A manhã de 1 de novembro de 1755, alterou profundamente o destino da cidade de Lisboa. O terramoto que assolou Portugal, com severo impacto na capital do Reino, talhou a história portuguesa nos séculos que se seguiram, como réplicas de um evento com repercussões à escala global.  “A cidade de Lisboa que existe hoje está assente nas ruínas de uma cidade totalmente diferente, que existia até há pouco mais de 267 anos”, lemos no site do Quake - Centro do Terramoto de Lisboa. A estrutura inaugurada em abril deste ano, transporta para o século XXI um momento extraordinário. Fá-lo com recurso a uma experiência imersiva, onde a história se suporta na ciência e tecnologia, através de meios audiovisuais, luzes, simuladores e video mapping. Contas feitas, Belém acolhe um museu distribuído por três pisos, com 1800 metros quadrados, onde o visitante é convidado a percorrer a reconstituição das ruelas da cidade desaparecida. Oportunidade para conhecer as figuras de uma época que assistiu a uma grande transformação política, científica e histórica a nível mundial.

Nos bastidores desta reconstituição histórica onde não faltam os simuladores do terramoto que, se estima, tenha atingido uma magnitude entre 8,7 a 9 na Escala de  Richter, há uma narrativa de empreendedorismo, o de Maria João Cruz Marques e Ricardo Clemente que, há perto de sete anos, pensaram um projeto de valorização de Lisboa. Sobre o percurso que os trouxe até ao Quake falámos com Maria Marques; assim como com o historiador André Canhoto Costa, empenhados em fazer da reconstituição do Terramoto de 1755 também uma lição para o futuro: “e se fosse hoje, estaríamos individual e coletivamente mais bem preparados?”

Um de novembro, um dia especial no Quake - Centro do Terramoto de Lisboa

O Quake preparou um conjunto de sessões, a 1 de novembro, com atores que dão vida às personagens do século XVIII, ao som de música da mesma época tocada ao vivo. Os preços variam entre os 26 euros (bilhete normal) e os 21 euros/unidade (grupo de mais dez pessoas). No próprio dia, os bilhetes podem ser adquiridos no site do Quake e variam entre os 29 euros (bilhete normal) e os 24 euros/unidade (grupo de mais dez pessoas).

De 12 a 20 de novembro decorre uma feira do livro (Terreiro das Missas, em Belém) com a temática do Terramoto. A iniciativa conta com palestras, sessões de autógrafos e formações.

No âmbito desta efeméride, será lançado um jogo no Instagram o “Dia Inesperado” que coloca a questão: “Se lá estivesse, como é que teria vivido o terramoto de 1755?”.

“Uma verdadeira viagem ao século XVIII”

Maria Marques, cofundadora do Quake sublinha que “sempre quisemos fazer algo ligado ao universo da cultura e do turismo, algo com um propósito real, uma causa. O nosso primeiro pensamento levou-nos aos Descobrimentos. Após algum trabalho de pesquisa e de análise histórica da cidade de Lisboa, lembrámo-nos que poderia ser interessante contar a história do Terramoto de 1755”.

“Depois, o que pensámos que no início seria apenas um simulador alusivo ao terramoto, rapidamente ganhou proporções, tornando-se num espaço didático, onde o objetivo é envolver de tal maneira os visitantes, fazendo com que a experiência se torne memorável. O Quake pretende chamar a atenção para todas as vertentes do Terramoto de 1755 – científico, histórico e humano – assim como a sua origem, as suas consequências e, acima de tudo, a prevenção e os procedimentos que devemos ter em consideração enquanto cidadãos. Um alerta para uma eventual catástrofe natural, semelhante a esta, no futuro. Como sabemos que não é uma questão de ‘se’, mas sim de ‘quando’”.

Em jeito de apresentação, a cofundadora do Quake retrata o museu como “uma verdadeira viagem ao século XVIII, que nos transporta para um dos dias mais marcantes da história da cidade de Lisboa, mas cujo impacto teve repercussões em toda história mundial. Este acontecimento acabou por marcar uma série de acontecimentos que se seguiram na História, alterando mentalidades e trazendo novas formas de ver o mundo”.

A arqueóloga acrescenta que a experiência imersiva, com carácter didático e com a duração de uma hora e meia, “pode ser visitada por todos os que procuram aprender um pouco mais sobre a temática dos sismos e, sobretudo, sobre o evento decorrido em Lisboa em 1755 – escolas, amigos, famílias, visitantes e locais, cientistas, curiosos e amantes de história. Podemos encontrar desde simuladores de terramoto, com recurso a máquinas de calor e de cheiro, quadros interativos, vídeos didáticos onde verdadeiras personagens do século XVIII ganham vida”.

“O Quake implicou a reconstituição das mais ínfimas camadas das complexas sociedades antigas”

Com um papel de relevo na recriação da Lisboa de 1755 para o Quake e, em particular, a tragédia vivida a 1 novembro, o historiador André Canhoto Costa, traça-nos um minucioso retrato social e económico de Portugal no século XVIII: “uma monarquia e um império pluricontinental, mas com características um pouco estranhas, ao nosso olhar contemporâneo. Portugal mantinha uma enorme rede comercial, comprando e vendendo produtos para todos os cantos do mundo. Mas esse comércio estava assente em grande medida na brutalidade da escravatura e na exploração de matérias-primas, a mais famosa, o ouro extraído no interior do Brasil. Por outro lado, o governo era considerado arcaico, pelos mais sofisticados intelectuais da época, os philosophes franceses. As Cortes - a forma portuguesa de Parlamento - não reuniam desde final século XVII. O sistema fiscal era caótico e em certa medida privatizado. O poder era exercido pelo rei através dos seus Secretários de Estado - sem grande escrutínio para além de Conselho especializados por assuntos [Ultramar, Fazenda, Guerra] constituídos sobretudo por aristocratas e juristas”.

“E se fosse hoje?” A tragédia de 1755 recordada a 1 de novembro com sessões especiais no Centro do Terramoto de Lisboa
Quake - Centro do Terramoto de Lisboa

No que toca à cultura científica, de acordo com André Canhoto, esta “enfrentava muitas dificuldades num reino em que as Belas Artes, o Direito e a Teologia e até a Espiritualidade Popular, tinham enorme protagonismo. A sociedade era muito estratificada, no sentido em que os pobres, os pedintes e os órfãos eram muitos e constituíam o cenário habitual nas ruas das principais cidades”.

No contexto atrás descrito pelo historiador, “em Lisboa vivia uma multidão de trabalhadores à jorna e pessoas escravizadas, que garantiam habitualmente os trabalhos mais pesados numa grande cidade: a construção de casas e obras públicas, a venda de comida nas ruas, a condução do lixo. Mas Lisboa não deixava de ser uma grande metrópole, das maiores da Europa e do mundo, onde se cruzavam cortesãos e eclesiásticos luxuosamente vestidos, comerciantes, homens de negócio, artistas, escritores, ministros e diplomatas de todo o mundo”.

Sobre o papel do historiador na conceção da exposição Quake, André Canhoto adianta que "em relação a um evento como o Terramoto de 1755, a maior dificuldade residiu no balanço entre abundância e escassez de fontes". Ou seja, “existem muitos relatos, descrições, pequenos panfletos, correspondência e a documentação institucional, seja dos Secretários de Estado ou do Senado da Câmara de Lisboa, com copiosa informação, sobretudo impressões e relatos pessoais dos protagonistas ou testemunhas. Refiro também a escassez, pois essa informação nem sempre corresponde às nossas dúvidas”.

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Quake - Centro do Terramoto de Lisboa

“A curiosidade em torno deste tipo de eventos estimula a nossa mente científica moderna: a que hora exata ocorreu o primeiro tremor ou abalo? Quando se verificou o Tsunami? Quanto tempo durou o incêndio? Quais os impactos do Terramoto na malha urbana? Quantas pessoas morreram no dia da catástrofe? E quantas morreram nas semanas seguintes na sequência de infeções, epidemias ou fome? Não é possível responder com o rigor desejável a todas estas perguntas, mas é possível dar respostas muito completas e recomendar o aprofundamento do assunto. Creio que conseguimos um bom equilíbrio”.

O Quake implicou a reconstituição das mais ínfimas camadas das complexas sociedades antigas, lançando luz sobre o tempo quotidiano e os grandes eventos, sobre as grandes massas de dados estatísticos e a literatura, sobre os documentos manuscritos e a monumentalidade dos edifícios, sobre as emoções e o estado dos conhecimentos científicos, sobre a mentalidade eclesiástica e o desejo amoroso, sobre a cultura gastronómica e o pragmatismo político, sobre o choque entre modelos de administração arcaicos e os ventos da Europa das Luzes.

Quake - Centro do Terramoto de Lisboa

Rua Cais da Alfândega Velha, n.º 39, Lisboa

Horário: terça a quinta-feira, das 14h00 às 19h00 (última entrada). Sexta a segunda-feira, das 10h00 às 19h00 (última entrada).

“Espere o inesperado” é o mote para o novo museu. A pergunta que se impõe ao historiador é saber se também foi surpreendido com o inesperado? Sem dúvida. Embora o tema seja do conhecimento dos especialistas, creio que até para os historiadores é de certa forma uma surpresa a extensão do impacto filosófico e cultural do Terramoto de 1755 na História da Europa e da própria Ciência, bem como nas conceções posteriores acerca da Natureza, da Humanidade e da própria Incerteza”.