O diagnóstico de cancro foi-lhe apresentado aos 13 anos, enfrentou-o com a ajuda da fórmula mágica que combina positividade e humor... Longe de imaginar que na sua vida a palavra cancro tinha vindo para ficar.
Marine Antunes ultrapassou o linfoma não hodgkin, mas cedo percebeu que a sua história serviria para ajudar os que como ela são 'atropelados' pelas doenças oncológicas.
Abraçou a missão de mudar a forma como se falava de cancro em Portugal, criou o projeto Cancro com Humor, chegou a milhares de pessoas com as suas palestras, lançou livros sobre o tema e deu asas à Associação Humor Relevante.
Ainda que cheia de projetos, Marine estava incompleta. Faltava-lhe encontrar o verdadeiro poder... e acabar com "a música do violino" sempre que se fala de cancro em televisão. Aos 33 anos ganhou coragem e lançou a série 'À Procura do True Power'. Em entrevista ao Fama ao Minuto, Marine conta-nos tudo sobre esta ideia pioneira onde o drama é substituído por positividade e os 'violinos' dão lugar à melhor das bandas sonoras: as gargalhadas de quem não quer deixar de sorrir.
A questão aqui não é fazer piadas com cancro, não é isso, é permitir que o humor entre na nossa vida apesar do diagnóstico
Marine, lançaste recentemente uma nova série - 'À Procura do True Power'. Que projeto é este e como é que ele nasce?
Esta série é um desejo que tenho há muitos anos. Há oito anos, na verdade, e nasce desta vontade de quebrar barreiras e falar de cancro num outro tom, de uma outra forma. Normalmente, quando vamos aos programas de televisão e quando somos entrevistados é sempre de uma forma muito melodramática, com a música do violino por trás, mas nem todas as pessoas diagnosticadas com cancro se identificam com esta forma de abordagem. Esta série procura ir ao encontro dessas pessoas. Não são elas que vão a estúdio, sou eu que vou ter a casa delas, ao restaurante favorito, à sua zona de conforto, e conversar com identificação, com sentido de causa, porque também sou sobrevivente oncológica. Falamos com naturalidade, humor e leveza... e também falamos de cancro. A ideia aqui é dar voz à pessoa que tem cancro, valorizar a pessoa e não a doença. O foco não está na doença, está na pessoa.
Tinha alguns convidados pensados, pessoas que faleceram. Desmotivei muitoO que é o 'true power' [verdadeiro poder], tu já o encontraste?
O 'true power' são estas pessoas incríveis, que apesar do diagnóstico vivem a vida com leveza, com humor. A questão aqui não é fazer piadas com cancro, não é isso, é permitir que o humor entre na nossa vida apesar do diagnóstico. Neste primeiro episódio, com a Patrícia, garanto-vos que depois de verem vão conhecê-la, vê-la e não ter aquele sentimento de pena ou dor com que ficamos depois de algumas entrevistas. Nós mostramos a Patrícia que é roqueira, que adora conversar, percebemos os seus gostos, os seus hobbies.
De que forma escolheste as pessoas que vão protagonizar a série?
São pessoas com esse poder dentro de si e que não se deixam vergar, nem que o cancro domine a sua vida. Ainda não estão todos escolhidos, vão sair 10 episódios ao longo do ano, alguns ainda vamos gravar. Nós acabamos por nos encontrar todos uns aos outros. São pessoas que se identificam com esta forma de estar, que conheci em determinados contextos ou que me foram dadas a conhecer. São pessoas que admiro, pessoas que se identificam com esta forma, com esta fórmula.
Dizes que esta série já estava pensada há oito anos, o que a fez ficar na gaveta tanto tempo?
Isto ainda é muito difícil, ainda estou a exorcizar alguns demónios. Agora estou numa fase da minha vida em que me sinto capaz de fazer isto, em que tenho uma plataforma para dar voz a estas pessoas, na altura não. Esta série é apoiada pela Uriage, na altura não tinha apoios. Depois, a verdade é que tinha alguns convidados pensados, pessoas que faleceram. Desmotivei muito, deitou-me muito abaixo. Nós aqui não escondemos a vulnerabilidade, faz parte, isto é difícil para todos.
Nunca tive coragem mesmo para avançar, quase que avançava e depois não acontecia, até que na pandemia acabaram-se as desculpas. Estava numa conversa com o Tiago [Castro, o marido] e ele disse-me algo que desbloqueou isto: 'temos de fazer essa série porque ela não é sobre ti, é maior do que tu'. Acho que era o estimulo que precisava, foi isso que fez com que arrancasse agora.
A série está disponível nas plataformas digitais, no YouTube. Gostavas que fosse aposta de um canal e chegasse à televisão?
Adorava. Nós estamos no YouTube, no canal Humor Relevante, mas a internet é elitista. Se calhar, a população mais vulnerável não sabe ir ao YouTube ou não tem acesso. Obviamente que para mim era um sonho estar na televisão, porque ia tornar-se mais acessível, porque ainda não foi feito e porque era uma resposta que colmata uma falha. O nosso sonho é chegar à televisão, ainda não conseguimos, mas como já se percebeu não tenho medo de sonhar.
Achas que ainda é uma falha da televisão nacional, não conseguir falar de cancro de forma menos dramática?
Acho. Sou convidada algumas vezes para ir aos programas da manhã, fico muito grata por isso, mas de facto seria importante este programa estar na televisão. A verdade é que também já tive cancro, é completamente diferente conversar com um doente quando já se passou por isso do que quando não se tem. Até mesmo para o convidado, há uma abertura e uma partilha completamente diferente. Acho que íamos colmatar uma falha ao chegar à televisão.
Não conheço nenhuma pessoa com cancro que diga que adora ter pessoas negativas à sua volta
Há uns anos também colmataste uma falha que existia a nível nacional com a criação do projeto Cancro Com Humor.
Exatamente, e o Cancro com Humor continua. Através desse projeto faço palestras, lanço livros, a série é quase um upgrade. É um projeto, dentro do projeto. E esta série também é isso, é forte, intensa, verdadeira, mas também é humor.
Sendo tu sobrevivente oncológica, quando descobriste que o humor podia fazer toda a diferença no processo de tratamento?
O humor sempre fez parte da minha vida, da vida da minha família. Aprendi com os meus pais, os meus tios e a minha avó a rir-me das coisas difíceis que nos aconteciam, a relativizar os problemas. A minha família sempre foi assim e está muito no meu ADN, mas depois quando tive cancro, sem dúvida, foi uma das nossas ferramentas, sobretudo de quem me cuidou. A minha mãe e as pessoas que estavam à minha volta desdramatizavam através da alegria, e foi fundamental. Sem dúvida que ter pessoas à minha volta que o fizessem, permitiu-me perceber que era este o caminho... Pelo menos para mim.
Se não tivesse tido cancro não tinha este projeto
A propósito, é necessário encontrar forma de respeitar quem não vê ou sente o processo da doença dessa forma positiva?
Sem dúvida que todas as formas de estar têm de ser respeitadas, mas pessoalmente não conheço nenhuma pessoa diagnosticada com cancro que diga que adora ter pessoas negativas à sua volta. Agora, se existirem pessoas que não sintam aí, nesse encontro com a alegria, com o amor - e para mim o humor é o maior ato de amor, esta frase é do Tiago -, e que encontram na solidão, na dor, a solução, está certo. Acho que às vezes as pessoas podem é não entender a solução do humor. O humor não é tornar isto leviano, nós não estamos a falar de forma leviana, estamos é a tentar que a nossa vida seja um bocadinho mais leve, garantidamente isto é mais fácil de lidar se às coisas à nossa volta forem menos complicadas.
Isso faz com que ao criares estes projetos tenhas de encontrar um meio termo para não ferir quem não se revê?
O meu meio termo é o facto de falar sobre mim, se não tivesse tido cancro não tinha este projeto. Não estou a falar da plateia, estou a falar de mim e de mim posso dizer o que quiser. A questão da identificação é a minha defesa. Nas palestras tenho um humor mais light, se calhar mais democrático, e talvez nos meus textos consiga ser mais audaz. Naturalmente que uma palestra para crianças do 5.º ano não é igual a uma para doentes oncológicos de 60 anos.
No cancro, da mesma forma que cai o cabelo também caem as máscaras
O DJ Magazino, que morreu em 2021, disse-nos em entrevista uma frase muito forte: "sou mais feliz agora do que antes de ser diagnosticado com leucemia". Acreditas que algumas pessoas conseguem encontrar-se no processo de doença?
Não diria encontrar-se na doença, mas as pessoas encontram-se na vulnerabilidade. A vulnerabilidade também traz muito amor. Quando nos entregamos aos médicos, aos amigos, à família e aceitamos a nossa condição, às vezes, também caem capas. Pode ser uma oportunidade, embora nem toda a gente a veja, de encontrar novos valores, de perceber quem são os verdadeiros amigos, de perceber os caminhos que não nos fazem feliz. Acabam-se as desculpas, e quando se acabam as desculpas deixamos cair aquilo que nem era assim tão válido, nem tão verdadeiro. No cancro, da mesma forma que cai o cabelo também caem as máscaras. Garantidamente, quem não nos quer bem não está connosco, é quase como um encontro com a verdade da nossa vida, e pode ser absolutamente renovador. Há muita gente que me diz: agora tenho a certeza de que não quero voltar para o meu emprego. Há casamentos que acabam, outros que retomam. De repente temos de olhar para nós e priorizar-nos a 100%, ou cuido de mim ou morro. Isto mete as coisas no seu devido lugar.
Agora, como em tudo na vida, nem toda a gente aprende porque tem cancro. Há um texto meu, num dos meus livros, de que gosto muito, chama-se ter cancro não é ser santo. Nem toda a gente se torna melhor pessoa, nem toda a gente tira as devidas aprendizagens com os acontecimentos da sua vida, isso é uma escolha individual.
Tu tiveste cancro numa fase ainda muito jovem da tua vida, com 13 anos. Achas que essa fase acabou por definir o teu caminho?
Sem dúvida. Tinha 13 anos, estava ainda a formar a minha personalidade, a crescer, e acabei por percebe o que era ou não importante. Já era uma miúda muito justa, muito sensível, tinha esse lado humano muito desenvolvido, mas depois mudei tanto, engordei tanto, perdi cabelo, pestanas, sobrancelhas. Desde muito nova trabalhei o amor próprio e percebi muito cedo o que era importante no outro. Isso foi importante para decidir as minhas relações, a minha profissão, aquilo que queria fazer com a minha vida. Sem dúvida que acabou por definir o meu caminho.
Quando me dizem que existem esses limites, pergunto: qual é o ser humano que tem esse super poder
E quando é que percebeste que podias juntar todas as ferramentas, aquilo que aprendeste com a tua formação em comunicação e a tua experiência como doente oncológica, para ajudar os outros?
Foi muito interessante. Trabalhava numa empresa de novos conteúdos relacionados com comédia, tinha tirado um curso de stand up comedy. Fiz stand up durante três anos em bares, em eventos, era outro tipo de humor, eram piadas sobre a atualidade. De repente estava em casa a desabafar com um amigo, estava muito perdida, e disse-lhe: não sou boa em nada. O meu amigo disse-me: 'Marine, não digas isso. Se há coisa que me lembro é de teres aprendido muito com o teu cancro, ajudaste muita gente à tua volta'. A partir daí, disse-lhe que tinha de desligar o telefone e criei a ideia de juntar o humor, a comunicação positiva, a escrita, a oralidade... Deixei o stand up comedy porque ali o meu objetivo era apenas fazer rir, sobre qualquer tema, mas aquilo não me satisfazia, não me enxia o coração.
É bom fazer rir, é divertido, mas não me chegava. Foi muito interessante perceber que consigo ajudar outras pessoas, impactar positivamente através de uma história.
Tendo em conta a tua ligação e até formação relacionada com a comédia, acreditas que existem limites para o humor?
Acho que os limites para o humor são definidos por cada um de nós. Quando me dizem que existem esses limites, pergunto: mas quem é que os define? Qual é o ser humano que tem esse super poder de dizer, sobre batatas podemos brincar mas sobre lulas não. O limite somos nós que os delineamos. Sou eu que tenho de ter o bom senso de perceber que se fizer uma piada em que toda a gente se está a rir menos o visado, num grupo de amigos, por exemplo, não estou a fazer bem.
Piadas com cancro a mim não me afetam, agora se alguém me mandar uma piada por causa da minha celulite já vou ficar ofendida. Mas sou eu que defino, lá está, os limites são individuais.
Além da série, dos livros e das tuas palestras individuais, também criaste um projeto com o teu marido, o ator Tiago Castro. O 'Se Podes Sonhar Podes Concretizar' continua a existir?
Vai sempre acontecer. Neste momento não estamos nas escolas a fazer palestras, porque felizmente o Tiago lançou-se nos seus espetáculos, 'Daqui de Baixo', está a trabalhar como ator, eu também faço palestras todos os meses em hospitais, empresas. O nosso trabalho individual acabou por ocupar o nosso tempo. Aquilo que fizemos de estar dedicados unicamente às escolas e corrermos o país todo, foi absolutamente incrível. Mas naturalmente que quando recebemos um convite nesse sentido adoramos, adoro partilhar palco com o Tiago. Eu faço a minha palestra, ele faz a dele e adaptamos. É sempre maravilhoso.
Quando é demais, digo às pessoas do meu dia-a-dia: hoje não quero falar sobre cancro
Aliás, o Tiago Castro também está contigo nesta série.
A série é tanto minha como do Tiago [Castro], porque além de ele ser uma das pessoas que filma - nós fazemos de tudo - e que produz, por exemplo a cena do violino, no primeiro episódio, foi ideia dele. Nós trabalhamos um para o outro. Vou com ele aos espetáculos, ajudo-o a bater texto... No fundo, o que é meu é dele e o que é dele é meu. Somos completamente uma equipa.
Além de todos estes projetos, ainda és presidente da Associação Humor Relevante que, no fundo, acaba por englobar tudo. Não é?
Sim. Nós criámos a associação na pandemia e dentro dela o programa 'Na Minha Pele', que amei fazer, onde fazia entrevistas com pessoas famosas que tinham passado pelo cancro ou estavam relacionadas de alguma forma com a doença. Entrevistei o estilista Miguel Vieira, o Raminhos, que a mãe morreu de cancro, o Dr. Laranja Pontes, antigo presidente do IPO. E os episódios deste programa ainda estão disponíveis no canal de YouTube 'Humor Relevante'.
Disseste que um dos motivos que te levou a 'arrumar' esta série na gaveta foi o facto de teres visto partir alguns amigos. Acredito que este trabalho tenha tanto de inspirador como de difícil e até pesado. Como consegues gerir todas estas emoções?
Todos os dias tenho de me interrogar porque é que faço isto. Faço porque há muita gente que sobrevive e muita gente que precisa destas histórias positivas. O fatalismo não pode fazer parte desta minha forma de estar. Muita gente, todos os dias, é diagnosticada com cancro. É uma realidade absolutamente transversal a todos nós, não há ninguém que não conheça alguém que teve ou tem cancro.
Tem de haver esperança e positividade, mas tenho momentos em que me vou abaixo. Confesso que esta série mexeu com muitos fantasmas. Há momentos em que preciso de um tempinho, fazer assim uma 'fugidinha', estar 'off' um dia ou dois. Recebo todos os dias estas histórias, não sou médica, não sou psicóloga, sou só uma pessoa normal... então, às vezes, é demais. Aprendi ao longo da vida a respeitar-me. Quando é demais, digo às pessoas do meu dia-a-dia: desculpa, mas hoje não quero falar sobre cancro. Preciso dessa separação.
És uma pessoa muito intensa, quem te segue nas redes sociais consegue percebê-lo. Tão rapidamente choras, como estás a rir. Mas a verdade é que muitas das vezes em que choras é por gratidão.
Completamente. Esta é a minha luta, aquilo que mais quero na vida é aprender a lidar com as minhas emoções, que elas não me engulam. Às vezes gostava de ser menos intensa, mais leve, mas sou muito grata. Tenho uma vida muito tranquila e é isso que me dá paz. É na minha vida muito simples que encontro o equilíbrio para isto tudo não me engolir, porque a verdade é que estou a trabalhar e a fazer projetos nesta área sem parar há 10 anos. Felizmente, tenho tido muita sorte e as coisas têm corrido muito bem.
Muita gente, e até a minha família, pergunta: quando é que falas de outro tema? Nunca te fartas?
Entre tantos projetos já concretizados, o que é que ainda te falta fazer?
Falta-me que um livro meu esteja no top 10, que esta série esteja na televisão ou noutra plataforma que a torne mais acessível, falta-me ter o meu próprio programa, com este tema ou outro, e falta-me levar esta palestra a mais sítios fora de Portugal. Já dei palestras no Brasil, Cabo Verde, Luxemburgo e foram experiências absolutamente gratificantes. Mas sou muito feliz com o que tenho agora, não sou nada de pensar no futuro, nem consigo fazer planos a longo prazo.
A menina de 13 anos alguma vez imaginou que o cancro ia continuar a fazer parte da vida dela, mas de uma forma tão diferente?
A menina de 13 anos não posso dizer que nunca imaginou, porque sou tão sonhadora. No internamento já fingia que estava nos programas de televisão e escrevia o meu diário, com muita piada, no fundo já projetava. Sempre tive a certeza e a convicção de que vim a este mundo para ser feliz, no fundo é quase como uma constatação daquilo que já sabia que estava destinado para mim. Também acredito, tenho a crença profunda, de que somos criadores da nossa realidade e todos os dias alimento a positividade. Sempre soube que não ia ter um emprego comum, sempre soube que ia viver os meus sonhos.
E a verdade é que encontraste uma forma de ser feliz a falar de cancro...
Muito. Muita gente, e até a minha família, pergunta: quando é que falas de outro tema? Nunca te fartas? Digo sempre a mesma coisa, também não perguntamos a um futebolista quando vai jogar basquetebol, pois não?
A primeira palestra que fiz foi uma palestrinha, estava muito nervosa, a minha comunicação não foi tão fluida assim, tinha 21 anos e hoje tenho 33, sinto que este caminho é necessário. É preciso errar para sermos muito bons naquilo que fazemos. Hoje só é possível a série 'À Procura do True Power' porque estou há 10 anos a colecionar histórias. Sou muito feliz a impactar positivamente, adorava que o meu projeto não fosse preciso para nada, porque esta doença simplesmente deixava de existir, mas não é isso que nos dizem as estatísticas. Enquanto conseguir contribuir 1%, já fico muito feliz.
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