Retratos Contados (R.C.): O que é que achas dum projeto como os Retratos Contados?
Mafalda Arnauth (M.A.): Acima de tudo, acho que é algo de grande dignidade. O papel dos avós é mais do que nunca essencial nesta sociedade e as famílias têm de recorrer cada vez mais aos avós. Parece-me é que nos estamos a esquecer um bocadinho de dignificá-los também, dar aos mais novos essa noção de herança, de valores e de raízes, de continuidade. Os avós estão mais presentes do que nunca nesta sociedade.
R.C.: Acabaste por fazer ponte para a próxima pergunta, que é: Quando olhas para o nosso país como é que vês a população mais velha?
M.A.: Há um número grande de avós que estão a ser chamados a dar apoio e a dar continuidade à educação dos filhos dos seus filhos, e isso mostra muito da força que há nesse amor duplo, enquanto pais dos pais… Tenho uma visão disto mais precisa agora, se calhar há alguns anos era um bocadinho menos atenta. Mas isto tem um revés: a percentagem de avós que têm realmente oportunidade de viver em plenitude essa liberdade de se ser mais velho, de ter mais experiência, outras vivências, acaba por não acontecer tanto. Mesmo os avós que não estão a trabalhar têm direito a viver a sua reforma doutra maneira, a não terem de ser novo cuidadores…
R.C.: Para ti, qual é o drama maior dos idosos? Será a solidão, as doenças, o abandono?
M.A.: Como saio muito para outros países, tenho visto outro tipo de dinâmica da parte das pessoas mais velhas, da sua procura de algo mais na velhice, e do próprio interesse. Aqui é muita tradição e as obrigações, há um bocadinho essa prisão emocional. Mas são as próprias pessoas que criam esse espírito. Também me parece que há muita negligência no manter dos laços, na tentativa de fazer a ponte entre as gerações. Isto agrava cada vez mais a solidão, e até para os mais novos ela começa cada vez mais cedo. Se há uma guerra familiar, essa guerra resolve-se com «nunca mais se falam, nunca mais se vêem, nunca mais se encontram». Há uma falha na nossa capacidade de superação, não é à toa que os casamentos duram cada vez menos e a família também.
R.C.: Então existe uma crise de valores?
M.A.: Eu acho que é onde ela se reflete.
R.C.: Achas que é necessário fazer uma revolução de valores?
M.A.: Há coisas que têm de mudar. Por exemplo, é curioso porque os meus sobrinhos dizem que eu sou a única adulta que não lhes dá o telemóvel para brincarem. Dizem: "Mas só tu é que não nos emprestas tia." Eu não sou como as outras pessoas.
R.C.: Um dia mais tarde eles vão perceber que não é por ser má que a tia não dá.
M.A.: Mas eu explico, e são várias as razões. Se eu lhes der algo mais interessante para fazer, é fácil desviar a atenção do telemóvel.
R.C.: Vamos falar de histórias de família. O que é que tu sabes dos teus avós maternos e paternos?
M.A.: A minha situação é realmente particular porque os meus pais são os dois mais novos dos filhos mais novos de famílias numerosas. Convivi com o meu avô paterno até aos dois anos, mas os pais da minha mãe eu nunca conheci porque a minha mãe ficou órfã aos quatro, cinco anos. Parte do meu universo familiar é feito das histórias que ouvi e acho que ao longo dos anos aquilo de que me lembro será mais um misto de filme que eu própria criei e do acreditar que realmente tenho uma qualquer comunicação com eles. Eu acho que isso vai preenchendo os espaços em branco. Mas desses dois anos de convívio há realmente memórias que são para sempre.
Os meus avós paternos são da Beira Baixa, do interior do país; famílias humildes, e onde o campo e os animais eram para mim o melhor brinde da vida. Portanto há toda essa ligação à terra, ao fazer o pão, a levar as ovelhas ao pasto. O meu pai andava sempre com câmaras de filmar e filmou-me a mim e ao meu avô uma vez, uma bulha qualquer por causa do microfone. Tenho essa imagem bem presente, aliás toda a vida me lembro de ter sentido saudades de conviver com os avós e de achar que os avós viriam pôr ordem no desassossego que às vezes os filhos deixam imperar. Quem é que põe os meus pais em ordem? (risos)
Quando o meu avô morreu nós estávamos no Algarve de férias, não havia telemóveis e só encontraram o meu pai pela rádio, foi assim que soubemos da morte dele. Os meus pais dizem que eu tinha estado o dia inteiro a chamar pelo meu avô.
R.C.: Existe uma ligação extra-sensorial?
M.A.: É provável.
R.C.: E como é que os teus avós se conheceram? Fazes ideia de como foi a história deles?
M.A.: Estamos a falar de regiões em que há grandes proximidades familiares. Penso que não é o caso de serem primos, mas existia uma qualquer ligação de sangue…
R.C.: Casaram novos?
M.A.: Sim, os avós maternos casaram novos. O meu avô paterno já tinha tido dois casamentos, era viúvo duas vezes. A minha avó fazia uma diferença de quase quarenta anos do meu avô, e juntos tiveram sete filhos. Era uma mulher muito humilde, inclusive no registo dela não está o nome dos pais.
R.C.: Existem fotos desses avós?
M.A.: Existe uma foto que eu consegui resgatar há muito pouco tempo mas é uma foto retocada.
RC: Quando olhas essa foto não consegues ver uma característica tua neles?
M.A.: Consigo. Creio que tenho uma boa mistura das duas famílias, talvez seja até mais óbvio nos meus avós do que nos meus pais. Eu disse sempre que era a filha adotada, eu e o meu irmão (risos). Somos os dois muito morenos, muito mouriscos, mas os meus pais são branquinhos de pele. Fomos os dois largados à porta.
R.C.: E então o que é que mudou na vida dos teus pais desde que os seus sobrinhos nasceram?
M.A.: Os meus sobrinhos vêm um bocadinho tarde na família, o meu irmão já estava nos quarenta, os meus pais já desesperavam. Realmente, são uma prenda. Eu acho que toda agente se está a reinventar através deles, inclusive eu. O meu sobrinho às vezes dizia «a avó» referindo-se a mim, porque eu acho que de tanto desejar ter a presença duma avó que pusesse ordem no recinto acabo por assumir eu esse papel. Às vezes até com os meus pais! Mudou tudo. Mudaram os hábitos… No caso da minha mãe, ela tanto é a avó palhaça como é a avó que é chamada a cumprir e a cuidar. Ela não tem limites, não sabe impor limites. Então é aquele misto explosivo da pessoa que quer cuidar, e que dá aquele mimo que é suposto os avós darem. Há alturas em que passa muito tempo com eles. Os outros avós são brasileiros, vêm também umas boas temporadas, quando podem.
Digo muitas vezes que, com alguma pena, estes avós com quem convivo diretamente precisariam de ter mais autonomia e mais realidade para poderem ser também outro exemplo para os netos. Pressiona muito a relação, é cansativo, estamos a falar de crianças muito ativas. Os meus sobrinhos são grandes, possantes, o mais pequenino agora, até eu tenho dificuldade! E a minha mãe é mais pequena que eu, e tem uma condição cardíaca que neste momento nem sequer lhes pode pegar ao colo. Só que ela é fatalista, é kamikaze.
R.C.: É o que for…
M.A.: Sabes, a minha mãe ficou órfã muito cedo e a morte da minha avó ficou realmente marcada de uma maneira dramática, há todo esse espírito presente. Foi a derrocada duma casa comercial que tinham, aquelas casas antigas, e ela morre na arcada da casa a chamar pelos filhos, que acreditava terem ficado soterrados dentro da casa. Afinal eles ficaram protegidos debaixo duma mesa de pedra, mas ela não se apercebeu. Aquela aflição creio que acabou por passar muito para os filhos, a tragédia, o não haver consolo, o não lhe puderem mais dizer nada…a minha mãe, sendo a mais nova, cresceu com as irmãs mais velhas, viu-as a casarem rapidamente, e a fazerem casamentos difíceis. Foram, a vários níveis, muito mal tratadas e a minha mãe vivia nesta ambiguidade de ser a mais nova e de por isso ser um bocadinho mais mimada que os outros, mas sempre na carência daquela presença que para ela era tão importante. Há situações em que o nosso comportamento é mesmo de inversão de papéis. Se ela estiver numa crise maior, sou eu quem a pega ao colo. É por isto que eu percebo que os meus sobrinhos às vezes me chamem avó (risos).
Mais do que muitas coisas, o que as crianças precisam a maior parte das vezes de sentir é a presença daquele adulto, que esteja firme, bem estruturado, e com os meus sobrinhos, desde muito pequeninos, a coisa que eu mais lhes digo é “eu estou aqui”. Falo sempre de olhos nos olhos, não falo enquanto eles não olham para mim. O mais velho já está naquela fase de desviar a cara, e eu digo: “A tia não vai sair daqui, vais ter de falar comigo, vais ter de olhar para mim.” E, quando tenho de chamar a atenção, digo as coisas, sou dura. Ele está na fase que faz muitas birras, birras teatrais, que muitas vezes escondem outras coisas que na verdade ele quer chorar. Aquilo que ele está a fazer naquele momento é uma manipulação, e ele fica tristíssimo porque é «caçado». Mas eu chego ao fim da conversa e digo: “eu estou aqui “.
Embora eu saiba que o meu papel de tia é de acompanhamento e entretenimento, eu não prescindo de passar os valores que acho que vão ser importantes para eles, já não é só os que me passaram a mim. São coisas básicas, de bom senso. E é por isso que, em geral, eu sou dos adultos a quem eles têm mais respeito, porque não sou agressiva, nunca fui violenta, mas sou muito assertiva e há coisas que não dou mesmo margem de manobra. E eu sei que a tentação de ser mais permissiva existe, não estando com eles todos os dias, apesar de vivermos muito perto.
Creio que isso me vem da minha avó paterna, porque as histórias que o meu pai conta falam de uma mulher muito humilde, analfabeta, mas com um grande bom senso, de bom senso, tinha aquela sabedoria instintiva, de saber educar. O meu pai conta que em casa dos meus avós não teve água nem luz canalizada até aos meus doze, treze anos. Chegaram a ser quinze irmãos, vários não sobreviveram com as meningites, e viviam todos numa divisão, numa sala e num quarto. A água, ia-se buscar com os cântaros e o meu pai conta que pedia à minha avó para o levar ao colo e ela levou um dia, levou dois, e ele a partir daí não queria outra coisa. A dada altura, ela levou-o mas depois na volta ele queria colo outra vez e ela disse: “Filho, agora tens de vir tu, a casa está ali “. Ele diz que fez birra o caminho todo…
R.C.: Isso é na região da Beira Baixa?
M.A.: Pedrógão Pequeno. Eu ainda fui muitas vezes buscar água de cântaro. Claro que as minhas primas diziam-me sempre: “mas como é que tu gostas daquilo?” Há o lado pitoresco do campo, e eu nunca fui tão feliz. A roupa que eu levava de férias nunca voltava, ou seja, chegava completamente destroçada, mas era-me natural… A minha avó, além de muito religiosa, era uma pessoa dotada de uma sensibilidade muito especial, para as ervas, para as mezinhas. Eu sempre tive curiosidade, desde a Naturopatia às coisas mais esotéricas. De todos os irmãos é o meu pai quem tem a mesma veia que eu, tanto que agora decidiu investigar esse lado mais medicinal, e claro que vêm ao de cima as histórias da minha avó, das almofadinhas que ela fazia do azeite para afastar o mau-olhado. Devo dizer que não há medicamento tão poderoso como as gotas de azeite. É impressionante. Eu sofri de enxaquecas muitos anos e o meu pai também, e um dia a minha mãe veio ter comigo a casa e eu estava num desses estados, eram dores de cabeça que eu não me mexia. Ela lá desapareceu e passado um bocado veio ter comigo e pergunta: “então, já estás melhor?” Eu estava finalmente a conseguir levantar a cabeça e ela deixou-me estar. Quando cheguei à cozinha, tinha um prato com água e o azeite. O que se dizia é que as gotas quando caíam, o azeite deslaçava, é uma coisa impressionante, eu nunca vi o azeite misturar com a água. Quantas vezes fiz eu o mesmo em viagens, com concertos, e as pessoas achavam que eu era maluca quando pedia um prato de água e azeite…
R.C.: E o que achas que recebeste em herança das pessoas que te estão para trás?
M.A.: A herança que me deixaram foi esta ligação com a Natureza, sobretudo pelo lado do meu pai. A liberdade de estar no campo, de poder estar à solta, a segurança que sentia mesmo sendo um lugar cheio de armadilhas. Houve várias fatalidades, até com primos, mas eu tive sempre aquela audácia de nunca ter medo, de não ter problema nenhum, de ir quase sozinha e embrenhar-me pela Natureza dentro. Ficou-me pela vida fora.
De resto, são aqueles com quem eu convivi, desde os meus pais aos meus tios, são um legado carnal e um legado de histórias que é mais abstrato para mim, das emoções e até da espiritualidade. As histórias que eu sempre ouvi são muito marcantes porque, como eram muitos irmãos, havia das coisas mais diversas, mais difíceis. Ainda hoje, estes tios têm filhos e cada um dos filhos multiplica-se em situações complicadas. Portanto, acho que cresci com uma capacidade de encarar a vida comum duma forma diversa dos outros, das pessoas para quem crescer e entrar na vida real constitui um choque. Essas histórias formaram-me muito.
Com os anos que passam, é como se sentisse que o legado maior dos meus avós era o quererem que eu fosse boa pessoa. Não sei se são eles os meus objetores de consciência ou se eles falam mesmo comigo e insistem nessa nota porque, sobretudo o lado do meu pai, a perceção que eu tenho é isso: que eram pessoas simples, mas honradas, muito justas também. Era uma casa onde nunca se passou fome, como diz o meu pai. Era o último dos filhos e o resto duma sardinha era o que havia para ele, mas o facto de viver no campo sempre garantiu que ele tinha ao seu alcance outros recursos. Eu gosto de conforto tanto como qualquer outro, mas nada me dá tanto prazer como estar à lareira. O meu Inverno é de frieiras.
R.C.: O fogo tem qualquer coisa…
M.A.: É nutritivo.
R.C.: É uma solidez …
M.A.: A imagem que guardo da minha avó paterna, Maria do Carmo, é de uma mulher grande, maior do que o meu avô, que era baixinho, magrinho, pequenino.
R.C.: Como se chamava o avô?
M.A.: Chamava-se João. O meu avô foi à guerra de 1914, foi um homem sempre muito fragilizado, muito magrinho, mas mesmo assim cheio de genica. Regressado da guerra, criou família, casou três vezes e teve quinze filhos. Essa imagem da minha avó, grande, possante, segura, era assim uma espécie de porto de abrigo. É uma imagem a que hoje em dia recorro quando sinto falta desse apoio, dessa presença. Lembro-me muito da imagem dela ao lume, a descascar batatas. É das imagens mais seguras que possuo.
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