É no balanço das curvas ao longo de perto de 26 quilómetros de estrada em direção à fronteira com Espanha, que percebemos que a orografia do Parque Nacional da Peneda-Gerês, pede luta. Estamos no Alto Minho, numa primavera viçosa, de estrada bordejada de verde e de águas. As que correm em regos abundantes desde as alturas das serranias. Partimos de Ponte da Barca, para calcorrear caminho até ao extremo leste do concelho. Flanqueamos a poderosa Serra Amarela, mais de 1300 metros de portento granítico, a ombrear com a vizinha Serra do Soajo. Duas dezenas de quilómetros pela Estrada Nacional 203 em ascensão sobre asfalto, que terminarão no paredão daquele que é o mais potente centro hidroelétrico instalado em Portugal, a Barragem do Alto-Lindoso, entre as freguesias de Lindoso e Soajo (esta última já no concelho de Arcos de Valdevez).

De momento não o sabemos; dentro de 30 minutos, findo o trajeto entre Ponte da Barca e a albufeira, deixaremos a manhã fresca sob um céu de azul lavado, arrepiado por uma brisa empurrada de norte. Iremos ao encontro do coração pétreo da montanha. E, a 340 metros de profundidade, depois de percorrido um túnel de quase dois quilómetros, teremos encontro marcado com o cérebro e o músculo da barragem. Obra finalizada em 1992, projetada nove anos antes, em 1983.

Os pequenos bosques de carvalhos assim como os afloramentos rochosos, deixam-nos antever, nas curvas da estrada, a massa de água.  O rio Lima aprisionado, retido sob a forma de lago, detendo-se antes de seguir o seu percurso para jusante, bordejando Ponte da Barca, depois Ponte de Lima e, lá longe, desaguando no Atlântico, frente a Viana do Castelo. Setenta quilómetros que, aqui, na paisagem perene, nos parecem uma distância sinónima de eternidade, face ao frenesim da sede de distrito.

No Minho, um passeio sob um céu de estrelas a mais de 300 metros de profundidade
Câmara das válvulas.

“Respeito”, parece dizer-nos o paredão da barragem. Uma enormidade de betão com mais de cem metros de altura, uma das mais altas construções portuguesas. O paredão divide dois mundos. Voltamo-nos para Norte, com a Serra do Soajo em frente. Do lado direito, o pequeno mar formado pelas águas retidas, alimentado pelo rio transfronteiriço (Limia, em Espanha) que recebe chuvas abundantes, mais de dois mil mililitros por ano. À esquerda, a garganta profunda do vale, onde corre o fio de água que se liberta da muralha de betão. Duas portas de descarga debitam uma enxurrada de água. Um duplo jato que se alastra em vapores sobre a rocha e vegetação que lhe dá entorno.

É a poucos quilómetros, porém, que está o nosso destino. A central é subterrânea e tem via direta para o seu âmago. Não saímos do carro. Não abandonamos a estrada. Transposto o poderoso portão gradeado, vigiado, mergulhamos a 30 quilómetros hora no interior da serra. Quem apreciar preciosismos, saiba que o túnel tem, exatamente, 1780 metros de comprimento e 8,3 metros de diâmetro. Dimensão generosa para receber, por exemplo, um autocarro. O túnel que nos franqueia caminho para o interior da montanha é parte de uma rede de galerias idênticas que perfazem mais de 12 quilómetros de extensão. Informação facultada por César Martins, o técnico que nos acompanhará neste périplo num mundo frio, a 12 ºC. “A temperatura mantém-se assim todo o ano”, sublinha César, enquanto percorrermos a pé a última centena de metros em direção à central, sob luz fria florescente, rodeados por paredes de granito e de betão.

.No Minho, um passeio sob um céu estrelado a mais de 340 metros de profundidade
Há mais de 12 quilómetros de túneis associados à Barragem do Alto-Lindoso. Neste caso, 1780 metros de túnel de acesso rodoviário.

Tudo é gigantismo neste lugar. Cada tonelada de granito foi arrancada à serra por mão humana e maquinaria. Mais de um milhão de metros cúbicos de escavações, a injeção de 600 mil metros cúbicos de betão e três mil toneladas de aço. A construção da Barragem do Alto-Lindoso, chegou a ter 1500 trabalhadores nos estaleiros e, já concluída, mais de uma centena de funcionários no controlo da mesma. Atualmente, “há nove funcionários nas instalações”, sublinha César Martins.

Entramos, agora, numa enorme galeria escavada na rocha. Sentimo-nos pequenos ao olharmos para o teto a mais de 20 metros. Reduzimo-nos a uma escala liliputiana frente às duas válvulas que controlam a entrada de água. “Cada uma pesa mais de 900 toneladas. Um parafuso pesa 70 quilos”. Cada uma destas válvulas culmina um poço de carga de água que cai, a pique, mais de 270 metros, desde a bacia da barragem. Para que se tenha um termo de comparação, as torres da Ponte 25 de Abril, têm perto de 190 metros.

“Cada uma destas válvulas traz um caudal normal de produção de 125 mil metros cúbicos”, somos informados. “Daria para encher uma piscina olímpica a cada dois segundos”.

barragem
Sala das válvulas. Cada uma pesa 900 toneladas. Um parafuso, 70 quilos.

César não esconde orgulho no facto de tudo, aqui, ter sido construído com matéria-prima portuguesa, “empresas como a Sorefame, infelizmente já não laboram”. Estamos, agora, na sala que transforma a energia mecânica em elétrica, a central propriamente dita, onde estão as turbinas que recebem o fluxo de água dependendo das potencia necessária para consumo. “Chamamos-lhes o Ferrari de Portugal”, confidencia-nos César. Porquê? “Em 90 segundos a eletricidade é libertada na rede”.

Não obstante o gigantismo da estrutura, tudo é silêncio. As torrentes de água circulam dentro dos canos de aço no âmago da central. Hão de conhecer a liberdade nos enormes túneis de restituição ao rio. Galerias com quilómetros de extensão, uma vez mais no coração da montanha.

No Minho, um passeio sob um céu estrelado a mais de 340 metros de profundidade
Vista do paredão da barragem.

Estamos na reta final neste périplo subterrâneo. Descemos e subimos escadas metálicas, transpomos galerias onde as diferenças de pressão criam verdadeiros túneis de vento. Espreitamos para galerias com a escala de catedrais. Desembocamos numa sala pejada de grossas tubagens pintadas a amarelas. “Sabem o que passa dentro destes tubos?”, inquire César. “Água”, soam as respostas. “Errado”, retribui o nosso anfitrião, “eletricidade. Há milhares de cabos dentro destas tubagens. Irão ao encontro da superfície, até à subestação, onde os 18 mil volts serão elevados a 400 mil volts. A eletricidade produzida, aqui, no Minho, pode ser distribuída, por exemplo, no Algarve. Há perdas pelo caminho, logo a necessidade de elevar a potência”.

Capítulo último da visita. A Nave, ou se se preferia, a casa das máquinas onde os terminais captam “todos os sintomas o equipamento”. Causa espanto o lugar. A sala assume contornos de gare, espaço onde, inclusivamente, já decorreram espetáculos musicais. Há mármores e um teto a duas dezenas de metros de altura. Neste, centenas de luzes embutidas simulam o céu. Não um firmamento qualquer. “O que o arquiteto aqui nos deixou são as constelações do Hemisfério Norte na época em que a Barragem foi construída”, sublinha César Martins. Uma sala que quis, a dois tempos, “criar também um ambiente descontraído para quem aqui trabalhava muitas horas sob a montanha”.

No Minho, um passeio sob um céu estrelado a mais de 340 metros de profundidade
Esquema de todo o complexo que constituí a Barragem.

Momento de retornar à superfície. Para os funcionários há um atalho. O poço do elevador que termina no edifício de comando, mais de cem metros acima. Na época da construção da estrutura era o mais rápido da Europa e o segundo do Mundo, sendo apenas ultrapassado pelo CN Tower em Toronto, Canadá.

Para nós, visitantes, não há atalhos. Esperam-nos os 1780 metros de caminho até à grande boca do túnel e ao ar revigorante da montanha.

Reportagem originalmente publicada em maio de 2019.