Usar o mindfulness, um treino mental que ensina a lidar com pensamentos e emoções, para melhorar a qualidade de vida de quem sofre de infertilidade. A ideia tomou forma, pela primeira vez a nível global, pela mão de uma equipa do Centro de Investigação do Núcleo de Estudo e Intervenção Cognitivo-Comportamental da Universidade de Coimbra. Depois de criarem a metodologia, a que chamaram Programa Baseado no Mindfulness para a Infertilidade (PBMI), testaram a sua eficácia, aplicando-o a mulheres portuguesas que estavam a realizar tratamentos médicos para a infertilidade. Os resultados já foram publicados na revista da Sociedade Americana de Medicina da Reprodução, Fertility and Sterility.

A análise revelou uma diminuição significativa de «aspetos negativos, como a vergonha, a derrota ou o autojulgamento, e de estados de depressão e ansiedade», refere Ana Galhardo, a psicóloga clínica cuja investigação de doutoramento deu lugar a este estudo e com quem falámos para saber como funciona este tipo de intervenção. A ideia nasceu do reconhecimento de que a infertilidade «é um problema gerador de sofrimento», tal como «uma multiplicidade de condições clínicas» em que as abordagens baseadas no mindfulness se têm mostrado eficazes, contou à Prevenir Ana Galhardo.

Isso mesmo foi demonstrado pelos estudos conduzidos pela equipa no sentido de «explorar em que medida as pessoas com infertilidade a realizar tratamento médico se diferenciavam de pessoas férteis e de pessoas com infertilidade que não estavam a ser acompanhadas medicamente e eram candidatas a adoção». Os resultados revelaram diferenças significativas que importa assinalar. «Os casais com infertilidade em processo de tratamento médico e, em particular, as mulheres, evidenciavam níveis mais elevados de psicopatologia», refere.

«Apresentavam, por exemplo, sintomas de depressão, ansiedade e afeto negativo e de emoções negativas (como a vergonha e a derrota), bem como maior recurso a estratégias de regulação das emoções tendencialmente disfuncionais, nomeadamente mais inflexibilidade psicológica ou evitamento experiencial, mais autojulgamento e menos autocompaixão», sublinha ainda Ana Galhardo. Segundo a Associação Portuguesa de Infertilidade (API), em Portugal, cerca de 15 a 20% dos casais em idade reprodutiva apresentam problemas de infertilidade.

Reduzir o sofrimento

O objetivo da metodologia desenvolvida não é superar a infertilidade, mas ajudar a «lidar com as suas consequências em termos psicológicos de uma forma mais funcional e adaptativa, atenuando o impacto na saúde mental e na vida das pessoas afetadas», esclarece a investigadora. A finalidade adequa-se à definição de mindfulness que, refere citando o psicólogo norte-americano Christopher Germer, é «uma forma simples de nos relacionarmos com a experiência que, desde há muito, tem vindo a ser usada para atenuar a dor das dificuldades da vida, particularmente daquelas que são aparentemente autoimpostas».

No fundo, explica o especialista, «corresponde ao oposto do funcionamento em piloto automático e do sonhar acordado, pois implica direcionar a atenção para o que se destaca no momento presente» e equipara-se a «uma ação de observação participante, na medida em que implica estar consciente, de um modo profundo e direto, do que está a acontecer, à medida que acontece, com uma atitude de aceitação», refere ainda.

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A quem se destina esta terapia

O PBMI tem um caráter experimental e é aplicado em grupos com, no máximo, 15 mulheres. Consiste em «dez sessões semanais consecutivas, com a duração de duas horas, à exceção de uma das sessões, que dura um dia. Os maridos ou companheiros são convidados a participar em três», descreve Ana Galhardo. Conduzidas pela própria psicóloga, as sessões abrangem a realização de exercícios estruturados de mindfulness, mas também discussões sobre aspetos de estilo de vida vocacionadas para a psicoeducação.

Os objetivos vão desde a «promoção da aceitação, da disponibilidade e da abertura a experiências dolorosas, percebendo que é possível continuar com uma vida plena», à «introdução de alterações no quotidiano com vista a uma vida mais integradora de atividades gratificantes, muitas vezes negligenciadas face a características da infertilidade e das exigências do tratamento médico», refere ainda a especialista.

Eficácia demonstrada

Apresentada nos congressos da Sociedade Europeia de Medicina da Reprodução e Embriologia e da Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução, a metodologia viu a sua eficácia demonstrada por um estudo clínico com 55 portuguesas com uma média de 35 anos. Recrutadas através do site da Associação Portuguesa de Fertilidade, tinham sido diagnosticadas com infertilidade e a maioria tinha indicação para técnicas de reprodução medicamente assistida (sobretudo fertilização in vitro ou injeção intracitoplasmática de espermatozoide), encontrando-se em diferentes fases do tratamento.

Metade foram submetidas ao PBMI, as outras incluídas no grupo de controlo (sem intervenção). Todas preencheram questionários estandardizados para avaliar sintomas de depressão, ansiedade, vergonha, derrota, inflexibilidade psicológica, evitamento experiencial, entre outros, o que permitiu observar a evolução favorável do grupo submetido à intervenção, por contraste com o grupo de controlo.

Casos indicados

«Tendo em conta que a infertilidade e o seu tratamento médico são indutores de stresse, aprática de mindfulness revela-se adequada, independentemente do caso de infertilidade», considera Ana Galhardo. Deve, no entanto, ser despistada a «existência de psicopatologia grave que possa ter impacto no funcionamento grupal», caso em que «as pessoas serão encaminhadas para aconselhamento individual», adverte a especialista.

O programa deverá estender-se a outros países, estando em curso contactos com unidades clínicas e de ensino internacionais, mas para já o plano é «realizar novas edições e promover formação específica para psicólogos, de modo a alcançar um maior número de pessoas», refere a psicóloga. Em outubro de 2014, em Coimbra, arrancou uma das edições do programa. Potenciais interessadas em participar numa próxima podem contactar a investigadora através do e-mail anagalhardo@ismt.pt.

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Aprender com o mindfulness

Definido como a «consciência que emerge» quando se dirige a atenção para a experiência individual de uma forma intencional, no momento presente e sem julgamento, promove uma série de ensinamentos. Estes são os mais comuns:

- Distinguir pensamentos úteis de inúteis

«Os pensamentos não resultam sempre da nossa vontade nem estão sob nosso controlo. Muitos não ajudam no que pretendemos ou desejamos fazer e nem sempre têm uma tradução na realidade. Reconhecer que são apenas pensamentos é importante para não ficarmos enredados neles», refere a investigadora no Centro de Investigação do Núcleo de Estudo e Intervenção Cognitivo-Comportamental na Faculdade de Psicologia e Ciências de Educação da Universidade de Coimbra.

- Lidar com emoções negativas

«A disponibilidade para estar em contacto com pensamentos e sentimentos difíceis ou dolorosos permite viver de forma mais plena e com significado. Uma emoção negativa pode ser sentida sem ser destrutiva. Mas lutar com as experiências indutoras de sofrimento, tentando suprimi-las, eliminá-las, controlá-las ou modificá-las, tende a acarretar um acréscimo de sofrimento», sublinha a especialista.

Como funciona uma sessão de PBMI

Decorre em espaços sem conotação clínica e os exercícios são, maioritariamente, feitos em posição sentada e de olhos fechados.

1. Partilha

Tempo de apoio e suporte emocional, em que os participantes se conhecem melhor. É opcional, mas pode demorar até meia hora.

2. Prática formal

Exercícios usados nos programas de mindfulness para redução do stresse, seguidos de partilha de experiências sobre os mesmos.

Por exemplo:

- Body scan, em que se dirige a atenção para cada parte do corpo e identifica sensações (ou a ausência delas) sem as julgar (desconforto, dor, calor, frio e tensão, por exemplo).

- «Estar onde se está», em que as instruções vão no sentido de notar que, muitas vezes, a mente não está no espaço e tempo onde o corpo se encontra e de a trazer de volta.

3. Fecho

Normalmente, feito com o exercício três minutos da respiração, que consiste em focar a atenção nas sensações da inspiração e expiração, dirigindo-a depois para o corpo como um todo.

Texto: Rita Miguel com Ana Galhardo (psicóloga clínica e investigadora no Centro de Investigação do Núcleo de Estudo e Intervenção Cognitivo-Comportamental na Faculdade de Psicologia e Ciências de Educação da Universidade de Coimbra e docente no Instituto Superior Miguel Torga)