Tiago Bettencourt é um nome que dispensa apresentações. Há 20 anos entrou para a música, tornou-se conhecido com os Toranja e, desde então, nunca mais parou. Mas não era para ser assim. Tiago não queria ser artista. Nem sequer imaginava que o seu futuro passaria pelos palcos. Imaginava-se antes num atelier de arquitetura, mas a vida trocou-lhe as voltas.

Hoje, e depois de "ter engolido muitos sapos", orgulha-se da carreira que construiu. De não ter posto em causa os seus princípios e aquilo em que acreditava. De não ter cedido às pressões de um mercado tão competitivo.

Estivemos à conversa com o músico de 43 anos. Tiago é a junção quase perfeita da timidez e da descontração. Diz o que pensa, mas guarda muito bem o seu lado pessoal. Até porque um artista não precisa disso, defende. Um artista só precisa da sua música. E se for de qualidade, ainda melhor.

Vinte anos de carreira. Quando começou, imaginava que ia chegar onde chegou?

Não tinha nenhuma ambição, acho que se vê pelas entrevistas que dava naquela altura [ri-se]. Era um miúdo com noção de que o mundo da música pode ser bastante efémero e, por isso, estava só a divertir-me. Não tenho noção de quando é que comecei a olhar para isto como uma coisa que iria fazer até ao fim da minha vida, mas nunca me levei muito a sério.

Chegou estudar arquitetura?

É verdade.

A arquitetura era um plano A, a música foi um plano B que apareceu de repente

Mas era a sua paixão ou funcionava como um plano B?

A arquitetura era um plano A, a música foi um plano B que apareceu de repente. A meio do curso um amigo meu começou a incentivar-me a fazer música. Eu já tocava guitarra e convidou-me a fazer uma banda, banda essa que mais tarde passou a ser os Toranja. Estava-me só a divertir, não tinha pretensão nenhuma de ser artista. Queria fazer música boa, tinha a noção do que era bom e do que era mau. Não trabalhei no sentido de arranjar oportunidades para ser ouvido, as coisas foram surgindo de uma maneira natural e eu só fui um bocado na onda.

E como é que fazia essa distinção? Do género 'isto eu quero fazer, isto eu não quero'.

Tem que ver com a qualidade. Se tenho uma banda quero fazer uma música de jeito, uma música que toque.

Nunca se sentiu pressionado para fazer uma música com maior probabilidade de ser ouvida. Afinal, os músicos precisam de se sustentar.

Já, claro que sim, os managers servem para isso, para fazerem essa pressão. O papel do músico é lutar contra isso, é ter as prioridades no sítio, se for de outra maneira há-de prejudicar a música, inevitavelmente.

Mas terá de concordar se disser que atualmente muitos músicos seguem esse princípio.

Concordo plenamente [breve silêncio, seguido de risos]. Mas eu não posso fazer nada...

Hoje temos aos magotes artistas que são mais influencers do que músicos e cuja carreira se sustém não através da música, mas pelos conteúdos que têm nas redes

Mas um artista quando segue este princípio é porque se sente obrigado a tal ou é porque cede a esse facilitismo?

Acho que nem tem que ver com o ser obrigado, a mentalidade é que está bastante diferente hoje em dia. É muito difícil num mundo onde as redes imperam e onde a aprovação e os likes fazem parte do crescimento de qualquer miúdo, é muito difícil crescer livre. Isso reflete-se na música, como é óbvio. Hoje temos aos magotes artistas que são mais influencers do que músicos e cuja carreira se sustém não através da música, mas pelos conteúdos que têm nas redes.

É o mundo onde vivemos. Tenho a sorte de ter crescido num mundo um bocadinho diferente e de ter tido a oportunidade de mostrar a minha música num mundo bastante diferente também. Tenho a plena noção que teria sido mais difícil para o meu tipo de música vingar no mundo de hoje, porque está realmente muito mais agressivo.

Esse lado onde a prioridade é vender, chegar ao público, seguir uma fórmula, ser agressivamente comercial, essa parte impera na indústria musical já há bastantes anos e dá a ideia de que está a ficar cada vez pior com algumas exceções.

Não tenho absolutamente nada contra ser comercial, é possível ser comercial e ter qualidade ao mesmo tempo

Mas quando os Toranja tiveram muito sucesso de certa forma não ficaram comerciais?

Eu não tenho absolutamente nada contra ser comercial, é possível ser comercial e ter qualidade ao mesmo tempo. Temos infinitos exemplos disso na história da música. Esta noção de que se tenha de baixar a fasquia para se chegar ao público é uma ilusão. Obviamente que se só oferecemos isso ao publico, o público habitua-se a receber isso e já não tem pachorra para ouvir uma música que demore mais do que três segundos a chegar ao refrão.

Não há nenhum artista que não goste de uma sala cheia e quanto maior for essa sala, mais feliz vai ser o artista, de certeza. Mas quer ter um público que goste da música que está a fazer, que esteja mais interessado na música dele do que na persona famosa dele. Obviamente que não posso falar por todos os artistas, mas um que tenha as prioridades no sítio vai querer ter um público à frente que esteja mais interessado na música que ele faz e que não queira sequer saber como é que é a família, a intimidade, os pais, a avozinha, que causas é que defende, de que lado político é que estás, essas coisas todas. É aquela utopia da música existir pela música.

A simplicidade não é sinónimo de falta de profundidade ou vazio de sentido. Gosto de coisas simples, gosto que um refrão nos abrace, me abrace primeiro antes de abraçar as outras pessoas

Nunca deu por si a criar uma música e a pensar 'esta letra está demasiado complexa'. Não há vontade de fazer uma música mais 'cantável'?

Já senti algumas vezes 'esta música está-me a expor demasiado', mas foi mais no princípio. Eu também não gosto de músicas muito complexas. Gosto de uma boa canção, simples. Tom Jobim tem letras ultra simples e são das mais bonitas. A simplicidade não é sinónimo de falta de profundidade ou vazio de sentido. Gosto de coisas simples, gosto que um refrão nos abrace, me abrace primeiro antes de abraçar as outras pessoas. Hoje em dia tenho uma escrita mais depurada, é a fase que estou a passar. Este respeito pelo meu ser criativo não pode ser influenciado por essa pressão 'quero muito que as pessoas gostem disto'. Quero é fazer uma boa canção, porque me dá um prazer gigante, não é porque quero vender milhões de discos. Quando queremos agradar o lado mais alternativo, que é uma síndrome também, conseguimos estragar uma boa canção a tentarmos sermos mais complexos.

O público que tenho hoje nos concertos é muito diferente daquele que ia aos concertos dos Toranja quando tiveram um sucesso absurdo. Eram pessoas que não queriam ouvir a minha música, queriam só ver pessoas famosas

Um artista mais novo que esteja a ler esta entrevista poderá pensar que é mais fácil para o Tiago falar porque já tem 20 anos de carreira. Para os que estão a começar agora e querem fazer música com qualidade que conselhos daria?

Se tenho 20 anos e propriedade para falar é porque estou bastante confiante nas escolhas que fiz sempre e da direção que tive. Se tivesse estado 19 anos a fazer músicas 'pastilha elástica' e, de repente, aos 20 anos falasse assim, isso seria completamente absurdo. Tenho trabalho como prova daquilo que eu digo.

Agora, não foram 20 anos fáceis. Temos de engolir muitos sapos, temos muita gente a passar à nossa frente, mas ao fim desses 20 anos estou muito contente com as escolhas que fiz e por não me ter prostituído da maneira que poderia ter-me prostituído. Essas escolhas acabam por passar para o público.

O público que tenho hoje nos concertos é muito diferente daquele que ia aos concertos dos Toranja quando tiveram um sucesso absurdo. Eram pessoas que não queriam ouvir a minha música, queriam só ver pessoas famosas. Hoje em dia as pessoas vão aos meus concertos porque conhecem as músicas, porque fazem parte da vida delas de uma maneira muito bonita.

Um jovem músico que leia isto espero que se sinta inspirado a ter este tipo de prioridades. Vai ser um caminho fácil? Não, vai ser dificílimo, vai demorar tempo, mas as pessoas hão-de reparar que o trabalho desse artista é bom. A vida é feita de saltos de fé. Tinha o curso de arquitetura e sabia que se não desse nada ia ser arquiteto, pronto. Nunca me levei a sério nesse sentido: 'Vou apostar tudo na música!' [diz de forma mais dramática]. Se a tua base está no sítio, se os teus valores estão no sítio certo, vais fazer as coisas certas. Se a tua ambição é ser famoso e ter muitos likes na tua música então vais fazer outras escolhas. Se te vais orgulhar dessas escolhas daqui a 20 anos? Se calhar sim, se calhar não, depende da fase em que estivermos.

No meio das escolhas que tomou não teve medo de ficar esquecido?

Não diria medo, pensei nisso mas não deixei que me influenciasse. Divirto-me a fazer música, enquanto der dinheiro vou fazendo. Nunca cedi a esse pensamento, não me lembro sequer de o ter.

Nem nunca pensou 'devia era estar a exercer arquitetura'.

Acho que não. Gosto muito de arquitetura, continuo a seguir muitos arquitetos, nunca saiu da minha vida. Agora, sei que nunca conseguiria ser arquiteto porque a parte bonita da profissão é para aí 20% e os resto 80% são burocracias. Se calhar seria fotógrafo, cenógrafo... Se não me quiserem ouvir para que é que vou estar a insistir?

Quando deixou a arquitetura e foi para a música os pais acharam graça?

Não acharam graça nenhuma, mas a questão é que eu nunca assumi que ia para a música. Era ver até onde aquilo dava e depois voltava para arquitetura, mas como fui tendo sucesso... Nunca deixei de levar a boca 'o Tiago devia era ir para arquitetura, para um atelier', mas a verdade é que nunca tive tempo para isso.

Acho que quando acabou tive um sentimento de libertação. Os Toranja tinham de acabar naquela altura porque estava a acontecer uma coisa muito claustrofóbica

O fim dos Toranja foi como perder um bom amigo ou era algo que iria acontecer inevitavelmente?

Não diria perder um bom amigo, porque realmente ficamos muito amigos. Os Toranja eram de outra geração, eu era bastante mais novo. Embora tivéssemos ficado muito amigos, quando acabaram separámo-nos um bocado. Hoje em dia temos muito pouco contacto, mas a verdade é que tenho muitas saudades deles. Eu segui o meu caminho e eles os deles. Acho que quando acabou tive um sentimento de libertação. Os Toranja tinham de acabar naquela altura porque estava a acontecer uma coisa muito claustrofóbica.

Consegue escolher uma música preferida?

Acho que é o 'Viagem', porque me dá muito gosto de cantar e saber como está a chegar às pessoas, devagarinho. Há determinadas músicas que quase não assumo a responsabilidade pela autoria e esta é uma delas, parece que veio assim de um meio divino.

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Ver a reação das pessoas nos concertos deve ser uma sensação incrível.

É uma alegria gigantesca. Das coisas melhores que existem no mundo é chegarmos a um concerto e estar cheio de gente efusiva, mas que saiba também ouvir e respeitar os silêncios. Monetariamente não conseguia ser artista se esse público não existisse. Faz-me sentir 'ultra humilde'.

"Tiago Bettencourt não pertence e nenhum movimento, a nenhuma corrente ou estilo", lê-se na sua biografia. Então quem é o Tiago Bettencourt?

Não faço ideia. Obviamente sou um autor, a música que eu faço é uma mistura entre o rock e folk, agora está assim um pouco eletrónica pelo meio. Mas acho que sou só um artista bacano [brinca].

Há a tendência em pôr as pessoas em caixas e a minha ambição sempre foi não ser parecido com ninguém e soar a mim próprio. No princípio meteram-me em várias caixinhas, porque faz parte, mas acho que consegui sair airosamente delas.

Ao fim de 20 anos ainda se fica nervoso antes de subir a palco?

Não, não fico nada nervoso, já é uma transição bastante pacífica.

Tem alguma superstição?

A banda junta-se e bebe um shot de chá.

Vai dar dois concertos. Um na Casa da Música, que já está esgotado, e outro no Coliseu em Lisboa. O que é que o público pode esperar destes espetáculos?

Acho que as pessoas que já foram a outros concertos sabem que eu tento que o preço do bilhete valha. Por isso são sempre concertos bastante especiais, diferentes e mais longos. Acho que o público sai de lá sempre feliz.