A tua avó andava sempre com um caderninho e uma caneta para escrever graças novas ou retratos fieis do seus passado. O que é feito desses caderninhos onde a avó Tó foi escrevendo ao longo da vida. Costuma desfolhá-los ou estão guardados religiosamente?
Gustavo Santos: Esses caderninhos estão na minha secretária, bem junto dos meus livros. Olho-os, partilho-os e folheio-os muitas vezes. Ver a sua caligrafia ainda me emociona e lê-la ainda me faz senti-la perto. Muitos dos textos estão carregados de emoção, é como se a tinta das letras ainda estivesse fresca e ela viva.
A tua avó foi (e continua a ser), uma referencia na tua vida. É onde te inspiras quando te deslocas ao miradouro da tua existência. Fala-nos dessa energia, dessa cumplicidade, dessa luz que ilumina o teu caminho ...
Gustavo Santos: Sim, tenho-a como a grande referência da minha vida. Ao seu lado apenas coloco Mandela e Luther King. Ela é aquele ponto onde me foco quando tenho dúvidas a meu respeito. É a olhar nessa direção, e normalmente é de olhos fechados que a vejo, que me questiono. E quando tudo me parece difícil, recordo-me do que ela passou, de como ela se superou, e depois tudo na minha vida me parece fácil.
A tua avó viveu uma linda história de amor com a sua alma gémea. Fala-nos dessa história de amor.
Gustavo Santos: O amor não tem fronteiras, não pode ser avaliado e muito menos censurado. O amor é o amor, é tudo, é o que somos e temos de reaprender a ser. Nesse sentido, é me indiferente se o amor da vida da minha avó foi um primo direito dela. O importante foi o que deram um ao outro e o facto de, por terem escolhido arriscar e vivê-lo, o terem ancorado neste mundo. Era emocionante ouvi-la falar dele, quer fosse nos tempos de miúdos em que se conheceram ou décadas depois quando se reencontraram e entregaram até onde o corpo dele aguentou. Morreu-lhe nas mãos.
Muitos criticam os os mais velhos por voltarem a ter relacionamentos ... Como se houvesse idade a partir da qual os mais velho já não teriam possibilidade , nem capacidade de poder viver o Amor e serem felizes. Qual a tua opinião sobre este assunto?
Gustavo Santos: A minha opinião é que as pessoas andam tão longe do amor que quando alguém o encontra parece crime. Os velhos ainda são gente, ainda são gente que sente e quem sente não tem idade.
Queres que as pessoas voltem a acreditar nelas próprias e na possibilidade de se tornarem mais felizes. Par isso, usas o exemplo da tua avó, a sua força interior, determinação... Quais foram as 16 lições de vida que que aprendeste com a tua avó Antónia e que te te serviram de guia para elaborares o livro O Caminho?
Gustavo Santos: Não vou abordar as 16 lições uma a uma, deixo essa descoberta para quem estiver a ler o livro, no entanto uma coisa posso dizer, todas elas representam o amor na sua mais pura essência. Foi ao seu lado, enquanto todos os dias morria mais um bocado, que experimentei a verdadeira habilidade de amar, sem condições, sem expectativas, sem nada. O desafio era simples: tinha de dar o meu melhor, tinha de dar tudo, amá-la até às últimas consequências, entregar-me por completo e ainda assim vê-la morrer e ficar sem nada. Quando conseguimos amar a este nível e depois ainda somos capazes de aceitar e agradecer a oportunidade que vivemos, independentemente da dor, percebemos que a vida e esta experiência de estar vivo vão muito para lá do óbvio. Há todo um universo de afetos por descobrir.
Qual a maior declaração de amor que fizeste à tua avó? E a maior declaração de amor que a tua avó te te fez a ti.
Gustavo Santos: A maior declaração de amor que fizemos um ao outro foi o enorme respeito que sempre tivemos pelas escolhas de cada um. Muitas vezes lhe disse o que sentia e ela a mim, mas não há palavras que definam o amor, são os gestos e as ações que lhe dão corpo e nesse sentido, e é com uma emoção especial que o escrevo, amámo-nos muito.
Dizes no teu livro que ias ao lar diariamente visitar a tua avó, por ti e não por ela! Fala-nos da energia que precisavas e do bem que te fazia estar com a tua avó (mesmo quando ela não dava pela tua presença).
Gustavo Santos: Sim, temos de aprender que só faz sentido fazer as coisas por nós. De nada adianta fazer as coisas pelos outros por forma a parecer bonzinhos se não nos apetece ou não nos diz nada. E a explicação é simples: perdemos autenticidade, soamos a falso e desrespeitamos ambos os lados. O nosso porque não queremos estar ali e o dos outros porque não estamos por completo. Eu ia ver a minha avó, não porque ela estava a morrer, mas porque me fazia bem estar ao lado dela. Se fosse por ela, sempre que fosse contrariado ia cobrar-lhe ou perder a motivação pois muitas das vezes nem dava por mim. Ela era o meu passaporte para viajar dentro de mim. Aquele silêncio convidava a isso mesmo. Não há nada mais fundamental que uma visita ao nosso interior, só assim sabemos quem somos, o que queremos fazer e de que forma podemos contribuir para com os outros. Tudo o que és está dentro de ti.
Dizes que"Este não é um livro sobre a morte, mas sobre a vida". Fala-nos dessa comparação.
Gustavo Santos: O pano de fundo desta história é a morte da minha avó, mas tudo o que partilho é a vida na pura ascensão da palavra. O amor é vida, a paixão também, o perdão e a aceitação igual e por aí adiante. Mais, tenho a absoluta convicção que quem ler este livro não lhe será indiferente. Imagens suas ou de parentes próximos visitar-lhe-ão o peito e a dor aparecerá. O livro também foi escrito para que as pessoas pudessem visitar essa dor. Sim, aquela dor que ainda lateja e não ficou resolvida. A ideia, claro está, não é para ficarem tristes, mas sim para conseguirem curá-la e, posteriormente, transformá-la, por forma a terem uma vida mais equilibrada e feliz. Ninguém está bem com coisas por resolver!
Acabou de fazer um ano que a avó Maria Antónia te deixou fisicamente. Como foi viver esse 1º ano sem a avó Tó?
Gustavo Santos: Sim, é incrível como passou tão depressa. Parece que ainda a tenho viva na mão. Foi um ano intenso. Depois de morrer ainda estive muitos meses de volta do livro e a escrevê-la viva. E depois, e para quem acredita como eu na eternidade, temos comunicado muito. Agradeço-lhe cada triunfo. Na verdade, já estamos habituados a isto. Já fizemos muitas vidas juntos.
No lar foste assistindo à partida física da tua avó. Como é aceitar o fim de alguém que amamos? Como é saber que essa pessoa vai deixar fisicamente na nossa vida, que já não podemos pegar no telefone e ouvir a voz dessa pessoa...
Gustavo Santos: Acabou por ser natural. A morte só é o fim que conhecemos, de resto não passa de uma ponte para outra dimensão. Durante o processo doeu, chorei muito, mas depois fui aceitando a inevitabilidade. Uma coisa que me ajudou muito foi a consciência constante que estava a dar o meu melhor. Quanto ao não poder ouvir a sua voz, é verdade, mas posso continuar a senti-la, basta-me fechar os olhos. Além disso, já me visitou em sonhos algumas vezes e aí sim ouvi a voz dela. Estava igual, cheia de classe e bem disposta.
Que recordações ficaram tatuadas na tua mente nas horas que passaste ao lado da tua avó no lar?
Gustavo Santos: A glória do seu esforço, o seu lento acenar com a mão quando me ia embora, as suas graças quando o que estava a viver não tinha piada nenhuma, o definhar do seu corpo, a exposição da intimidade, a incapacidade, os cafunés que lhe fazia, as feridas na pele, a ausência de esperança, a competência das profissionais, os seus gemidos, os nossos olhares, as nossas mãos dadas, a luz do dia que ia baixando de intensidade com o passar dos minutos, o silêncio, as perguntas, as dúvidas e as respostas, o cheiro, as lágrimas, a vida.
Enquanto assistias ao afastamento físico da tua avó, que recordações da tua infância (e não só) te foram revisitando?
Gustavo Santos: Não me recordo. Sei que passei grande parte desses momentos no “Agora”, à procura de sentir tudo o que houvesse para sentir e de pistas que a minha intuição me pudesse dar acerca do que estava a acontecer, como tal, não me lembro de abdicar disto para recordar o que quer que fosse. Tenho hoje muito tempo para fazê-lo e faço-o.
O que sentes hoje em dia, quando comes uma laranja? (Quem ler o livro “O Caminho” entende a pergunta)
Gustavo Santos: Fizeste-me chorar. Não costumo comer, mas se calhar devia. Obrigado.
Os Retratos Contados apresentam-se como um projeto único e diferenciador, uma vez que nos focamos numa área diferente do habitual. O nosso objetivo principal, é o de falar das ligações entre avós e netos. A importância dos papel dos avós na vida dos netos e vice versa. O que achas deste projeto?
Gustavo Santos: Mais que sensível e enternecedor, é um projeto vital para despertar as consciências adormecidas de muito netos, filhos e das pessoas em geral. Tenho para mim que os avós são o elo mais importante de cada família. Representam a sabedoria, a consciência elevada ao extremo, seja pela dor ou pelo amor. E mais, sabem esperar por nós, os netos, que andamos desalmados por aí e nem damos conta deles. Tenho uma enorme estima pelos velhos e, sobre a vida, não há melhores pessoas para nos falarem sobre ela, não para fazermos igual, mas para sabermos o que tiveram de fazer e como o fizeram até chegar onde estão.
Através da nossa página queremos ainda falar de envelhecimento ativo, do abandono dos idosos, dar a conhecer atividades para serem feitas pelos mais velhos, ou para os mais velhos fazerem com os netos. Quando olhas para o nosso país, como vês a população mais velha?
Gustavo Santos: Abandonados. Mais do que sem recursos económicos, vivem sem afeto, sem amor à sua volta. É triste perceber que a validade da vida não acaba na morte mas sim na ausência de necessidade. Quando já não são precisos, despachamo-los e eles que se virem, sozinhos ou a depender de pessoas que não conhecem de lado nenhum. É importante ter a consciência que os velhos já foram novos, já amaram e foram amados, já acertaram e erraram muitas vezes e que, na melhor das hipóteses, um dia seremos como eles. Será que é assim que queremos passar os nossos últimos meses ou anos de vida? Um velho não é lixo, é um mestre e aos mestres dá-se respeito. E se não puderem estar em nossa casa, que sejamos visitas frequentes onde quer que estejam. Temos de encher os lares de vida, caso contrário, aqueles que um dia nos carregaram ao colo e encheram de beijos morrem ainda antes de morrer.
A tua avó viveu os últimos tempos de vida num lar. Que impacto teve para ti essa decisão? O que sentiu a avó Tó sobre isto?
Gustavo Santos: Para nós, família, foi uma decisão muito ponderada. Não queríamos de todo, mas a pneumonia que ela apanhou logo após celebrar os seus noventa e quatro anos levou-lhe a força das pernas. Começou, portanto, a precisar de acompanhamento a todas as horas do dia. Perdeu autonomia, ficou dependente. Para mim foi duro. Custou-me aceitar que aquela mulher teria de sair da casinha que tanto amava, mas depois percebi que não restavam alternativas. A minha avó desistiu no momento em que percebeu que ali seria a sua última morada. Eu também perderia a vontade de cá estar.
Que imagens tens dos outros idosos? Que opiniões ouviste dos outros idosos (em relação a viverem num lar), quando ias visitar a tua avó?
Gustavo Santos: Estavam quase sempre sozinhos. Digamos que numa ou outra tarde eu era a visita de todos. Depois, e porque obriguei a diretora do lar a não deixar a minha avó ir para a sala comum, a dor naquele espaço era enorme e nós queríamos estar apenas em família e levá-la para longe dessa realidade, perdi um pouco o fio à meada. A imagem que me ocorre, e decrevi-a no livro, é que parecia estar cada um a morrer para seu lado. A abstinência de esperança é talvez a visão mais aproximada do inferno.
Que palavras tens para dizeres à pessoas que:
Estão em lares
Gustavo Santos: Aceitem a condição e se ainda tiverem saúde procurem fazer amizades e falem, falem muito uns com os outros. Independentemente de tudo, e ainda que possa não parecer, são amados.
Familiares de pessoas que estão em lares
Gustavo Santos: Eu conheço a dor de se ir visitar alguém que amamos a um lugar destes. Dói muito e isso, ainda que amemos essa pessoa, acaba por nos afastar. Eu percebo isso. Eu próprio levei quinze dias a tentar perceber como ultrapassava a dor daquela primeira visita na sala comum. Ainda assim, nada disso serve como justificação para não agirmos, para não estarmos com eles e para não os enchermos de afeto. Têm de se superar, inventar estratégias, mas precisam ir. Se não forem, além de não estarem com quem amam ainda se vão culpar, a partir do dia em que essa pessoa morrer e para sempre, por não terem estado. Eles merecem e nós conseguimos.
Auxiliares que trabalham em lares
Gustavo Santos: Tenho um enorme respeito e admiração pela vossa missão. Escolheram amar os desconhecidos, dar colo aos abandonados e alimentar os esfomeados. Para vocês uma gratidão enorme. Tiveram um papel decisivo na extensão da qualidade de vida da minha avó. Fizeram o que eu não seria capaz e o que outros simplesmente não quiseram saber. A vossa contribuição enche-me de esperança.
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