O seu trabalho em televisão pode ser aquele que mais sobressai perante o público, mas é no teatro que António Capelo 'respira vida'.
O ator vive na cidade no Porto, onde fundou aquele que é o seu projeto de vida: ACE Escola de Artes.
Com mais de 40 anos de profissão, recheados de muitas experiências que fortalecem o seu currículo, são muitos os ensinamentos que traz na sua bagagem, alguns deles partilhados em entrevista ao Notícias ao Minuto.
Uma conversa onde a cultura e, sobretudo, o teatro se destacam, sem esquecer a terra que o viu nascer e o futuro onde, diz, a "formação é essencial para o desenvolvimento das nossas profissões".
A liberdade conseguida com o 25 de Abril levou-o a experimentar várias atividades, tendo fundado uma cooperativa - Nascente Cooperativa de Acção Cultural - em Espinho, nasceu também nessa altura o jornal Maré Viva e o festival de cinema Cinanima. Trabalhou com crianças, frequentou o curso de Filosofia, e fez também teatro profissional, onde se mantém até aos dias de hoje... Ficou alguma coisa por viver no tempo antes da Revolução?
Antes da revolução ficou por viver a liberdade plena. O facto de ter apenas 18 anos à data do 25 de Abril de 74, não me inibia do direito de partilhar as preocupações dos meus concidadãos. E, entre todas, sem dúvida que a falta de liberdade era a que mais me ofendia. Sem ela, a vida nunca poderia ser vivida plenamente.
Nos meus mais de 40 anos de profissão, vi muita coisa mudar. Mas não vi assim tanta evolução
Esteve em vários grupos de teatro, como em Trás-os-Montes, Viana do Castelo... E está à frente de uma escola de artes. Nunca tirou nenhum curso académico, mas soma várias formações que foram feitas ao longo do seu percurso. As experiências são mais ou tão importantes do que as formações? O que mais aprendeu com o seu percurso?
As experiências são também formações. No fundo, o sentido da própria vida não é mais do que nos colocarmos em lugar de aprendizagem, sempre. E com o que aprendemos, seja em que campo for, tentar ser criativos, e construir caminhos com os outros e com eles percorrer esses caminhos em direção ao futuro. Foi também isto que o meu percurso me ensinou. Não caminhar sozinho.
Como acabei de referir, está à frente da criação da ACE - Academia Contemporânea do Espetáculo - e do Teatro do Bolhão, que nasceu há 30 anos. O que mudou no mundo do teatro desde então? E como é que vê essa evolução (positiva/negativa)?
Nos meus mais de 40 anos de profissão, vi muita coisa mudar. Mas não vi assim tanta evolução. No entanto, confesso que o que apontávamos como razões maiores para a criação da escola e da companhia há trinta (e um) anos, evoluiu na cidade de forma muito significativa: criação de espaços de preparação e apresentação de espetáculos, formação de criativos (atores, cenógrafos e figurinistas, desenhadores de luz e de som) e formação de públicos. Para cumprir plenamente esta última será necessário continuar a trabalhar na programação dos vários teatros com o sentido fundamental de formação de públicos. Só dessa maneira nos tornaremos todos mais exigentes e criativos.
Se há coisa pior para o ato criativo, é torná-lo gasto e rotineiro
A televisão e o cinema também completam o seu currículo, mas nunca deixou que o reconhecimento que chega com os ecrãs fosse superior ao seu projeto de vida: a escola de artes. A satisfação de partilhar o saber com aqueles que são o futuro do teatro é superior à notoriedade que o audiovisual lhe dá? O que sente quando chega a casa depois de um dia de trabalho?
Tento sempre chegar a casa com a sensação do dever cumprido. E isso diz respeito a toda e qualquer atividade em que esteja envolvido. Tento também aprender com todas as experiências profissionais, sejam elas de que cariz forem. Não deixa de ser interessante trazer para o palco o contributo do pequeno ou grande ecrã; não deixa de ser muito curioso a constante interrogação que os alunos nos levantam e que, como consequência, nos levantamos a nós próprios; não deixa de ser também fundamental moveres-te em espaços e projetos que de alguma forma ajudaste a criar e que te dão por isso renovado prazer.
O projeto de vida ser a ACE Escola de Artes será fácil de entender: é lá que passo os meus dias mais curiosos, os meus dias mais constantes, os meus dias mais criativos, os meus dias onde a angústia me atormenta e a alegria me assalta; no fundo, onde os meus dias são mais plenos. Porque todo o processo da criação e manutenção da escola tem sido um enorme desafio, como tem sido de alguma forma exemplar o modelo que conseguimos criar no centro da cidade do Porto. Modelo esse que poderia, e deveria, ser replicado no resto do país.
Sobre esta era das redes sociais... Há quem acredite que seja vital para um artista estar ativo nas redes sociais, mas há também quem discorde. Será vital apenas para os que querem fazer carreira em televisão, especialmente por causa da imagem? E em teatro? Será também importante estar presente neste mundo virtual para conseguir chegar ao público mais jovem, por exemplo?
Não serei a pessoa ideal para responder a isso. Se reconheço, por um lado, a importância das redes sociais como forma de apresentação e divulgação do teu trabalho, também reconheço que o desgaste que essas redes sociais podem trazer à tua imagem, contribuem para o cansaço e a rotina quer da imagem, quer do trabalho. E se há coisa pior para o ato criativo, é torná-lo gasto e rotineiro. Mas a minha idade já não me autoriza a tecer considerações justas e assertivas sobre estas matérias...
O que investes em ti, tem mais a ver com o que tu és do que com o que tu parecesE será que o talento e o trabalho podem ficar mais esquecidos? Ou seja, será que a imagem em televisão torna-se uma das prioridades? E no teatro? Pode dizer-se que em algum momento a imagem foi ou é um fator importante?
Creio que a imagem é sempre um fator importante. Mas a imagem só existe quando observada. Quer dizer, só existe e tem importância para quem a vê, para terceiros. Nunca deve ser, acredito eu, fator de ponderação para a tua necessidade de expressão, para a tua necessidade de vida. Poderás ser sempre um tremendo ator independente da tua imagem. O que investes em ti, tem mais a ver com o que tu és do que com o que tu pareces.
De que forma é que o teatro ajuda na ‘criação’ da personalidade do ser humano?
Tenho por hábito dizer que o teatro me ensinou tudo. No teatro construímos ideias e colocamos permanentes interrogações. Muitas dessas interrogações e muitas dessas ideias têm a ver com a relação do ser humano com o mundo e os outros que o rodeiam. As personagens que nos aparecem pela frente são, frequentemente, carregadas de vida, carregadas de humor, de amor, de ciúme, de raiva, carregadas de sentimentos, em suma. E são eminentes lições de e para a vida. Paralelamente, a relação que crias com diversas formas de arte, o estudo sobre que te debruças, política, histórica e socialmente sempre que produzes um espectáculo, também te estimulam o pensamento, acrescentando saber ao saber. E, finalmente, a partilha que estabeleces com os outros, dentro e fora do palco, é uma forma de melhor entenderes as diferenças, as virtudes, a consciência dos seres humanos. Não conheço melhor escola para a vida.
É possível viver só do teatro em Portugal, quando o teatro em Portugal não for olhado com desconfiança pelos setores do Estado a ele ligados
Muitos artistas falam no facto de esta ser uma profissão instável, uma vez que nem sempre têm trabalho. Hoje há atores a mais para o trabalho disponível ou são poucas as oportunidades dadas pelo país?
Tenho para mim que, hoje, a maioria das profissões são instáveis. O neoliberalismo que nos foram impondo tornou-se na negação do valor do trabalho e no menosprezo pela ideia de profissão. Acredito que a nova geração se tem colocado questões que irão no sentido de reorganizar as relações de trabalho e as relações sociais, bem como colocar novas questões à natureza humana, como o ambiente ou as questões da igualdade. Isso faz-me ter esperança no que o futuro nos reserva.
Nesse sentido, acredito que cada um encontrará o seu lugar no mundo e que, contrariamente ao que tem sucedido, cada um será responsável pelo seu próprio bem estar. É aí que questões como oportunidades de emprego, oportunidades de vida salutar, oportunidades de espaço ocupado e vivencial vão ser colocadas. Perante isto os seres humanos terão de encontrar respostas, quer a nível coletivo, quer a nível individual. Talvez que a ideia de política se reafirme como capital de confiança e, com isso, faça brilhar os olhos dos humanos outra vez.
Consegue-se viver apenas do teatro em Portugal?
A pergunta colocada assim só tem uma resposta possível: sim, consegue. Mas para conseguir, é preciso ter oportunidades de trabalho, é necessário que o Estado entenda a necessidade do usufruto do objeto cultural como um bem essencial ao nosso desenvolvimento. Enquanto não existir uma política definida do que deverá ser o setor no todo nacional, nem o ator, nem o espectador serão capazes de sobreviver a esta asfixia que o setor sofre há tantos anos.
Portanto, a resposta mais precisa será: sim, é possível viver só do teatro em Portugal, quando o teatro em Portugal não for olhado com desconfiança pelos setores do Estado a ele ligados. Criem-se políticas culturais, claras e definidas e todos aqueles que se dedicam a tão nobre arte terão consciência plena do que poderão e deverão fazer para viverem plenamente do seu trabalho.
Apoio anunciado pela ministra vem, finalmente, pôr alguma justiça naquilo que considero ser essencial para o setor não desaparecer
São constantes as guerras que a cultura tem enfrentado, sobretudo os atores, que continuam a lutar pelo reconhecimento da profissão, e alguns pedem o regresso da Carteira Profissional. Como tem acompanhado estas últimas manifestações que chegaram especialmente agora que fomos 'atacados' por esta pandemia?
Parece que, finalmente, o Estado inscreve em discussão o estatuto dos trabalhadores da área da cultura. Sendo estranho que em pleno século XXI estes profissionais não tenham ainda um estatuto reconhecido, é importante perceber que a criação deste estatuto pode ser um passo fundamental para o futuro do setor. Estão envolvidas nesta discussão as mais diversas associações profissionais, os sindicatos e também o próprio Estado. Significa que a luta, ou lutas, têm desencadeado algumas reacões e que o debate não pode parar.
Qual a sua opinião sobre o apoio de 42 milhões ao setor da Cultura, anunciado recentemente pela ministra Graça Fonseca? Havia alguma alternativa que, a seu ver, poderia ajudar mais este setor?
Parece-me que este apoio anunciado pela ministra vem, finalmente, pôr alguma justiça naquilo que considero ser essencial para o setor não desaparecer. A nossa vida profissional depende não só de nós próprios mas também, e fortemente, dos outros - os públicos. Por isso mesmo, fomos atirados para casa e, mesmo depois da reabertura após a primeira vaga, muitos dos profissionais ficaram sem qualquer sustento, sem qualquer apoio, sem qualquer perspetiva de trabalho e sem qualquer perspetiva de vida. A insensibilidade social demonstrada pela ministra aquando da primeira vaga pode agora ser colmatada com este anúncio, mas será necessário que haja alguma destreza na distribuição destes apoios, pois a vida de todos aqueles que se dedicam a alimentar-nos a alma não pode ser abandonada.
Deste povo tão sofredor devo ter herdado a ideia de firmeza, carácter e este meu hábito solidário de olhar os outros como meus iguais
Voltando às origens, o que mais destaca da terra que o viu nascer, Castelo de Paiva? E quais os principais ensinamentos que trouxe consigo?
De Castelo de Paiva costumo destacar, acima de tudo, o sofrimento público das gentes daquelas terras que, nos últimos anos, foram devastadas por tragédias (queda da ponte; encerramento das minas do Pejão, incêndios, etc). Vivem anonimamente e é publicamente que sofrem. Nunca será demais lembrar todas as promessas feitas pelos sucessivos governos e nunca concretizadas. Deles, deste povo tão sofredor, devo ter herdado a ideia de firmeza, carácter e este meu hábito solidário de olhar os outros como meus iguais.
Em julho do ano passado escreveu um desabafo nas redes sociais sobre o incêndio na zona industrial e disse: "Castelo de Paiva é a terra que diariamente vejo ser abandonada pelo poder central". Sente que terras como Castelo de Paiva continuam ‘esquecidas’? E porquê?
Não tenho dúvidas que sim, que continuam, anónimas, a sofrer. As razões poderão ser variadas, mas os territórios de baixa densidade (raio de designação) são, sistematicamente, abandonados pelo poder central, que esquece que o crescimento harmonioso dos territórios deveria ter menos a ver com a quantidade de gente que o habita e mais com a qualidade de vida de cada um.
Tem dito em entrevistas anteriores que – apesar de já ter vindo a passar o testemunho - tem de passar a pasta para dar lugar a outras pessoas nas funções que desempenha na escola. O que pretende fazer nesta nova fase da sua vida que se aproxima?
O projeto da ACE Escola de Artes nasceu, gatinhou, deu os primeiros passos há já uns anos. Se o projeto precisou de nós para crescer, agora precisa de outros para continuar o seu caminho. É maior do que nós e, por isso, a página onde escrevemos nos últimos anos merece ser lida e reescrita a cada momento. A formação é fundamental, direi mesmo essencial, para o desenvolvimento das nossas profissões. Por isso direi que formar, formar sempre, formar mais, formar melhor é a palavra de ordem que deixarei para apontar ao futuro.
Qual a peça de teatro que melhor descreveria a sociedade de hoje?
Continuamos À espera de Godot.
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