Pensemo-la, ou não, a história senta-se sempre à mesa com o ato alimentar. Nem mesmo o conceito mais vanguardista se liberta, ou subsistirá, à herança que o traz. Não há pão sem milénios de apuro, mesmo que seja um mau pão; não há reinterpretação de sobremesas, com desconstruções de pastéis de nata, que sobrevivam às mãos hábeis (e também não tão hábeis) que os trouxeram à fórmula presente.
Em certos momentos, a história não se fica apenas pela marca indelével. Ela torna-se a protagonista da mesa, como o vem fazendo o poveiro restaurante Egoísta, desde junho de 2019. Dez jantares, em outros tantos meses, comemoram o decénio de vida desta casa dirigida na cozinha pelo chefe Hermínio Costa. Uma efeméride de cardápios subordinados a temas que nos propõem reencontros com a nossa história e que se prolongará até julho de 2020.
Este fevereiro, depois de quatro ementas já dedicadas a outros tantos marcos na cronologia portuguesa (desde a Idade Média), chegou a vez de trazer aos pratos o ano de 1777, mais concretamente o dia 13 de maio, e a Aclamação da, então, jovem rainha Maria I.
Um jantar de evocação do Barroco que nesta quinta paragem nas mesas do Egoísta fez meio caminho na viagem de circunavegação à nossa história entregue ao homem que, desde 1996, recebeu em mãos a responsabilidade de gerir a restauração do Casino da Póvoa e desde 2009 o faz no restaurante Egoísta. Na cozinha aguarda-nos Hermínio Costa, um calmo soberano numa imensa copa, acabado de chegar de “umas férias de dez dias na ilha de Zanzibar”. Tom de pele de veraneio, sorriso rasgado (concorre para a boa disposição o facto de ter já este 2020 conquistado o título de “Restaurante Gastronómico do Ano”) e a descontração que não acusa ansiedade face a uma sala com 40 comensais que aguardam o que a época de D. Maria I tem para oferecer. No caso concreto, uma época recriada nos sete pratos propostos no menu da noite.
O posto de comando de Hermínio é desde há vários meses uma pequena biblioteca da história alimentar. Nas estantes avultam, entre outros, os títulos, “Mesa Real, Dinastia de Bragança”, “Comer Como uma Rainha”. Livros que o chefe de cozinha trata com estima. Nas mãos, Hermínio segura o clássico “Cozinheiro Moderno, Ou Nova Arte De Cozinha”, de Lucas Rigaud, do século XVIII. “Sei muitas passagens quase de cor. É um verdadeiro desafio descortinar o que aqui é dito”. A prosa de Rigaud é eximia. Escreve-se sobre cozinha com o cuidado como se trataria o enredo de uma novela de corte.
Deixamos o artista com a sua arte. Na sala, onde a música barroca marca o ritmo da noite, trocamos palavras com a mentora dos temas destes jantares que arrancaram com Eça de Queirós. Célia Lourenço, arquiteta de profissão, apaixonada pelas artes da mesa, assumiu como “natural” a tarefa de elencar dez momentos da nossa história e torná-los também história à mesa do Egoísta. “Tinham de ser jantares documentados e num período em que pudéssemos contar com os registos. Não faria sentido recuar a antes da Idade Média. Até mesmo por uma certa familiaridade com a mesa e os alimentos apresentados. Até ao momento, os jantares com história do Egoísta já trouxeram às noites da Póvoa, o jantar do Hotel Central, d'Os Maias, o jantar preparado pelo Abade de Priscos para o rei D. Luís, na Póvoa de Varzim, em 1887, o jantar inspirado no Infante D. Henrique e das festas para apresentação do plano ultrassecreto da conquista de Ceuta, em 1413 e o banquete oferecido pela rainha D. Catarina (mulher de D. João III) a D. Maria de Portugal (1565).
Isabel Drumond Braga, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa que, antecede a refeição com um enquadramento à época de D. Maria I e uma breve viagem à vida da “primeira rainha reinante de Portugal, filha primogénita de D. José I, casou-se com o tio, futuro rei D. Pedro III. Sobe ao trono em 1777, numa cerimónia onde hoje encontramos a Praça do Comércio, em Lisboa”. Uma soberana que não contou com um reinado fácil: “reinar era um fardo que temia”, sublinha a historiadora. “Em 1792, aos 57 anos, começa a manifestar transtornos mentais. Deixa a governação”. D. Maria I viria a morrer no Brasil em 1816. Tinha 87 anos.
Uma mesa que recria uma época
Com a ressalva de que uma ementa de época merece as devidas adaptações ao palato atual pomos os olhos no elenco da noite, com pratos “talhados” por Hermínio Costa: Ostras com queijo Parmesão (combinação inusitada mas ganhadora), Linguado de Fricandó, “Ris de Veau” com geleia de legumes, Empada de lebre, Perdiz assada, trufas e morilles e a fechar, Sonhos de fruta e Creme de cacau e biscoito de flor de laranjeira. Uma viagem de mesa a casar com harmonização vínica com néctares como o Procura na Ânfora, um branco de 2017, Quinta dos Termos, um clarete de 2014 ou um Quinta do Monte d´Oiro Reserva, tinto de 2004.
Uma mesa que fez uma aproximação aos comeres do século XVIII, tanto quanto as fontes escritas permitem essa abordagem. A propósito da paleta de alimentos, explica a historiadora Isabel Drumond Braga: “na mesa real figurava a carne de vaca, assim como a de aves, nomeadamente a galinha, as peças de caça e os enchidos. Nas frutas, as cerejas, as ginjas, as laranjas, as peras, entre uma infinidade de outras espécies. Não faltava o azeite, os ovos, o vinho e os queijos, muita doçaria, pinhões, pistácios – uma excentricidade - e espargos. No que toca às bebidas, o vinho, o chá e o chocolate. Havia o gosto por refrescar as bebidas, com gelo que provinha da Serra da Estrela e da Serra de Montejunto”. Para que se tenha uma ideia da particular apetência pelo doce, a historiadora arola as quantidades referentes a um banquete oferecido em 1789: “348 dúzias de ovos, 300 kg de açúcar e 8 kg de amêndoa”.
Uma exuberância à mesa comentada pelo gastrónomo José Bento dos Santos, também presente neste jantar de homenagem à Aclamação de D. Maria I e que sublinha factos não tão óbvios para os comensais: “na época havia a tentação de se iniciar a digestão antes de se fechar a refeição. Daí a introdução das mousses, um prato que já trazia o alimento como que digerido. Acresce que tendo uma textura suave, favorecia às senhoras comerem de boca fechada, o que era mais educado”.
Pormenores que nos escapariam não fosse, neste caso, a presença da História para connosco compartilhar esta mesa.
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