Todos os dias são dezenas os turistas que chegam à Cidade Velha, na ilha de Santiago. Eram 4.000 em 2009 e atualmente chegam aos 60 mil por ano.

Querem conhecer o Pelourinho, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, a mais antiga igreja colonial do mundo, erguida em 1495, e a Rua da Banana, a primeira artéria de urbanização portuguesa nos trópicos. E, claro, a baía do mar azul, onde é constante a faina dos pescadores.

Há restaurantes na orla, alguns explorados por proprietários de outras nacionalidades, e na praça central contam-se pelos dedos os vendedores que disponibilizam produtos africanos, dos quais poucos são característicos de Cabo Verde.

No final da visita, os turistas regressam ricos da lição de história viva que aprenderam naquele que é o berço da cabo-verdianidade e sem grandes gastos. Isto apesar de um estudo recente ter demonstrado que quem visita a Cidade Velha tem disponibilidade financeira para gastar até 60 euros, mas não tem serviços nem produtos para tal.

Por outro lado, a população confronta-se com várias restrições impostas para a obtenção e manutenção do título de Património Mundial, como a impossibilidade de as habitações crescerem após determinado nível.

Mas perante a possibilidade de se mudarem para habitações de melhor qualidade e com mais condições nos arredores da Cidade Velha, os moradores nem querem pensar nisso, garantido que “quem é da Cidade Velha morre na Cidade Velha”.

A “plena assunção por parte da comunidade do conceito de património mundial” é, aliás, apontado pelo presidente do Instituto do Património Cultural (IPC), Jair Fernandes, como o “ganho menos conseguido na Cidade Velha com a sua elevação a Património da Humanidade”.

“A população residente, e não só, tem em mente os ganhos e as restrições que um sítio património mundial tem. A determinada altura, entre a prática e os discursos, houve aqui um vazio operacional que levou a um divórcio entre a comunidade e o próprio património”, disse.

Este divórcio entre a população e o património não é recente. A primeira “crise” aconteceu quando a Cidade Velha foi saqueada, incendiada e quase abandonada, em pleno século XIX.

No início do século XX registou-se um retorno da população que precisou de construir as suas casas e apenas contou com os materiais que tinha à mão, entre os quais os restos de ruínas, como as pedras e cantarias da Sé Catedral, a única em Cabo Verde, construída no século XVI.

Pouco antes da classificação da UNESCO, o espaço da Catedral era utilizado para guardar gado e o lixo acumulava-se. Hoje, o monumento está a assistir a um novo renascer, tendo voltado a receber eventos religiosos.

Para o presidente do IPC, a existência de conflitos entre a comunidade e o próprio título não é um exclusivo da Cidade Velha. Estes acontecem porque, por um lado, a comunidade não tem ganhos diretos com a classificação e, por outro, sentem as restrições como um entrave aos seus anseios, nomeadamente habitacionais.

Jair Fernandes reconhece que, desde 2009, as ações desenvolvidas foram “paliativas: Uma melhoria aqui, uma melhoria ali”, mas sublinha a “clara visibilidade que o sítio passou a ter a nível nacional e internacional”.

“Há uma preocupação interna das instituições, sobretudo instituições de ensino, em conhecer a cidade, o património, a nossa história”, disse.

Mais difícil para a esmagadora maioria da população é ter acesso ao Forte Real de São Filipe, cujos bilhetes de entrada custam 500 escudos (perto de cinco euros), num país onde o salário mínimo nacional é 13 mil escudos (cerca de 118 euros).

O presidente do IPC acredita que estes 10 anos de classificação da Cidade Velha não serviram apenas o sítio, mas também para “a própria inclusão do património cultural na agenda pública de Cabo Verde”, seja ao nível dos debates político partidários, como da própria assunção do património como um setor fundamental para o desenvolvimento” do arquipélago.

As intervenções em curso e agendadas para o sítio histórico são várias: Está a decorrer a intervenção na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, a Câmara Municipal tem uma intervenção muito grande na requalificação urbana na cidade, o que revela que “há uma preocupação estatal em relação à conservação do título, por um lado, e também em criar condições de vida para a comunidade que ali reside”.

Questionado sobre se a classificação da UNESCO alguma vez esteve em risco, Jair Fernandes assegura que não, mas reconhece que a preocupação do IPC e da tutela foi sempre “tentar salvaguardar qualquer possível risco que possa estar exposto”.

Em relação à comunidade, acrescentou, as condições estão criadas para a “reconquistar”.

Jair Fernandes assume que gostaria de ver os locais a aproveitar as oportunidades que a Cidade Velha oferece, embora sejam “de fora” os que exploram esta “galinha dos ovos de ouro”.

As comemorações do décimo aniversário da elevação da Cidade Velha a Património Mundial iniciam-se no Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, em 18 de abril, e terminam no Dia Nacional da Cultura em 18 de outubro.

SMM

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