Retratos Contados: Até aos 18 anos viveu em Moçambique mudando-se depois para Lisboa

Yolanda Lobo: Nasci num continente único, onde as crianças crescem felizes, descalças, brincam de sol a sol, são filhas da natureza e criam raízes que se agarram à terra como as lapas a uma rocha… Quem nasceu em Moçambique ou em qualquer outro ponto de África tem, forçosamente, uma postura na vida diferente pois que a magia desse continente perpétua em nós, dentro da pele e do coração para sempre!

Vivi sempre na Beira, junto ao mar, de frente para um mato imenso onde o som dos batuques me entrava pelo quarto ao entardecer e a luz do farol, em passagens ritmadas me varria a janela todas as noites. Foram 18 anos a ser iluminada pelo Farol do Macúti enquanto dormia, a ouvir estes sons étnicos e fortes, a sentir os cheiros poderosos daquele pedaço lindo de terra…

Do meu país conheci pouco. Porque sempre achei que teria o resto da minha vida para o fazer. Nunca me imaginei a viver fora de África. E nunca imaginei que sairia para não mais voltar… Mesmo assim, visitei muitas das cidades de Moçambique, da África do Sul e da Rodésia com os meus pais, pensando que mais tarde, na idade adulta, voltaria àqueles locais amiúde e com os amigos de sempre. Mas a vida trocou-me as voltas e esse plano ficou… adiado.

RC: Fale-nos um pouco da sua infância.

Yolanda Lobo: Tive uma infância muito, muito feliz! Muito cheia de aventuras, de ar livre, de partilha com os outros. Em Moçambique vivia-se assim: com os outros e para os outros. E sempre fora de casa. O clima proporciona e o espírito também. Nasci em 56, altura em que a televisão não existia e os momentos de lazer eram vividos na rua inventando brincadeiras e se usava a praia e o desporto como uma segunda escola. Tão depressa estava no topo de uma árvore a roer uma goiaba enquanto lia um livro de aventuras ou fazia os trabalhos de casa, como brincava aos índios e cowboys, jogava aos “queimados” com os amigos do “muro” (local de encontro ao final do dia), ou corria para os encontros dos escoteiros, para as aulas de patinagem, para a classe especial de ginástica rítmica, para as aulas de vela ou subia a Torre da Igreja do Macúti para diariamente tocar o sino e as badaladas que marcavam as 18h…

Vivia intensamente e feliz com um grupo de amigos que inventava brincadeiras loucas e divertidas, cheias de adrenalina e risos constantes. E á noite “desmaiava” na cama, morta de cansaço, pronta para me levantar às 5h30m e preparar-me para um percurso de mota até ao liceu, sempre junto ao mar. Das 07h até à hora do almoço era a parte séria que intervalava com novas brincadeiras: tínhamos um avanço realmente grande em relação a Portugal. A Coca-cola e a Fanta proporcionava-nos concursos de ioiô no recreio, as motinhas Peugeot eram às dezenas, todas alinhadas e prontas a levar-nos dali para fora mal a campainha tocasse. A forma de vivermos era aberta, sem preconceitos ou tabus. Vivíamos e pronto!

O futuro? Era certo e muito objetivo: cirurgia-geral! Não tinha dúvidas. Vocação, ambição, vontade e, ainda por cima, boas médias. Aluna do Quadro de Honra. Mas a saúde pregou-me a partida e fiquei de cama dois anos inteiros com outros 5 de recuperação… Planos adiados ou mesmo alterados. Mas fica para a próxima reencarnação, garanto-vos!

RC: Quais são as recordações mais “saborosas” que tem de Moçambique?

Yolanda Lobo: Há imagens, cheiros e sons que estão na minha memória e no meu coração para sempre. O cheiro da terra molhada, o barulho dos trovões, a imagem de uma tempestade (praga) de gafanhotos ou dos ciclones, o sabor do caju fresco e das papaias, o calor nos pés do alcatrão a ferver, o som da chuva e o fumo que saía do chão quando ela chegava…

E depois outras coisas tão boas… os mimos da minha mãe, o som da sua máquina de costura, o cheiro dos seus cozinhados, as gargalhadas do meu pai, o meu cão que me seguia o dia todo… As bicicletas ao monte no tal “muro” do final do dia. Os passeios a medo pelo mato, as brincadeiras à chuva com a lama tão macia (matope) a enterrar-nos… As brincadeiras com os meus irmãos, as missas cantadas, os ensaios do coro à noite… Os acampamentos selvagens na mata da Penhalonga, as horas infinitas no ginásio para preparar os saraus, os meus professores, a sua solidariedade e ajuda e a dos amigos e da cidade toda quando adoeci e quase morri…

Sobrava tempo para tudo. Sobravam horas para gastarmos como quiséssemos. Que é feito dessas horas? Onde andam elas agora que tanta falta me fazem?

(Não percam em breve a 2º parte desta emocionante entrevista)