Na adolescência explodem novas formas de pensar, sentir e de perceber a realidade, de tentar integrar uma visão ainda infantil num mundo que ainda não lhes pertence - o dos adultos. Nessa procura de individuação e de autonomização, onde há tanto para absorver, parece que as 24h não são suficientes. Acabam então por "cortar" no que pensam que é supérfluo - as horas de sono - uma vez que que não podem reduzir as da escola e as de estudo e não querem cortar nas de descanso e lazer, nomeadamente nas saídas à noite.
Não deixa de ser verdade que grande parte do dia dos adolescentes é consumido pela escola e atividades associadas e que pouco sobra para refletir, conviver e descansar, sendo estas tarefas tão importantes como as letivas. "Sair à noite" é considerado por eles como um dos momentos "altos" da semana e não, “ir “só” tomar café depois do jantar não chega e não é sair à noite", como tentarão explicar aos pais.
À partida, nada do que seja feito de forma moderada, ponderada e com limites terá consequências a longo prazo. Ir a uma discoteca com os amigos uma vez por semana ou a cada 15 dias, sem consumos e em que o adolescente possa estar a dormir por volta das 3h (máximo 4h) da manhã não tem de ser (muito) desorganizador dos ritmos de sono-vigília, desde que sejam cumpridas algumas diretrizes nos dias seguintes. De atender que refiro as 3-4h da manhã porque a "noite" portuguesa, comparativamente com a de outros países europeus e norte americanos, começa muito mais tarde, a partir das 2h da manhã. Se eu tentasse sugerir a um adolescente que por norma se deita às 6h, para o fazer às 2h, estaria votada ao insucesso pois a adesão terapêutica seria nula.
Enquadrando os hábitos dos adolescentes portugueses, vemos que desde cedo saem até tarde, muitas vezes às 6f e sábados e que os consumos de álcool, tabaco e outras substâncias são habituais, mesmo que de forma passiva; por outro lado, o grupo de pares permanece até muito tarde, o que dificulta o cumprir dos limites que os pais colocam.
Sabe-se que o álcool superficializa o sono e interfere com a sua qualidade (e com a condução, pelos acidentes que resultam do cocktail álcool e sono) e que o tabaco e outras substâncias estimulantes também.
Do ponto de vista cronobiológico, o adolescente que se deita tarde vai, naturalmente, acordar muito mais tarde que o habitual para tentar compensar as horas de sono da noite anterior e as que provavelmente perdeu durante a semana e até dormir a sesta, o que vai resultar numa longa insónia na hora habitual do deitar.
O padrão de sono-vigília nos adolescentes tem uma tendência biológica para se atrasar em duas ou mais horas ou seja, se antigamente tinham sono pelas 21h, passam a sentir-lo a partir das 23h. A isto se chama uma atraso de fase de sono-vígilia e é particularmente impactante nos adolescentes que têm cronotipo vespertino (ou seja, aqueles que sentem que estão no máximo das suas capacidades no período da tarde). Este deve-se a um atraso na secreção da melatonina, hormona produzida na ausência de luz e que induz sonolência; esta produção ver-se-á também comprometida se estiverem associados determinados (maus) hábitos, como a exposição a écrans (telemóveis, tablets, consolas, etc) sobretudo perto do deitar. Se nesta altura o adolescente estiver demasiado ansioso, excitado, assustado e tiver consumido alimentos com cafeína, por exemplo, vai sentir enorme dificuldade em adormecer à hora desejada.
O impacto do atraso de fase faz-se sentir numa insónia inicial, numa fraca qualidade de sono e em horas insuficientes de sono quando o despertador toca. A dificuldade em acordar e a sonolência diurna indicam que não dormiram o suficiente para a sua idade e necessidades: 8,5 a 9 horas. Esta restrição de sono cumulativa dos dias de semana não só não é compensada ao fim de semana mas agravada pelas horas que não dormem naqueles dois dias. Naturalmente, desregulam ainda mais o relógio interno e agravam o atraso de fase normativo.
De dia as consequências são gravíssimas, pois manifestam-se a todos os niveis - cognitivo (com impacto na atenção, memória, funções executivas e, portanto, no aproveitamento escolar), emocional (maior irritabilidade perante situações menores, humor lábil e deprimido) e comportamental (oposição e desafio, agressividade no contacto interpessoal). Nos casos mais graves observa-se absentismo ou recusa escolar e maior probabilidade de comportamentos de risco e de ideação suicida.
As relações pais-filhos também serão afetadas, pois os pais vêm-se com dificuldade em impor regras e limites, nomeadamente nas saídas à noite - "todos os meus amigos vão", "ninguém se vem embora às 3 da manhã", o que pode levar a discussões acesas. Por não saberem a melhor forma de gerir o conflito, há pais que não deixam sair de todo, outros que tentam impor limites que os adolescentes desafiam à revelia e outros ainda que não conseguem colocar regras ou são demasiado flexíveis, deixando os adolescentes à mercê da sua (i)maturidade.
A partir do momento em que os pais decidem deixar um filho "sair à noite", têm que tem em conta a sua idade, personalidade (ex: se for impulsivo pode ceder mais facilmente à pressão para beber), grau de responsabilidade/ maturidade e impacto que a restrição de sono tem habitualmente nele. Em seguida, para tentarem um maior cumprimento da sua parte, podem apostar no que eu chamo de "liberdade condicional", ou seja, deixam sair dentro de certos limites e condições. Uns são passíveis de ser negociados (ex: hora de chegada) - fazem com que o adolescente sinta que tem algum poder de decisão, logo, que tente colaborar. Outras, não e devem antecipar consequências em caso de incumprimento (ex: avisar para onde vai e mudanças de local, álcool ingerido - impossível de contabilizar, mas se regressar alcoolizado possivelmente não bebeu só uma bebida branca!). Ficam também previamente estipuladas as horas a que acordará no dia seguinte para desregular o mínimo possível o padrão de sono-vigília (contemplar um mínimo de 6h de sono) e que não pode dormir sesta diurna. Deverá ser exposto à luz solar nas 3-4h depois de acordar e, de preferência, fazer desporto ou ir caminhar. Finalmente, é preferível que saia a uma 6f para amenizar o impacto da saída até 2f.
Se o atraso de fase se mantiver ou for agravando e tiver impacto moderado a grave no funcionamento diário, dever-se-á procurar ajuda especializada pois há protocolos de intervenção específicos para esta perturbação do sono que serão adaptados a cada adolescente e família.
Em suma, os adolescentes devem poder cumprir as tarefas do desenvolvimento esperadas para esta etapa, num equilibro entre o que "eu quero - eu posso", entre o sono e a saúde mental, para que não se revejam noutro "I'll sleep when I'm dead", o dos Set it Off, que ilustra bem a angústia de quem não consegue adormecer.
Mafalda Leitão
Psicóloga Clínica
Coordenadora do Núcleo de Perturbações do Sono do PIN
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