Todas as ruas da cidade muralhada parecem desaguar na Praça da República. Ponto de encontro para descobrir as particularidades de Elvas entre vestígios de duas cercas islâmicas do século VIII e do século X ou XI, respetivamente.

Cidade fronteiriça, cantada sobretudo por ter «Badajoz à vista», justiça lhe seja feita que a posição estratégica fá-la ser muito mais prendada do que refere a canção. Ao longo dos séculos defendeu Portugal de contínuos ataques do país vizinho. Nascido ali há 88 anos, Luís Silva sabe o nome das ruas de cor e tem um irrepreensível sentido de orientação.

Subtraindo os anos que cursou Medicina em Coimbra (1948-1954) e aqueles em que foi mobilizado para cumprir o serviço militar em Angola (1967-1969), escolheu ser o filho que à boa casa torna. «O meu pai tinha orgulho em ser daqui, foi dele que todos herdámos o amor pela terra».

Hoje o namoro começa nesta praça onde «quando era gaiato vinha tomar chá nas tardes de calor». Mandada construir por D. Manuel I, recebe o nome de Praça Nova e passa a ser o centro do burgo, elevado a cidade em 1513.

É ali que fica a Câmara Municipal, o Posto de Turismo e a antiga Sé Catedral – de portas abertas desde 1537 – «e construída em cima de uma mesquita», explica o guia de serviço.

Da Sé ao Forte

À volta multiplicam-se esplanadas onde é possível descansar depois de calcorrear ruelas estreitas profusas em estilos: do românico ao gótico, sem esquecer o rococó, o manuelino e o esplendor barroco.

Antes de seguir viagem dá-se a bênção na antiga Sé. Visita-se a «lindíssima» sacristia com azulejos policromados do século XVII e a Sala do Cabido, hoje Museu de Arte Sacra.

Destaque para a Sala do Capítulo e para as pratas da igreja. Do relicário ao resplendor. Luís Silva aponta para a cisterna do pátio que sucede à sacristia. «Ali foram escondidas as pratas durante as Invasões Francesas», explica.

Na sacristia da antiga Sé, Luís Silva admira um retábulo em talha onde está representado Santo António a pregar aos peixes

Com vistas incríveis «para o Forte de Nossa Senhora da Graça, bairro da Boa-Fé e Badajoz», sobe-se ao castelo, conquistado aos mouros, em 1230, por D. Sancho II.

No fim da década de 30, o cicerone «jogava ali à bola e fugia à polícia com a malta da rua». Aqui a História de Portugal funde-se com a do médico, que escolheu a especialidade de cardiologia por influência de um colega e Elvas para exercer por razões do coração. Neste caso do próprio.

No mapa que desenha a geografia dos afetos não podia faltar o bacalhau dourado, e a sericaia com ameixas de Elvas.

Património Mundial da Humanidade

Proprietário do restaurante Vinha da Amada, João Amante testemunha que «o afamado bacalhau nasceu em Elvas, na primeira pousada de Portugal, há mais de 50 anos».

Levando a cidade no coração, o Chef foi inaugurar o Antiquarius no Rio de Janeiro, em 1976, mas passado nem quatro anos estava de volta. «Exilados portugueses como Marcelo Caetano e Américo Thomaz não perdiam o cozido à portuguesa, aos domingos», lembra.

A digestão acontece no labiríntico Forte de Nossa Senhora da Graça, – construído entre 1763 e 1792 – e reaberto ao público em novembro de 2015, depois de grandes obras de reabilitação.

Erguido na colina onde já existia a Ermida de Nossa Senhora da Graça, este conjunto de fortificações abaluartadas em forma de estrela foi pensado pelo Conde de Lippe para defender a cidade a Norte, já que o Forte de Santa Luzia o fazia a Sul.

Em 2012 a cidade foi elevada a Património Mundial da Humanidade pela UNESCO. À parte das considerações históricas, a paisagem estende-se no horizonte e é possível avistar Badajoz e Olivença. Mais perto fica na retina o Aqueduto da Amoreira, um dos principais cartões de visita de Elvas. Construído entre 1537 e 1622, esta obra passou a abastecer de água a população da cidade. «Até então cabia ao poço de Alcalá fazê-lo, o que era insuficiente», explica o cardiologista.

Rebolar o vale

O Aqueduto da Amoreira é um dos postais de Elvas

Do alto vê-se ainda a cidade muralhada e o Forte de Santa Luzia. «Sempre me falaram da existência de túneis subterrâneos que ligavam o Forte ao Convento de Santa Clara e à Igreja de São Domingos.

Os militares iriam visitar as religiosas, mas com a construção da estrada para Badajoz parece que já não resta nada», revela Luís Silva. Já uma tradição que se mantém até aos dias de hoje é 'ir rebolar o vale'. O guia de serviço explica que na segunda-feira a seguir ao domingo de Páscoa «ia-se para o campo, comia-se, bebia-se, cantava-se e dançava-se».

O destino podia ser a Ermida de Nossa Senhora da Ajuda ou a Juromenha, ambas banhadas pelo Guadiana. Lugares mágicos que ao crepúsculo têm cor e banda sonora próprias. Bandos de patos em forma de V atravessam a fronteira, chocalhos do gado são música para os ouvidos.

Com a ajuda das ameixas da fábrica artesanal Frutas Doces, a funcionar desde 1919, a manhã nasce doce. Luís Silveirinha Conceição não esconde o sucesso do negócio: «são os dois pontos da calda do açúcar».

Arte nas antigas enfermarias

A caminho do antigo Hospital da Misericórdia, hoje Museu de Arte Contemporânea de Elvas, fica a Igreja de São Domingos, já referida pelos misteriosos túneis.​

O convento anexo «é o único edifício de Elvas erguido durante a Idade Média», explica o médico, que nos confidenciará mais tarde ter estudado «bem a lição». Destaque para a arquitectura gótica. Espreita-se a colorida sala do consistório, onde o clero se reunia. No ano em que faz dez anos de vida, o Museu de Arte Contemporânea tem em mostra a exposição “Uma Colecção = Um Museu 2007-2017”, uma retrospectiva que tem sílaba tónica nos momentos mais emblemáticos da década.

Obrigatória, esta visita conta a história da colecção de António Cachola, que colocou Elvas no mapa da arte contemporânea. Para Luís Silva, trata-se de um regresso à vida passada, uma vez que o museu fica no antigo Hospital da Misericórdia (XVI), onde trabalhou durante mais de quatro décadas.

Nas antigas enfermarias podemos ver obras de artistas portugueses como a colecção de fotografias "Paisagens Inúteis", de Augusto Alves da Silva, ou "O Estado do Sono”, de Susanne Themlitz. No consistório do antigo hospital brilha “A Noiva”, de Joana Vasconcelos. Grande amante de azulejaria do século XVIII, Luís Silva revela o pormenor de Nossa Senhora a dar de mamar ao menino Jesus.

Na hora das despedidas, fica a promessa de nova reconquista nesta cidade inesgotável de recantos, muralhas e cercas mouras. «Haverá sempre a tentação de regressar aos lugares onde fomos felizes», conclui Luís Silva.​

Texto de Maria João Veloso

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