Um dia a Segurança Social vem cá a casa tirar-me os filhos. Lamentável, sim, eu sei, mas é verdade. E penso que serão os vizinhos a fazerem a queixa fatídica.
Eles já andavam intrigados no tempo do João, quando o miúdo acordava de 30 em 30 minutos (não é exagero, infelizmente é a verdade) e passava noites a fio a chorar. O facto de eu falar alto quando já todos estavam a dormir e não haver sons do quotidiano para abafar a minha voz também não ajudou. Na realidade, quem não visse pensava que tínhamos como hobby espancar a criança tal eram os berros e o choro a que ninguém ficava indiferente. E se eu dissesse que muitas vezes estávamos nós (mãe e pai, claro), sentados, calados e quietos, pasmos, a olhar para a criança quando ela desalmadamente chorava porque não queria estar no quarto? Pois é, ninguém acredita.
Mas já passaram dois anos e muitas viagens de elevador, muitos "olás" e "boas tardes", e sorrisos de orelha a orelha, que, certamente, contribuíram para um esquecimento seletivo da parte dos vizinhos. Afinal, até são pessoas simpáticas, pensam. Afinal, era a criança. Afinal, aquilo tudo vinha do 5.º andar e não do 3.º.
Depois veio o Tomás. Cabelos loirinhos aos caracóis, sorriso de derreter, simpático e falador. Um pequeno anjo. O problema é a sua imaginação fértil e estrondosamente criativa. Já nem me queixo das asneiras que faz e que inventa, mas sim do que diz.
Este miúdo, um anjo de sorriso meigo, é na verdade um terrorista disfarçado, e as negras constantes confirmam-no. Pontos no lábio, galos na cabeça, feridas na perna, negras na coxa e testa, lanhos no joelho, dedos entalados, unhas partidas. E depois, claro, qualquer um lhe pergunta, como foram feitas, como se magoou, e se chorou muito. Foi o papá, foi a mamã, foi o papá no sofá, foi a mamã no quarto, foi o João na cama. E caso o ouvinte fique intrigado, o miúdo também elabora o dramático conteúdo da história: Tii (Tomás) chorou muito, mamã tao-tao, João feio, dói-dói aqui, dói-dói acolá, dói muito, caiu com a mamã, papá com Tii no chão, muito tite (triste).
Mas o cúmulo dos cúmulos é entrar no elevador, no fim de almoço e de barriga cheia, com a criança a portar-se impecavelmente. O elevador pára num outro andar, e entram vizinhos. Encantados com o Tomás, tentam ser simpáticos e fazem conversa.
- Já almoçou?
- Não.
- Não???
- Não!
- Não teve papinha?
- Não!
- Tem fominha?
- Sim!
- Muita?
- Muuuta.
- A mamã não deu arrozinho ao bebé?
- Não!
- Não?? Coitadinho! E o bebé chorou?
- Sim!
- Muito?
- Muuto!!
Sim, eu sei. É uma questão de tempo até virem cá tocar à porta…
Marta Andrade Maia
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