Tenho o corpo recheado de memórias da minha infância. No meu joelho direito mora o dia em que caí das escadas do meu prédio - o que me fez comprovar que aqueles seis degraus eram, afinal, demasiados para a elasticidade do meu corpo. Na minha nuca reside a cicatriz que foi provocada por um baloiço mal calculado. No meu cotovelo esquerdo está a prova de que, pelos vistos, mergulhar num monte de areia das obras pode não ser uma boa ideia.
Também me lembro de, já na adolescência, chegar da escola, despachar os meus trabalhos de casa e ir a correr para o café da rua, onde encontrava sempre algum amigo com quem partilhar um refrigerante. E de ali ficar horas a fio, dividindo-me entre gargalhadas e desabafos, até que fosse hora de retomar a casa e de atualizar as novidades do meu dia com os meus pais. Sentados a uma mesa, com uma refeição que tinha de tudo menos de rápida, e sem o barulho de fundo de televisores ou de telemóveis constantemente a apitar.
Havia sobretudo tempo, partilha e convívio. Não havia pressa em crescer e em conhecer o mundo sem ser in loco. Não se sabia o que era o sexo a não ser pelo que os amigos mais velhos contavam, não existiam ébolas nem legionellas a torturar cabeças pequenas, não existia um Facebook que nos dizia no monitor aquilo que os amigos nos podiam contar ao vivo.
- E porque é que nós só podemos ter Facebook aos 12 anos?
E é aqui que, como bem diz a sabedoria popular, “a porca torce o rabo”. Fruto do desejo de permitir que os meus filhos cresçam com tecnologia, mas não na tecnologia, temos algumas regras que os seus amigos mais próximos desconhecem. Não há telemóveis antes de a entrada no 5º ano implicar uma eventual necessidade de contacto em situação de urgência. Não há Facebook antes dos 12 anos – e apenas com a minha total supervisão. Não há televisão nos quartos, porque ela é para ser assistida em família. Ou seja, aos olhos de muita gente, vivemos supostamente à margem da normalidade social.
A boa notícia? Os meus filhos brincam todos os dias na rua e chegam sempre muito sujos (e felizes) a casa. A minha filha mais velha passa horas a aprender truques de magia e a ler revistas. A do meio faz programas regulares com as amigas, que já conhecem todos os cantos da nossa casa. E nós, eu e eles, falamos muito, muito, muito. Conheço-lhes todos os gostos, todas as dores, todas as vontades, permitindo que, dentro da escala possível para as suas idades, eles me conheçam igualmente bem.
Nos fins-de-semana visitamos museus, jardins, monumentos. Exploramos a cidade e os recantos que, alheios a tags e aplicações, nos fazem descobrir sempre coisas novas. Da vida real. Daquela que ainda hoje habita nas recordações da minha infância.
Há duas semanas, a minha filha mais velha contou-me que uma colega lhe perguntou o que é que eu mais lhe costumo oferecer. “Experiências”, respondeu ela.
- E sabes uma coisa, mãe? Acho que é disto mesmo que nos vamos lembrar quando crescermos.
(ainda assim, quase aposto que os meus filhos mais pequenos dariam uma unha do pé esquerdo para poder ter já Facebook.)
Alda Benamor
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