Em contraste com a forma decorativa dos arranjos florais que prevalece nos países ocidentais, o arranjo floral japonês – ikebana - cria uma harmonia de construção linear, ritmo e cor. Enquanto que os ocidentais tendem a pôr ênfase na quantidade e no colorido, os japoneses realçam os aspectos lineares, fazendo deles uma arte.
No Japão, cada manifestação artística tem o seu próprio caminho. O Do, que vem de algum lugar e leva a algum lugar, mantendo um vínculo inquebrável entre passado, presente e futuro, é um caminho em busca da perfeição, do reencontro do homem com as suas origens e os encantos primitivos da Terra.
Kado é o caminho das flores e nele se insere a arte da ikebana. Esta decoração floral, que ocupa lugar de destaque na cultura nipónica, data dos primórdios da civilização. As culturas mais antigas, como a egípcia, mostram-nos claramente que as flores sempre foram fonte de inspiração para adornos e outras expressões artísticas.
A ikebana é uma arte ligada a um mundo de símbolos, valores estéticos, religiosos e, sobretudo, históricos, cujos traços de origem remontam ao século VI, quando o budismo é introduzido no Japão. Desde então, oferecer flores a Buda torna-se um rito.
Na imagem da trindade budista, Buda aparece ladeado por duas figuras mais pequenas, o que deu origem à kuge, oferta floral com três pés que se erguem resolutamente quase como um só. As três pontas com flores formam um triângulo que sustenta o conceito de trindade.
O ramo mais comprido é o mais importante e simboliza o Céu. O mais curto representa a Terra, e o intermédio, o Homem, surgindo assim a imagem do Homem como união entre o Céu e a Terra. O triângulo representa o cosmos com montanhas, fogo, água e terra, ou as diferentes fases da vida - passado, presente e futuro, ou nascimento, maturidade e morte.
O sol, a lua, as constelações, o clima quente e frio, os fenómenos visíveis e invisíveis da Natureza - como a chuva e o vento, os animais, as plantas e os minerais - que directamente se relacionam com o Homem, o Céu e a Terra, tudo nasce e cresce pela força da grande Natureza.
A palavra ikebana resulta da fusão do antigo verbo "acordar", ikeru, e de bana, que significa "flor". Ikebana é acordar as flores para a vida, e deixá-las, através da sua beleza, unir os corações dos homens. A ikebana não é uma mera reprodução daquilo que a planta e a flor representavam na Natureza, antes de serem colhidas.
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É uma criação artística com ramos, folhas e flores, marcada pelo sentimento da "ikebanista". No Japão, qualquer mulher, pobre ou rica, deve aprender a arte do chá e a arte das flores. O desenvolvimento desta arte das flores foi sempre fruto da sociedade, um espelho do próprio Homem.
Não há um lar no Japão onde não se encontre um arranjo floral a condizer com a decoração e a estação do ano. Intimamente ligada ao simbolismo do arranjo floral está a associação de certas formas florais à tradição, aos costumes e à literatura. Por exemplo, cada feriado nacional tem o seu arranjo específico, e até mesmo as datas festivas no seio de uma família não estão completas sem um arranjo apropriado.
Na alegre celebração do Ano Novo, é usado geralmente o pinheiro, juntamente com crisântemos brancos; no "Festival da Boneca", o Hina Matsuri, recorre-se às flores de pessegueiro; e no "Festival dos Meninos", o arranjo é composto de íris, cujas folhas, em forma de espada, simbolizam a força dos samurais.
O prazer da prática da ikebana reside sobretudo na descoberta da beleza das formas e linhas da composição floral. Mesmo com poucas flores, ou até com uma só, é possível dar-se uma noção de grandeza, onde a flor domina o espaço vazio. Cabe ao observador completar a imagem, transformando e aprofundando o objecto da sua contemplação.
Enquanto que a simetria de um bouquet clássico barroco é entendida, no Japão, como uma forma muito limitada, sem espaço para as ideias, em que o olhar salta de flor em flor, a assimetria e os espaços livres da ikebana permitem ao contemplador seguir o movimento da dinâmica da vida e a beleza individual de cada flor.
A flor da Primavera na China e no Japão é a peónia, símbolo da pureza, da juventude e da riqueza. A do Verão é o lótus, uma planta aquática, símbolo da sabedoria e da religiosidade, preferencialmente usada para homenagear Buda. O crisântemo é a flor da amizade e do Outono.
O ruborizar das folhas, os concertos dos insectos, o amarelo-dourado da árvore de gingko, tudo é interpretado como sentimentos de alegria, porque o calor do Verão acabou. Surpreendentemente, a flor do abrunheiro é a flor do Inverno. É o símbolo da beleza e da esperança numa nova vida.
A ikebana permite-nos perceber o quão insignificantes somos diante da Natureza. Aprendemos a esvaziar o nosso ego para atingirmos uma harmonia a que os japoneses chamam "coração universal", hana-no-kokoro. Esta virtude, baseada na filosofia zen, é indispensável para a compreensão de expressões artísticas deste género.
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Como um poema ou uma pintura feita de flores, a ikebana traduz a beleza intrínseca das flores e a busca contínua do ideal do belo dentro de cada um de nós, ideal para completar a filosofia do nosso lar como um refúgio que nos proporciona uma harmonia corpo e mente.
A moribana foi criada pelo fundador da Escola Ohara no final do século XIX e é hoje a mais divulgada e apreciada mundialmente. Abraça inúmeros estilos e está constantemente a ser renovada pelos grandes mestres criadores das escolas do Japão.
A heika deriva do mais antigo arranjo floral budista, que data do século VI, quando o budismo e a escrita kanji vieram da China para o Japão. Originalmente uma oferta floral, colocada em cada um dos lados da figura de Buda, este arranjo, num vaso alto, segue sempre o conceito da trindade Céu-Homem-Terra. Uma linha é simbólica, duas linhas são harmoniosas, três linhas representam a plenitude.
Uma paisagem é uma pintura com flores, com material vivo que transmite ao observador um profundo sentimento de paz. Neste arranjo floral, reunimos toda a nossa potencialidade artística, harmonizando o recipiente com a natureza da época, com a visão – perto, não tão perto ou longe -, com o campo, a montanha ou a água, com um estilo realista, tradicional, ou não realista.
Representa-se o "sopro de vida", como sendo um dos elementos sempre presentes na tão estilizada arte da ikebana. A interpretação artística, à medida que se vai avançando na dificuldade do arranjo, é cada vez mais subtil, e também muito personalizada conforme as emoções dos artistas.
Fotografia: Paulo Andrade e António de Sousa (As fotos das ikebanas foram publicadas no livro "Cartas a Ninguém" de Lisa Flores, com ilustração de Ingrid Bloser Martins, publicado em 2004 pela editora Veja)
Agradecimentos: Ingrid Bloser Martins (autora), co-fundadora e primeira presidente do Sector Portugal da Ikebana Internacional; Paula Mateus
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