Recentemente veio a público a notícia de mais um processo crime de violência doméstica que foi suspenso provisoriamente com a menção do agressor dever passear com a vítima caso esta assim consinta.
Sendo que, nas múltiplas publicitações e comentários feitos a esta notícia sempre se salientou que a vítima consentiu na suspensão provisória do processo, o que transmite a ideia clara e inequívoca que a decisão judicial que veio a público teve por base a vontade expressa da vítima.
Ora, urge clarificar que nos processos de violência doméstica como em todos os outros só possível a suspensão desde que todos os sujeitos processuais estejam de acordo.
Mas o que há de errado na vontade da vítima?
O problema nos processos de violência doméstica está quando a possibilidade da suspensão provisória do processo é apresentada à vítima pelo Ministério Público como algo de promissor para o relacionamento em causa. Na realidade, é apresentada à vítima a versão de um agressor que está arrependido e que até se pode reabilitar por via da suspensão provisória do processo, seja porque já apanhou um “susto” com a pendência do processo seja porque o agressor se pode apresentar como alguém que está disposto a tratar-se de um problema aditivo, ou seja, apela-se ao que a vítima quer ouvir, que é a realidade ideal face ao seu contexto de vida. A suspensão provisória do processo é apresentada como um sinal de esperança, o que determina a vítima a dar mais uma oportunidade na firme convicção de que a relação abusiva vai deixar de o ser e que vai ficar tudo bem. Ou seja, as vítimas são persuadidas a aceitar a suspensão provisória do processo como se essa fosse a cura milagrosa para a relação abusiva.
Mas será assim? Os agressores deixam de o ser? Ou tratam-se? E onde? Quais são os resultados que efetivamente se conhecem sobre os programas de tratamentos a agressores?
Reconhecendo que haverá casos em que as determinações estipuladas aquando da suspensão do processo são cumpridas pelos agressores, o que vai determinar ulteriormente o arquivamento do processo crime, na sua maioria, os agressores aceitam a suspensão provisória do processo como forma de evitarem a continuidade do processo crime e a eventual e possível condenação pela prática do crime.
Por outro lado, os tratamentos para agressores em contexto de violência doméstica são praticamente inexistentes no nosso país, com um número de adesões muito reduzido e sem resultados apresentados.
Sendo que, o que se constata é que decorrido algum tempo sobre a suspensão provisória do processo, a maioria dos agressores reincide na sua conduta violenta sobre as vítimas, o que se denota através das novas denúncias apresentadas e pedidos de ajuda nas organizações de apoio a vítimas.
No final, as vítimas são mais uma vez apontadas como sendo as responsáveis por terem aceite parar o processo, quando o sistema é que as impele a essa atitude apesar de estarmos perante um crime público, que é um crime violento e nunca deveria comportar a possibilidade de suspensão provisória do processo.
Como resultado da utilização deste mecanismo de suspensão provisória transmite-se inequivocamente a ideia para as próprias e para a sociedade em geral que, afinal, apesar de estarmos perante um crime público é possível aos intervenientes processuais pararem com o processo chegando a um acordo. Sendo que, neste caso, os agressores acabam por nunca ser julgados pela prática do crime de violência doméstica, como se se tratasse de uma questão menor, passada no seio familiar.
Acresce que, o processo penal dispõe de outros mecanismos -medidas de coação- para impor aos agressores a proibição de aproximação e de contactos em relação às vítimas e de os mesmos assumirem a realização de um tratamento - quanto mais não fosse um acompanhamento psicológico -, caso realmente assim o desejassem, garantindo-se, assim, a continuidade do processo crime.
Não obstante, na maioria das situações em que não se alcançam os objetivos da suspensão provisória do processo pelo não cumprimento dos agressores, constata-se que o mecanismo da suspensão provisória do processo foi mais uma oportunidade dada aos agressores no sentido de se reabilitarem e de não serem no futuro submetido a um julgamento, mas que veio a resultar num claro prejuízo para as vítimas que concederam mais uma oportunidade com vista à reabilitação dos mesmos, movidas pela tal esperança atrás falada, e que, não tendo resultado, tal oportunidade vem a concretizar-se na continuidade da conduta violenta, na morosidade acrescida dos processos crimes que estiveram suspensos e na consequente revitimização das vítimas.
Já para não falar que, sendo as crianças consideradas como vítimas de violência doméstica quando expostas a um contexto de violência familiar, atento o estatuído no nº 1, alínea e) do art. 152º do Código Penal, então, seria pertinente pensar-se quem acautela os seus interesses numa eventual situação de suspensão provisória de processo, já que as mesmas enquanto menores de idade não podem dar o seu consentimento para a suspensão. Estaremos neste caso a assegurar o superior interesse das crianças?! É que na circunstância de haver um falhanço da suspensão provisória do processo crime serão revitimizadas as vítimas adultas e as vítimas crianças!
Portanto, recomendações para os agressores passearem com as vítimas durante o período de suspensão são conselhos que, a existirem, espelham a total falta de consciência do crime de violência doméstica enquanto crime violento e que correspondem a uma visão que se acredita dever ser erradicada e combatida pelas Secções Especializadas Integradas de Violência Doméstica do Núcleo de Ação Penal do Ministério Público precisamente enquanto unidades especializadas.
A suspensão provisória do processo crime de violência doméstica não teria mal nenhum se não estivéssemos perante um crime violento, mas estamos! E esta é mais uma forma de continuar a domesticar e tratar como pequenino um dos maiores flagelos da nossa sociedade.
O crime de violência doméstica, enquanto crime violento, exige uma intervenção e proatividade do Ministério público que não se coaduna com um acordo realizado entre os intervenientes de um processo de violência doméstica. Ainda que inconscientemente, com o mecanismo da suspensão provisória do processo, continuamos a transmitir a ideia da impunidade da violência à sociedade e aos agressores, o que é impensável!
Um artigo de opinião da advogada Ana Leonor Marciano, especialista em direitos humanos, violência de género, violência doméstica e direitos das crianças.
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