O Burger King Portugal lançou, no final de junho, uma colaboração inédita com o chef do 100 Maneiras — restaurante que, este ano, perdeu a estrela Michelin conquistada em 2020 —, Ljubomir Stanisic. E não é apenas um hambúrguer com assinatura: é um menu completo. Com valores a partir de 11,20€, está disponível nos restaurantes em Portugal desde o passado dia 24 de junho.

Ousado, tropical e provocador, este menu é uma combinação do ADN do chef bósnio, polvilhado com especiarias sul-americanas e irreverência ibérica. O resultado é o King Ljubomir, servido em pão brioche com chipotle e achiote, maionese picante, guacamole, cheddar fumado e um extra de abacate fresco. Está disponível em versão grelhada de carne ou vegetal, single ou double, e ainda numa opção com peito de frango crocante.

Tudo isto foi pensado para um momento que, nas palavras do próprio, “se come com as mãos e que se lambem os dedos”. Para Ljubomir, “mais do que um hambúrguer, mais do que uma refeição, esta é uma viagem a um lugar onde nunca falta ousadia ou sabor”. Um exercício de provocação sensorial que, diz, foi desafiante de criar dentro da já extensa e padronizada oferta da marca.

A acompanhar, chegam as King Fries reinventadas com trufa, barbecue, cebola e cenoura caramelizada. E, para fechar a refeição, um King Fusion: gelado de baunilha com coulis de goiaba, topping crocante de caramelo, chocolate branco e… Peta Zetas. Porque, como diz o chef, “a vida nunca é só preta ou branca”.

De estrela Michelin ao drive-thru

Mas Ljubomir não está sozinho nesta viagem. A tendência de chefs consagrados a colaborarem com marcas de fast food tem vindo a crescer a nível internacional — ora como provocação gastronómica, ora como tentativa de democratização do “toque de autor”, ora, talvez, como puro marketing em modo gourmet.

Um dos casos mais sonantes foi o de David Muñoz, o irreverente chef madrileno com três estrelas Michelin no DiverXo e eleito o melhor do mundo pela lista "The Best Chef Awards" três anos consecutivos (2021–2023), que em julho de 2024 lançou o menu King Dabiz em parceria com o Burger King, disponível em Espanha, França e Portugal.

A proposta, que antecede e inspira diretamente o menu de Ljubomir, incluía hambúrgueres servidos em pão de croissant, chutney de tomate e versões com mac & cheese e jalapeños, numa espécie de instalação pop-up culinária, só que servida entre pães e tabuleiros. Apresentado como “uma explosão de sabor completamente inesperada”, Muñoz garantia que “se fechasses os olhos, esquecias que estavas no Burger King”.

Mas bastou abrir os olhos — e as redes sociais — para perceber que a receção foi tudo menos consensual. Críticos e influenciadores descreveram as criações iniciais como “dececionantes”, com molhos pouco percetíveis e carne seca, afirmando que “não tinham nada de especial” e “sabiam como qualquer outro do menu habitual”. A segunda edição, mais ousada, com elementos como molho César coreano, foi recebida com mais entusiasmo, mas não dissipou as dúvidas.

No entanto, eis que surge Quique Dacosta, figura de referência na alta cozinha espanhola. Questionado sobre estas colaborações, comentou que são “consequências do reconhecimento social” que os chefs gozam atualmente. Acrescentou, sem julgamentos, que respeita “todas as decisões de cada um dos colegas, desde que não prejudiquem as pessoas” e reconheceu que Muñoz, com a sua assinatura, “traz uma melhoria à empresa e alcança um avanço culinariamente falando”. Ainda assim, advertiu: há uma linha ténue entre democratizar a gastronomia e diluir a alma do chef.

É precisamente nesse equilíbrio, entre ousadia e diluição, entre marketing e autenticidade, que se joga o sentido de parcerias como as de Muñoz e Ljubomir com grandes cadeias.

Outro exemplo ibérico foi o de Dani García, que colaborou com o McDonald's para criar a gama “Signature”, numa aposta em ingredientes premium para o público de massas.

Michel Sarran, (França), jurado do "Top Chef" e detentor de uma estrela Michelin, assinou três opções de hambúrgueres para o Burger King em junho de 2023: os “Master Sarran” (mozzarella, cabra e frango). O chef frisou que estes menus “não são incompatíveis ao bom comer” e sim a sua tentativa de “elevar o nível da comida industrial”. A campanha publicitária reforçou essa interação, mostrando o chef a supervisionar cada detalhe e exigir “emoção em cada prato”.

Theo Randall (Reino Unido) foi outro exemplo pioneiro, colaborando com a Pizza Express, em 2008, para criar quatro pizzas sazonais. O movimento foi apontado como um dos primeiros sinais de uma fusão entre a cozinha de autor e a cadeia casual dining.

Nos EUA, a Shake Shack lançou a sua “Collab Series”, com criações assinadas por chefs de renome como David Chang, que apresentou o “Shrimp Stack Burger” com gochujang, e o lendário Dominique Ansel, criador do cronuts, para desenvolver sobremesas exclusivas.

A Taco Bell experimentou com o programa TBX em Nova Iorque, convidando chefs emergentes para reinventar o Crunchwrap Supreme com influências internacionais, do caril indiano ao tamarindo tailandês.

Gordon Ramsay, por seu turno, apostou no Canadá com o conceito "Gordon Ramsay Burger", lançado em 2023 em casinos e locais de entretenimento como o Hard Rock Casino Vancouver. Servindo hambúrgueres premium, molhos caseiros e batidos artesanais, a marca aposta na extensão do seu nome para um formato de street food de luxo.

Fast food ou “fast fame”?

Estas colaborações são muitas vezes vistas com desconfiança por puristas da gastronomia, mas não vivemos numa era em que sempre se afirma que “os tempos mudaram”? Para chefs como Ljubomir, Muñoz ou García, cozinhar para milhões pode ser mais revolucionário do que manter um restaurante elitista. “Criar este menu foi um desafio pela diversidade que o menu Burger King já apresenta, mas acredito que em conjunto conseguimos transportar os consumidores numa viagem de sabores verdadeiramente diferente”, afirma Ljubomir.

Há, claro, uma componente de marca forte, uma vez que estas colaborações fazem bem às duas partes, onde os chefs ganham visibilidade num público mais jovem e massificado. Já as cadeias ganham prestígio e conteúdo diferenciador para alimentar campanhas publicitárias a nível global. E o consumidor? Ganha um hambúrguer com ingredientes ou combinações premium, por menos de 10€.

O que antes seria visto como um sacrilégio — um chef Michelin a desenvolver receitas para cadeias de fast food — é hoje uma tendência legítima, ancorada em storytelling, criatividade e, porque não, alguma rebeldia contra os limites impostos pela alta gastronomia. Ljubomir, nesse aspeto, é coerente: sempre cozinhou contra convenções, e esta parceria parece não ser exceção.

Mas fica a pergunta: o que ganha a alta cozinha ao sentar-se à mesa do fast food? Por um lado, a democratização da assinatura de um chef pode ser vista como um gesto generoso: levar sabor e criatividade a públicos que nunca pisariam um restaurante Michelin. Por outro, há quem veja nisto apenas uma operação de marketing: embalagens bonitas para pratos que, na realidade, pouco se distinguem dos restantes. Entre o estrelato e o balcão do fast food, há um lugar incerto que continua a dividir opiniões.

E se há coisa que esta tendência nos mostra é que, no fim, todos comemos com as mãos. Uns com mais pão brioche com chipotle e achiote, outros com mais ceticismo.