como os coentros, o manjericão roxo (que ao Ararate chega seco desde a Arménia), o tarkhum (da família do estragão), o chaber (da família da segurelha) e ainda o dandur, que se assemelha às beldroegas.
No que toca às especiarias, deve muito a cozinha arménia ao pimentão-doce. Não é um qualquer, como nos explica Karine Sarkisyan. “É feito a partir de pimentos colhidos e secos como faziam os meus avós. Chegam a Portugal diretamente da Arménia”. A diferença está no sabor, mais fumado.
Ainda no que toca aos comeres, nas carnes, o borrego é uma das mais utilizadas (a par do vitelão que chega dos Açores), como o espelha a ementa deste Ararate. Todo o animal é aproveitado para estufados e caldos. Longe do mar, a cozinha arménia vai buscar os pratos de sabor marinho aos peixes de rio, nomeadamente o esturjão e a truta frescos, apresentados em ensopados, espetadas ou no forno.
Um conselho ao iniciante (o que não será difícil) nesta incursão pelos comeres arménios. Deixe-se levar no Ararate ao sabor dos conselhos da equipa de sala. Não exclua, contudo, a oportunidade de provar o Khachapuri Barco, um pastel tradicional caucasiano recheado com queijo, gema de ovo e manteiga (7,50 euros), o Lavash, o pão-folha típico da Arménia (2,50 euros), a Choban, uma salada simples de tomate, pepino, pimentos, cebola, ervas e óleo de girassol (6,50 euros) ou a Hamest Tatý, uma salada de legumes grelhados (6,50 euros).
Nos pratos de resistência, os rolos de vitelão em folhas de videira Dolmá (9,50 euros), o Chackapuli, borrego estufado em ervas aromáticas das montanhas. Verdadeiro símbolo de primavera para os caucasianos (7,50 euros), a Putuk, uma sopa de grão-de-bico (16,00 euros), o Khashlama de vitelão, um dos mais antigos pratos arménios com significado ritual, era utilizado para curar as constipações e mal-estar geral (18,00 euros) e as já citadas espetadas, as shaslik, com preços a variarem entre os 13,00 e os 21,00 euros.
Para a sobremesa, a gulodice pode caber à medida de um pastel Pakhlava, elaborado com uma pasta de nozes trituradas com cravinhos e canela, envolvida em massa filó e banhada em xarope (6,00 euros).
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