Tinha o sonho de ser bailarina mas a situação sócioeconómica da família impediu-a de concretizar essa ambição. Quando veio para Lisboa, aos 18 anos, apostou tudo no curso de direito, tendo recusado convites de Nicolau Breyner e de Camilo de Oliveira. «Desperdicei muitas oportunidades», assume Mila Ferreira, numa entrevista intimista e emotiva em que fala da paixão pela música, da relação com a irmã, do projeto com as Doce e do muito que a vida já lhe ensinou.
Ao longo da sua carreira, já foi cantora, advogada, instrutora de aeróbica, apresentadora de televisão, animadora de rádio, atriz… Continua a ser tudo isto?
Sou uma comunicadora. O fitness é, talvez, a única coisa que fica um bocadinho de fora mas eu sempre quis ser bailarina, pronto. Não consegui porque tinha de vir estudar para Lisboa, era muito pobre e os meus pais não tinham meios económicos para isso.
Quando vim para Lisboa, com 18 anos, já era um mamarracho. Nessa idade, já não podia ir para o ballet, não é? O denominador comum em tudo isto é, de facto, a comunicação, seja através da expressão corporal ou da palavra falada ou cantada.
No caso da advocacia, são as pretensões jurídicas, enquanto comunicadora de pretensões jurídicas. No fundo, aqui o denominador comum é a comunicação. Eu sou, sobretudo, uma comunicadora. É assim que me defino…
Mas há uma atividade que a realiza mais do que outra? Se tivesse que optar só por uma, qual escolheria?
Não seria capaz. Eu gosto de estar sempre a fazer coisas diferentes, coisas que me façam sentir viva e, se eu fizesse sempre a mesma coisa, acabava por não ser assim. Não teria uma vida muito entusiasmante e acabaria por ir morrendo aos poucos.
Eu não gosto nada daquelas pessoas que estão mortinhas para chegar à reforma. Eu não! Estou sempre a achar que tenho muitas coisas para fazer, muitos sonhos para realizar, muitas obras para desenvolver e muitas coisas para fazer em prol dos outros. E, portanto, eu gosto muito de coisas novas e desafiantes.
Sei que, quando chegar à idade da reforma, irei ser escritora, que é uma coisa que eu adoro fazer, porque escrevo muitas das letras das minhas canções. Sempre escrevi! Quero sempre fazer coisas cada vez melhores, mais desafiantes e diferentes. E isso faz-me sentir viva!
Acho que, enquanto cá estamos, temos que nos sentir vivos e fazer alguma coisa para que os outros, o nosso público, também receba de nós. Nós, artistas, temos uma missão na nossa vida que é a de comunicar coisas importantes que podem fazer a diferença na vida das pessoas. Eu também encaro assim a minha profissão.
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No que respeita à música, uma das suas paixões, lançou já em 2016 «Bonsoir Paris», um disco de música francesa com temas de Édith Piaf, Charles Aznavour, Joe Dassin, Jacques Brel e Serge Lama. Este disco rompe um bocado com a linha mais pop que a Mila Ferreira tem seguido…
Sim, rompe. Mas continuo a seguir essa linha. Este ano, já lancei dois singles completamente pop…
Em termos de concertos, como é que é feita a gestão do reportório. Por exemplo, em julho, foi uma das atrações de uma festa popular na Amadora, para um público que não é propriamente o da música francesa…
O meu marido baralha-se imenso mas eu não percebo em que é que uma coisa interfere com a outra. É como se eu fosse uma actriz. Eu, na música pop, expresso a minha alma porque, normalmente, canto letras que eu faço ou nas quais participo. Eu não vejo incompatibilidade entre isso e assumir personagens, como acontece agora neste projeto de música francesa.
Eu canto o «Je suis malade» [canção popularizada por Serge Lama em 1968] e não estou doente. Mas sinto aquelas emoções. Elas entram em mim, eu sou portadora delas e comunico-as. É como um ator que faz telenovelas e depois vai fazer cinema ou teatro. Eu não vejo qualquer incompatibilidade…
Não existe só uma Mila. Existem sete ou oito ou nove. As minhas emoções são polivalentes. Eu amo profundamente a música francesa e as pessoas que assistirem a um concerto vão dizer «Ali é que ela está maravilhosa» mas depois veem o pop e dizem «Mas ela passa tanta energia às pessoas…».
Uma pessoa pode gostar mais das canções francesas, mas eu gosto das duas. As outras canções [pop] são a minha alma. Aquelas letras são a expressão das emoções que eu quero passar para as pessoas. Eu quero contagiar as pessoas pela positiva. Quero vivificar as pessoas. Quero que elas se sintam felizes a ouvir a minha música.
Já caiu, pelo menos uma vez, em palco, num programa de televisão em direto. Foi esse o momento mais embaraçoso que viveu enquanto cantora?
Não, não foi nada! Foi muito engraçado porque foi em Oliveira do Hospital e puseram logo no YouTube. [risos] Eu estava a cantar e mexia-me realmente muito. Tropecei na alcatifa à entrada do palco, que estava presa com agrafos.
Mas não foi embaraçoso. Eu sou uma mulher do fitness, caí e levantei-me logo. E, depois, brinquei imenso com a situação na entrevista que o João [Baião] me fez. Isto mostra que os artistas são pessoas como as outras, que também caem e também se levantam.
Na altura, magoou-se?
Por acaso, magoei, mas eu não sou nada maricas. Rompi as meias mas compram-se outras… Este ano, voltei lá e o meu marido relembrou-me da queda. Mudei logo de sandálias! [risos] Isto mostra também a fibra do artista. Há pessoas que ficam muito atrapalhadas quando estas coisas acontecem.
Eu não fico nada atrapalhada. Na Amadora, no concerto que referiu, a luz faltou a meio e eu comecei a fazer fitness em palco. O baterista começou a acompanhar-me e demos a volta à situação…
Os imprevistos acontecem…
Exatamente! Temos de estar preparados para dar a volta a tudo e estas coisas dão-te calo e traquejo. E as pessoas até acham graça...
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Em 1970, venceu um festival da canção em Caldas da Rainha em parceria com a sua irmã, Adelaide. Voltaram a colaborar juntas ao longo da vossa carreira?
Algumas vezes mas pouquinho. Pouquinho...
Porque é que isso não aconteceu?
Não aconteceu por dois motivos. Primeiro porque não aconteceu, pronto. E depois, a partir de uma certa altura, não aconteceu porque também eu nunca quis. Não aconteceu, se calhar, na altura em que devia ter acontecido, naturalmente, porque há uma altura em que as coisas podem acontecer naturalmente.
Não acontecendo durante esse período, naturalmente, depois já não acontecem. Eu também sou uma pessoa muito independente. Sou uma mulher que não gosta de andar com a casa ou com a família atrás. Sou uma pessoa que gosta de se fazer valer por si própria. Sou uma lutadora e entendo que cada um deve valer por si.
Portanto, não há cá colagens nem nada disso e eu tento fazer a minha vida o mais possível afastada para que as pessoas percebam que uma coisa é uma coisa e outra é outra. Embora tenhamos o mesmo apelido, agora também há a Cristina Ferreira, que podia ser a nossa irmãzita, que é uma querida, uma mulher super talentosa. A partir de uma determinada altura, fui eu também que optei por não cantar com a minha irmã.
Fizemos alguns espetáculos esporadicamente juntas mas, sou sincera, sou também eu própria que o evito, porque quero afirmar-me por mim própria e pronto! Não aconteceu quando podia ter acontecido… Até podíamos ter feito um duo!
Tem a ver com uma questão de oportunidade ou de afinidade musical?
Não sei… Não aconteceu naturalmente e, como não aconteceu naturalmente, chegou uma altura em que também já não fazia sentido acontecer.
A verdade é que, ao contrário de outras figuras públicas, nem sequer surgiram muitas vezes juntas em produções para revistas. Como é a vossa relação enquanto irmãs?
Fizemos uma quando nasceu a filhotinha dela, de quem eu sou madrinha, a Luana. Fizemos uma produção, mas eu também evito. Ainda há pouco tempo me convidaram e eu evito, porque não gosto. Acho que cada pessoa vem ao mundo com uma determinada missão, independentemente da profissão.
As almas não são iguais e cada pessoa tem de aprender determinadas coisas e tem de dar ao mundo determinadas coisas e também tem de receber do mundo determinadas coisas. As almas não se têm que se colar nem se confundir, pronto. Portanto, devem viver cada uma a sua vidinha.
Por opção, não foi mãe. Pelo facto de não ter filhos, é uma tia mais presente ou as crianças não são, de todo, uma das suas paixões?
Eu gosto muito de crianças. Sou uma tia, presente quanto baste. Não sou a tia mais presente do mundo. Se morasse ao lado do meu irmão que mora no Porto ou ao lado dos sobrinhos do meu marido, se calhar seria. Os meus sobrinhos estão todos um bocadinho afastados.
Tenho um na Holanda, tenho outros no Porto e, portanto, sou uma tia carinhosa quando estou com eles e muito compincha e gosto muito de crianças mas não fui mãe. Aconteceu assim...
Veja na página seguinte: A morte que gerou confusão nas redes sociais
Muito recentemente, vieram a público notícias que levavam a crer que o irmão que tem em comum com a Adelaide tinha morrido, uma confusão que gerou alguma polémica nas redes sociais. Como é que viveu esses dias em que, de repente, quando as pessoas achavam que estava a chorar um irmão, estava a promover o novo disco e a receber críticas por isso?
Fiquei um bocadinho triste. Eu estava na Suíça num concerto e tinha dormido apenas quatro horas. Depois de fazermos o check-sound, todas as pessoas que iam cantar foram dormir e eu esqueci-me do telemóvel ligado. Então, liga-me o meu pai de Angola e eu olhei para aquilo, desliguei o telefone e, quando acordei, eram para aí oito horas da noite, devolvi a chamada.
Ele perguntou-me quando é que chegava e disse-me que, depois, falávamos. No dia seguinte, estava a almoçar e liga-me a minha prima a dar-me os sentimentos… O Zé era um grande amigo de infância mas era mais ligado à minha irmã. Tiveram uma relação mais forte do que eu. Eu era só amiga e eles os dois era uma amizade diferente.
Ela mandou-me ir ao Facebook, eu agarrei no telemóvel e vi logo que tinha 50 chamadas. No dia seguinte, cheguei a Portugal e era toda a gente a dar-me os sentimentos, pessoas a chorarem ao telefone… Depois, fiquei um bocadinho rouca do avião e, quando atendia, tinha uma voz esquisita.
Na altura, estava também a lançar o CD, estava a fazer imensos programas de televisão e estava a publicar os meus posts, que habitualmente tento que sejam coisas muito positivas e com uma imagem muto alegre e animada. Senti que as pessoas poderiam estar a julgar-me por não ter uma postura adequada e senti necessidade de clarificar a situação, fazendo um comunicado no Facebook.
Quando colaborou com a Banda do Casaco em 1980 surgiu com o nome de Emília. Porque é que, depois, optou por Mila?
Foram eles. Eu tinha 17 anos, fui fazer o casting e, pronto, fiquei. Fui escolhida e eles acharam graça a Emília. Eu não gosto nada, sou sincera. Não gosto muito do meu nome. Emília é um nome um bocadinho coisinho e eu não me identifico muito com ele. Acho que é nome de pessoa desgraçadinha e eu sou uma pessoa forte. Gosto de Mila, que é mais forte.
Uma das coisas que muito poucas pessoas sabem é que fez coros para as Doce nas canções com que o grupo concorreu ao Festival RTP da Canção e ao Festival da Canção da Eurovisão…
Fiz no «Ali babá» e fiz no «Bem bom». Eu e outra colega fomos com elas à Eurovisão, como coralistas. Foi muito giro e muito divertido. Eu, na altura, era estudante universitária. Para mim, aquilo foi uma festa. Foi a primeira viagem de avião que fiz.
Hoje em dia, já se tornou num hábito muitas figuras públicas irem ao programa de televisão «Alta definição» fazer revelações e assumir segredos até então escondidos. Se fosse convidada do programa, o que é que a Mila Ferreira tinha para confessar?
Por acaso, já pensei nisso muitas vezes. De duas, uma. Numa das hipóteses, teria que dizer que ainda não estou em condições de fazer uma entrevista como deve ser, porque eu não vou estar a falar de coisas de que ainda não posso falar. Quando envolvem terceiros, acho que já é assim um bocadinho deselegante, não é?
A outra hipótese seria fazer um acordo com o Daniel Oliveira e dizer-lhe «Olha, vou dar-te uma entrevista em que te vou contar apenas 50% verdade. Em relação aos outros 50%, não te vou dizer nada, porque também não minto. Vou omitir. Ou então quero esperar mais 10 ou 15 anos porque, nessa altura, posso dar-te uma entrevista como deve ser». Essa seria a proposta que eu teria para ele…
Veja na página seguinte: O convite recusado para a telenovela «Vila Faia»
Há situações da sua carreira que geraram dúvidas nas pessoas. A saída repentina do programa «Roda dos milhões» da SIC nunca foi bem esclarecida…
Também nunca percebi muito bem. Foi difícil de digerir mas teve uma coisa muito positiva para mim, que foi o meu encontro enquanto ser espiritual. Percebi que as coisas, às vezes, não nos acontecem por acaso. Para mim, acabou por ter essa importância, que foi justamente encontrar-me comigo própria e perceber o que estava a fazer no mundo.
Eu também nunca percebi mas ganhei em tribunal e perdoei a toda a gente. Já abracei algumas das pessoas que estiveram envolvidas nessa questão. Gostava imenso de abraçar o Ediberto Lima e de falar com ele porque guardei só as coisas boas. Ainda as retenho no meu coração.
Tem formação de atriz e, em 1992 e 1993, numa altura em que a produção nacional era bastante inferior ao que é hoje, chegou a fazer telenovelas. Porque é que já não faz?
Fui convidada para fazer a protagonista feminina na primeira telenovela portuguesa [«Vila Faia»] e, como tinha acabado de entrar em direito, chorei muito com a decisão de ter de recusar, mas havia outros valores mais transcendentes. Não tinha a ver comigo, tinha a ver com outras coisas que eu, lá está, não posso falar agora e que terão de ficar para o «Alta Definição» daqui a uns anos.
Fiz o casting, o Nicolau Breyner escolheu-me, chorei imenso… A seguir, o Camilo de Oliveira convida-me só para eu ir fazer a primeira figura numa peça de teatro. Não fui. Depois, convidou-me para ir ao festival da canção sozinha. Chorei imenso e não fui.
Na residência universitária, juntávamo-nos todas e elas diziam para eu ir. Se calhar, a minha vida profissional tornou-se mais difícil porque eu, de facto, desperdicei muitas oportunidades… Mas houve outros valores que na altura se levantaram e que foram mais importantes mas tive que seguir o caminho que eu, naquela altura, achava que era o mais adequado.
Mas isso é passado. Hoje em dia, não acontece porquê? Não há convites ou já não lhe interessa?
A minha vida profissional tornou-se mais difícil a partir dessa altura, tirando o facto de ter tido a sorte de ter sido escolhida para apresentar o programa «Queridos inimigos». Mas depois tornou-se mais difícil, porque eu tive muitas facilidades. Tive sete editoras, na altura em que havia o boom da música, atrás de mim para gravar.
E eu sabia que tinha de fazer o curso de direito. Não podia deixar o curso de parte. Costuma dizer-se que a água não passa duas vezes debaixo da ponte e, no meu caso, percebo perfeitamente que a minha vida artística me tenha sido depois dificultada por ter desperdiçado muitas oportunidades.
Veja na página seguinte: O poder da fé e a influência da religião na vida de Mila Ferreira
Nasceu em Minde e cresceu nas Caldas da Rainha, não muito longe do Santuário de Nossa Senhora de Fátima. Isso influenciou de alguma maneira a relação que tem hoje com a religião?
Não. Por acaso, não. Acho que não tem a ver com o facto de se estar perto ou longe. Tem a ver com um sentimento, um chamamento interior, digamos assim.
Mas é uma mulher de fé?
Sou uma mulher de muita fé. Muita fé! E sinto-me muito bem com isso. Dá-me uma harmonia, uma paz, uma tranquilidade, uma calma, um saber relativizar as coisas, além de uma capacidade de perdoar e de compreender os outros e de perdoar-me a mim própria. A fé ensinou-me muita coisa.
Independentemente da religião que a pessoa tenha, é muito importante na vida das pessoas e acho que, às vezes, as pessoas andam um pouco perdidas porque não têm um norte. Mas, seja qual for a religião por que optem, é importante que a pessoa tenha alguns princípios com os quais sinta identidade e que pautem a sua vida. Eu acho que é importantíssimo para que haja harmonia.
Texto: Luis Batista Gonçalves
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