Há um súbito estremecimento na paisagem que assim vê quebrado o silêncio da tarde. Um apitar carregado de nervo prolonga no espaço um assomo que sabemos vir de um século passado e que chega a este século XXI e ao vale profundo onde nos encontramos, nas margens do grande rio do Norte, o Douro.
Sobre a vegetação que se aconchega na curva apertada do rio percebemos uma corrente tumultuosa de vapor negro, lançado ao ar como uma serpente etérea em contorção. “Pouca terra, pouca terra”, assim soa a passagem da possante maquinaria sobre os trilhos da linha de comboio duriense. O apeadeiro da Estação do Pinhão, no concelho de Alijó, coração do Douro Vinhateiro, é percorrido por um frenesim de expectativa. Dentro em pouco, um resfolgar possante de vapores, ferro, água e madeiras, ir-se-á deter; exibindo-se como um dos testemunhos do esforço ciclópico que foi tornar o Douro paisagem natural e, aparentemente indomável, em Douro paisagem humana.
O Comboio Histórico do Douro, gerido com fins turísticos pela CP Regional, acaba de cumprir a primeira etapa desde a Régua. A máquina abranda, exalando um último suspiro de força. A velhinha locomotiva Henschel & Sohn, de 1923, inspira-nos a nostalgia de encontros e partidas em antigas estações nevoentas. A caldeira chia alimentada pelas brasas de toneladas de carvão em ebulição. A estação é invadida por um odor acre, uma mistura de vapor, de fricção, de óleo. Há um ranger das madeiras das carruagens, impecavelmente cuidadas. As grandes janelas de guilhotina revelam-nos um interior quase lotado, com passageiros acomodados em assentos de espaldar.
Bem contados, o gigante fluvial do Norte, tem perto de 850 quilómetros, repartidos entre dois países. Em Portugal, percorre parte dos distritos de Bragança, Guarda, Viseu e Porto. O Douro é rio, mas também é região.
O Douro do século XXI ganha graças de século XIX, com ares de festa. Figurantes trajados à época recriam tradições populares. Há animação com um grupo de músicos e cantares regionais, distribui-se bola, roda o vinho do Porto em cálices e a água que refresca. Há, por certo, um pouco daquilo que foi a inauguração, em Setembro de 1887, do primeiro troço desta Linha, ligando Foz Tua a Mirandela, com a presença do rei Dom Luís I e da rainha Dona Maria Pia.
Paisagem natural, paisagem construída
O Douro é, aqui, frente ao Pinhão, na confluência do rio com o mesmo nome da localidade, uma entidade já madura. O rio traz um longo percurso percorrido desde os picos da serra do Urbião em Espanha, algumas centenas de quilómetros para montante. Em Miranda, entre fragas intransponíveis, o Douro encontra território português para, finalmente, nos ares vivificantes do Atlântico, se despedir do seu trajecto continental. Ai, na Foz, não é o rio das grandes fragas, mas sim a alma ribeirinha da arquitectura dramática do Porto.
Bem contados, o gigante fluvial do Norte, tem perto de 850 quilómetros, repartidos entre dois países. Em Portugal, percorre parte dos distritos de Bragança, Guarda, Viseu e Porto. O Douro é rio, mas também é região.
Na plataforma aberta na traseira da carruagem, abstraímo-nos momentaneamente do frenesim, fruímos o sol generoso que espicaça o odor floral dos canteiros da estação. O afã da vindima virá mais tarde, animando agosto e setembro.
Sobre a paisagem em frente, compomos um exercício cénico. Juntamos o céu, de um azul fixo e intenso, às arribas em sobreposições dramáticas e ao rio, simultaneamente elemento da paisagem e seu apropriador. O Douro captura na placidez das águas toda a envolvente.
Esta é, porém, uma serenidade apenas aparente. Há em toda a paisagem que acompanha o rio um murmúrio de esforço, de luta face ao rio rebelde e às arribas agrestes. Esta paisagem é drama em sentido cénico, esculpido por mão humana, em anfiteatros imensos que galgam montanhas, percorrendo-lhes a fisionomia em socalcos de xisto, multiplicados a uma escala que diríamos além humana. Sobre os terraços a quem chamaram o “tormento do Douro”, repousa a razão primeira para esta geografia talhada à mão, os incontáveis pés de vinha, dispostos em carreiros regulares, amadurecendo a uva que resultará nos Vinhos do Douro e no seu expoente máximo, o Vinho do Porto, verdadeiro elemento unificador da região.
Natureza domada
Soa o apito. Há um rápido retorno às carruagens. Um impulso mecânico, inicialmente tímido, torna-se mais afoito. O comboio parte em direcção à estação de Foz Tua. São pouco mais de 12 quilómetros que valem cada metro em história. Estamos no coração de uma paisagem reconhecida em 2001 pela UESCO como Património da Humanidade, na categoria de paisagem cultural. O movimento da locomotiva agarra punhados de ar e carrega-nos para uma viagem de frescura. O rio está perto, correndo num movimento quase imperceptível. Actualmente, salvo as cheias das invernias mais severas, o Douro é um rio plácido, amaciado pela necessidade histórica de o tornar um elo seguro e eficaz de ligação comercial. O desnível do rio favoreceu um dos grandes empreendimentos do Douro, a construção de barragens como as do Picote, Bemposta, Pocinho, Valeira, Tabuaço, Régua, Carrapatelo.
Domou-se o rio selvagem que fazia temer e suplicar quem o subia. Um rio que dragou muitas vidas e tornou alguns naufrágios célebres, como o do barco onde viajavam Dona Antónia Ferreira (que para a posteridade ficaria conhecida como A “Ferreirinha”) e o Barão de Forrester. Conta a voz popular que ter-se-á salvo a primeira figura graças às saias em balão e sucumbido a segunda, carregado com moedas de ouro no cinto.
A região do Douro, considerada como ambiente, é maravilha do homem, não uma maravilha da criação. Tudo ali conta a força e vitória dos seus autores. Da pedra se fez terra, do solo bravo o licor generoso. (Aquilino Ribeiro)
Rápidos, “saltos”, caudais violentos, rochedos à superfície, leitos pedregosos; o Douro foi sempre natureza extrema. Frequentemente o fio de água dos verões secos tornava-se um tormento de águas em fúria no Inverno. Era uma época em que o Douro não era turismo, antes sim um elo de intercâmbio entre o litoral e o interior. A viagem era lenta. Levava-se quatro a oito dias, dependendo dos humores das águas, para percorrer os cerca de 100 km de distância entre o Porto e a Régua. O percurso impunha a presença de estalagens, vendas, quintas, para abrigo dos passageiros. Os cais agitavam-se com o afã dos barcos rabelo, verdadeiros conquistadores do Douro e símbolo do rio e do transporte do Vinho do Porto. Um símbolo exibido, hoje em dia, no Cais de Gaia. A navegação rio acima faz-se actualmente de forma bem diferente e com fins essencialmente turísticos.
Cruzamo-nos com algumas das modernas embarcações que singram o rio. Ao apito do comboio responde o troar poderoso da sirene do barco de cruzeiro. Um diálogo cúmplice entre duas épocas. Aqui, ao ritmo preguiçoso marcado pela locomotiva, custa-nos crer, que esta dormência de vapor tivesse acelerado o compasso das mudanças. O caminho-de-ferro alterou profundamente a região. As viagens tornaram-se mais rápidas, o comércio intensificou-se. O Douro não voltaria a ser o mesmo.
Os pilares da paisagem duriense
Uma garça abre as asas numa sacudidela desengonçada e, com um breve voo, esconde-se na vegetação junto à linha de água. Espanta-a a força e tumulto de fumos da locomotiva. A nós, por seu turno, espanta-nos a vertigem das arribas que caem sobre o rio. A espaços, a geografia cede a relevos mais suaves, descendo em morros talhados em socalcos até às águas. Recordamos um excerto de uma leitura anterior à viagem. Uma frase solta, de que não conseguimos apadrinhar e que se refere aos socalcos em xisto como “paredes levantadas com brio”. Uma homenagem ao trabalho dos pedreiros do Douro que ergueram, sem argamassa, uma perfeição de lajes sobre lajes. Como instrumentos pouco mais do que martelos de bico e ponteiros.
Alcantilados nas encostas vemos aquilo a que chamaram os “os pilares do edifício do vinho do Porto”. São as Quintas do Douro, algumas centenárias. Quinta do Ventozelo, quinta das Carvalhas, Quinta de La Rosa, Quinta do Crasto, entre muitas outras, são elementos indissociáveis da paisagem. Há imponência na arquitectura alva das casas. No conjunto da quinta destaca-se a casa principal, ladeada pelos armazéns e outras estruturas de apoio à actividade vinícola. Envolve toda a estrutura a frescura das sombras de oliveiras e de pequenas matas de carvalho, sobreiro e pinheiro.
Estas quintas são parte inalienável da história de uma região que conta com a primeira demarcação de uma zona de denominação de origem controlada, ordenada em 1756 por Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal.
A relação do Douro com a uva vem, porém, de bem mais longe. Terá começado pela idade do Ferro.Com a romanização, por volta do século III-IV da nossa era, a vitivinicultura ganha fôlego na região. A Idade Média intensificou a produção vitícola. Com o tempo o longínquo Porto, torna-se o grande centro consumidor e distribuidor dos produtos do Douro, em particular o vinho. O século XVI vê acentuada a viticultura com objectivos comerciais e, com 1675, surge a primeira referência documental ao vinho do Porto. Nascia, também, a paixão inglesa pelo néctar que suplanta no mercado britânico a preferência pelos vinhos franceses, espanhóis e italianos. Hoje, as grandes extensões de vinhedo que contemplamos são posteriores à crise provocada pela filoxera, praga que quase dizimou a vinha duriense no século XIX.
Chegada a Foz Tua
Há um quebrar na aragem vivificante que invade o interior das carruagens. Percebemos o refrear na velocidade e leves arremessos de travagem. O comboio prepara a sua entrada na estação de Foz Tua, no concelho de Carrazeda de Ansiães. Sentimo-nos a cair, de novo, na dormência das margens. Está completo o percurso que liga o Pinhão até às margens rio Tua, afluente do Douro.
Aproveitamos a paragem técnica para abastecimento da locomotiva e saímos da estação.
Descemos um caminho estreito que leva até à beira rio. Contornamos pequenas hortas, alguns laranjais, muitas oliveiras carregadas de azeitona ainda verde. O sol desce e a sombra propiciada pelos montes na outra margem invade o rio. O Douro veste os ares de final de tarde e parece mudar de personalidade, capturando a escuridão entre margens. Apesar de amaciado, em parte domado, apropriado pelo homem que o tornou protagonista da sua história, o Douro mantém uma aura de impossibilidade, como enorme criatura que se enrosca, impassível, em si própria.
Um silvo de vapor desperta-nos para a estação próxima. É hora de regresso ao Pinhão.
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