“Um preto muito português”, que chega hoje às livrarias, é uma espécie de diário de João, conhecido como Budjurra, filho de cabo-verdianos, nascido em Lisboa, mas que podia ser filho de angolanos, moçambicanos ou guineenses.
Budjurra é a junção de várias pessoas que Telma Tvon, que nasceu em Angola em 1980 e vive em Portugal desde os 13 anos, conhece. “Várias pessoas com quem cresci, pessoas que fui conhecendo quando estava na faculdade. É um bocado a junção das nossas várias comunidades”, contou, em entrevista à Lusa.
Telma Tvon já escreveu o livro há alguns anos – teve uma primeira edição, em 2018, pela Chiado Editora, e sai agora pela Quetzal “com revisão literária, feita a preceito” - e quando o fez não tinha “a real perceção de como ele [Budjurra] é tanta gente”.
“Quando o livro saiu houve pessoas que me disseram coisas como ‘escreveste o livro da minha vida’, ‘parece que estavas a falar sobre mim’. É mais real do que eu poderia estar a pensar. Pessoas que nasceram no Porto, no Algarve, pessoas com quem não tive contacto nenhum aqui em Lisboa, sentiram à mesma”, partilhou.
Hoje assume que naquela altura “se calhar era um bocadinho ingénua” e queria que alguns dos episódios relatados no livro, de racismo, discriminação, agressões físicas e verbais, se tivessem passado só com os seus, “que não fosse tanta gente a padecer do mesmo mal”.
Para Telma Tvon, o conteúdo do livro continuará a fazer sentido, enquanto os negros continuarem “a batalhar com todas as questões” lá estão.
“Enquanto miúdos de 12/13 anos da Amadora, da Arrentela [no concelho do Seixal], do Monte da Caparica [Almada] se sentirem menos por causa da cor de pele, por causa da sua história, vai sempre fazer sentido. Ter esta oportunidade de pôr o livro em discussão outra vez é uma dádiva para mim”, disse.
O aproximar das eleições legislativas em Portugal, marcadas para 10 de março, e o facto de haver partidos “que veem a imigração como um mal neste país”, levam Telma Tvon a considerar que “é importante falar-se sobre esses assuntos sempre”.
Embora o livro não seja autobiográfico, Telma Tvon já viveu alguns dos episódios ali contados. “É a história do nosso dia-a-dia enquanto pessoas negras. Acontece numa coisa tão simples como: estou no comboio, faço um comentário e alguém diz ‘não estão bem, vão para a vossa terra’”.
A autora não acredita quando ouve pessoas negras a dizer que nunca foram vítimas de racismo: “Há pessoas que escolhem não falar sobre isso. É uma estratégia de defesa: ‘não me vou magoar com isso’, ‘vou fazer de conta que não é nada comigo’. Mas isso acontece a todas as pessoas que têm pele escura. Uns resolvem enfrentar o assunto e dizer ‘eu passei por isto’ e outros dizem que não”.
Escrever um livro não era algo que estivesse nos planos de Telma Tvon, que aos 16 anos se tornou ‘rapper’, mais tarde se licenciou em Estudos Africanos e fez depois um mestrado em Serviço Social.
“Um preto muito português” começou por ser a letra de uma música, que queria gravar com a participação de Chullage e Lancelot, e podia ter sido mais uma entre tantas outras que escreve, mas “acabam por não ver a luz do dia”.
Acabou por mostrar o texto, “que já ia extenso demais para ser uma música”, à irmã que a incentivou a continuar, a não cortar nada. Continuou e quando deu conta tinha 20 páginas de Word escritas.
“Ela [irmã] depois perguntou-me porque não lançava um livro. Mas eu tinha dúvidas sobre quem quereria ler histórias destas. Ela disse-me: ‘nós. Nós, dentro da nossa comunidade vamos querer ler’. Quando fomos crescendo não nos interessava tanto a literatura, porque não havia nada relacionado com as nossas realidades. O nosso Fernando Pessoa se calhar era o Pepetela, mas não tinha que ver com a nossa realidade enquanto imigrantes”, recordou.
Telma Tvon e a irmã deixaram Angola em 1992, por causa da Guerra Civil, que durou entre 1975 e 2002.
Em Portugal, ficaram a viver com a avó. A mãe ficou em Angola e passou vários anos sem a ver. “Com as coisas mais estáveis comecei a ir de férias. Tinha esse privilégio, porque conheço muitas pessoas que nunca mais conseguiram ir”, referiu.
Embora longe fisicamente, tem “uma relação muito próxima” com o país onde nasceu. “Vivo Angola todos os dias, pelas notícias, pelo Whatsapp, falando com a minha mãe, com os meus tios, primos. Sinto que não estou lá, mas estou sempre lá. E agora que estou a trabalhar, sempre que posso vou de férias”, contou.
Não pensa regressar de vez, embora adore o país e as pessoas que lá vivem. O que a faz ficar em Portugal é a “relação complicada” que tem com o poder, “com o MPLA [partido no Governo desde 1975], mais precisamente”.
“Sei que se vivesse lá teria que engolir muitos sapos, que não sei se estou preparada para engolir. Admiro imenso as pessoas que estão lá e têm que ser equilibristas, porque a situação assim o impõe. Tenho muito respeito pelo meu povo, mas se calhar nesse aspeto, usando uma expressão de lá: sou um bocado ‘bolo fofo’. Não sei se ia lidar bem, se teria resiliência para estar lá”, partilhou.
Quando em Portugal alguém lhe diz “vai para a tua terra”, não sabe se sente mais raiva de quem o diz ou de quem faz com que tenha que o ouvir.
Numa altura em que o discurso contra a imigração tem ganhado espaço em Portugal, Telma Tvon gostava que os que o defendem entendessem que “ninguém que está bem no seu país vem para cá” e “não vem para impor nada a ninguém”.
Atualmente, Telma Tvon trabalha na prevenção do abandono escolar, em bairros sociais na Linha de Sintra. Desde que começou a trabalhar tem-se dedicado a projetos relacionados com jovens.
Quando se afastou do rap pensou no que poderia fazer que lhe desse prazer e lhe permitisse continuar a ter uma voz.
“Fui estudar, fui escrever e fui trabalhar para as nossas comunidades. Daí surgiu o amor pelo Serviço Social, que era uma maneira de estar dentro do hip-hop. Juntar o serviço social ao hip-hop e trabalhar com miúdos que o hip-hop trabalharia também”, contou.
A cultura hip-hop é essencial na vida de Telma. Diz que a respira, todos os dias. No livro há referências a ‘rappers’ como Chullage, Nas ou Tupac Shakur, e a letra de um rap de Gutto.
“Quando essa música [“Ser negro”, que Gutto editou sob pseudónimo Bantu na compilação “TPC – Trabalho para Casa” (2000)] surgiu foi um abre olhos para nós, negros, dentro da cultura hip-hop. Para quase todos os negros daquela altura aquela música é um hino. Todos sentimos a letra como ‘por que é que eu nunca pensei isso? Por que é que eu nunca escrevi isso?’. Ele está a falar por todos nós”, contou.
Ainda “Um preto muito português” não foi apresentado – sê-lo-á no sábado no festival literário Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim – e já Telma Tvon tem outro livro escrito.
O livro que se segue, ainda sem data prevista de edição, é “sobre histórias de mulheres”.
“Conto histórias de mulheres – negras - que me são próximas, e outras que não são tão próximas, mas têm histórias que me impactaram. Se desta vez falei de um homem, agora quero falar de várias mulheres. São personagens que criei, sempre inspiradas nas realidades que conheço”, adiantou.
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