Parafraseando o adágio latino, a rir se criticam os costumes e, acrescentamos, também se pode aprender.  Professora há mais de 25 anos, Lúcia Vaz Pedro lança mão do cómico no seu livro, “Camões conseguiu escrever muito para quem só tinha um olho…” numa tentativa de ajudar os alunos – e todos interessados – a ultrapassar as suas dificuldades e a aprender com os erros mais frequentes dados em sala de aula, testes e exames nacionais.

Com uma carreira dedicada ao Português, como professora, escritora e cronista, Lúcia Vaz Pedro não desanima face aos tratos de polé de que é vítima diariamente a língua de Pessoa e Camões e, reitera, “desistir não é opção”. Se a coleção de disparates e erros dados à estampa podem fazer rir, espelham também o estado do ensino do Português.

A quem se destina, prioritariamente, este livro?

Este livro destina-se, prioritariamente, aos alunos que não gostam de Português ou que têm dificuldades em aprendê-lo, embora possa ser utilizado como ferramenta por professores. Trata-se de uma forma diferenciada de motivar para a aprendizagem, através do cómico.

Qual foi a principal motivação para reunir e dar à estampa esta coleção de “pérolas”?

Quando muito se fala em metodologias diferenciadas, quando os alunos mostram tão pouco interesse pela leitura, este livro surge como uma estratégia de motivação, abarcando os diferentes anos de ensino, desde o sétimo ao décimo segundo anos. Na verdade, através do caráter anedótico, pretende-se que o aluno compreenda as suas falhas e sinta vontade de as ultrapassar, através da secção «Vamos Aprender».

O que se passa nas aulas de Português
créditos: Lise Gagne

Nalgumas respostas que selecionou deteto não só alguma criatividade, como também um esforço para serem engraçados. Os alunos já não têm vergonha de não saber? Ou por outra, a ignorância está na moda?

Há alunos casualmente anedóticos, por desconhecimento e outros que pretendem ser engraçados. Este livro é uma compilação de quase trinta anos de situações que fui registando, de que me lembrei ou que me fizeram chegar. O quotidiano de um professor tem imensas situações em que os alunos, para chamarem a atenção, dizem coisas disparatadas: umas revelam muita criatividade, outras somente perturbam o normal funcionamento da aula.

Houve alguma reação ao livro por parte dos seus alunos? Algum que se sentisse visado e/ou ofendido? Já algum lhe perguntou, a propósito do título, “porque raio escreveu Camões para zarolhos?

Nenhum aluno se sentiu ofendido, porque nenhum aluno é identificado. Alguns alunos, provavelmente, nem se lembram do que fizeram, pois, estes registos são de há muitos anos.  Relativamente aos meus alunos atuais, identificam-se com alguns dos erros, mas riem-se dos outros colegas. O caráter lúdico e anedótico acaba por atingir o objetivo principal: o pedagógico.  Quanto à última pergunta, não me lembro de alguém ma ter feito.

OS PROFESSORES NÃO FAZEM MILAGRES. LUTAM PARA QUE OS ALUNOS GOSTEM DE LER, MAS EM VEZ DE LHES OFERECEREM LIVROS, OFERECEM-LHES CONSOLAS E TELEMÓVEIS.

Brincadeiras à parte - e embora seja inevitável rirmos com algumas das situações que descreve -, parece-me que temos mesmo de rir para não chorar face às (in)competências evidenciadas por muitos estudantes. Este livro não espelhará, também, um certo falhanço do ensino?

Não diria que seja um falhanço do ensino, mas, sim, um falhanço do sistema. Os professores não fazem milagres. Lutam para que os alunos gostem de ler, mas em vez de lhes oferecerem livros, oferecem-lhes consolas e telemóveis. Lutam para que os alunos vejam programas culturais, mas, na televisão passam programas sem interesse e que os incentivam à violência por imitação. No meu tempo de aluna, tinha um ‘respeito santo’ pelos professores. Esse respeito esvaiu-se. Hoje em dia ninguém quer ser professor e essa é a principal falha do ensino, porque, apesar de não serem respeitados, de ganharem mal, de trabalharem, muitas vezes, longe de casa e das famílias, sujeitos a serem, quantas vezes, maltratados por jovens e pelos seus responsáveis, os professores continuam a acreditar, continuam a dar tudo em prol da educação.

Por outro lado, os encarregados de educação deveriam ter mais tempo para os filhos: tempo para os educarem, tempo para lerem com eles, para conversarem, para irem ao cinema, ao teatro, aos museus, aos jardins. Ser pai, mãe, avó, tio, tia, papéis que um professor nunca conseguirá substituir. Trabalha-se até muito tarde. Não há tempo para se viver a família. Eis o falhanço da sociedade portuguesa!

O que se passa nas aulas de Português? Professora alerta em livro para “pérolas” dos tropeções na Língua

APRENDER A INTERPRETAR ENUNCIADOS PASSA PELA CAPACIDADE DE LER O MUNDO ATRAVÉS DAS PALAVRAS.»

No cerne dos equívocos mais frequentes que são relatados, está uma evidente dificuldade na interpretação dos enunciados. A que atribui essa dificuldade?

Para se poder trabalhar melhor, neste momento caótico em termos de leitura e de escrita, por exemplo, precisaríamos de turmas mais pequenas. Os alunos precisam que os ensinem a ler e a escrever. Com turmas enormes e desmotivadas, com uma excessiva carga letiva, com a atração pelos computadores, pelos jogos eletrónicos e a sociedade a não proporcionar tempo para refletir/meditar/sentir o mundo e os outros a escola é um lugar de aprisionamento, onde não é aprazível estar-se.

Aprender a interpretar enunciados passa pela capacidade de ler o mundo através das palavras.

Ainda a propósito da interpretação, e na sua experiência como professora, parece-lhe que os mais jovens estão cada vez mais literais, escapando-lhes as subtilezas do discurso, os seus sentidos implícitos, a ironia ou subentendidos? Faltarão emojis nos textos para ajudar à decifração de intencionalidades?

Os alunos estão habituados à informação imediata. Ela invade-os através das redes sociais, através da televisão. É tudo tão visual que os alunos são incapazes de interpretar as subtilezas dos sentidos dos textos escritos. Por exemplo, quando leciono «Os Maias», continuo a rir-me da ironia que perpassa os «episódios da vida romântica». Os alunos olham-me de soslaio e, por muito que tente explicar-lhes, não são capazes de achar piada àquelas subtilezas da linguagem queirosiana.

camões
Lúcia Vaz Pedro, autora do livro "Camões conseguiu escrever muito para quem só tinha um olho…"

Os erros ortográficos enxameiam boa parte das respostas que aqui expõe – e uma rápida incursão pelas redes sociais revela a dimensão da praga. A luta está perdida?

A luta nunca está perdida. Não conheço nenhum professor que o diga. Os professores são pessoas que acreditam, que se esforçam, que fazem formações atrás de formações em busca de soluções, em busca de caminhos, aqueles que todos nós sabemos, mas que seriam autênticas «autoestradas», muito caras para o Estado Português, mas uma aposta para quem acredita que o futuro está na educação.

Há quem defenda que se não fossem os utilizadores ignorantes da língua, ainda hoje falaríamos latim e que a evolução das línguas é um fenómeno natural. Assim sendo, como sensibilizar para a necessidade de escrever/falar com correção?

Existe uma norma e é essa que se deve seguir. No entanto, uma palavra pode integrar a norma, quando passa a ser dita/escrita por um grande número de falantes. Vejamos, por exemplo, a palavra dióspiro. Trata-se de uma palavra esdrúxula. Porém, por via do uso, já se aceita a sua pronúncia como palavra grave, sem acento na penúltima sílaba.

Falar e escrever com correção é uma garantia de integração na sociedade e pode ser uma forma de sucesso pessoal e profissional.

Entrevista de Isabel Reis


Isabel Reis é licenciada em Comunicação Social, tem pós-graduação em Edição e Mestrado em Educação. Atualmente, desempenha funções como educadora de infância e é tradutora e jornalista free lancer.