Perante questões do quotidiano, como o amor, a liberdade, as decisões laborais, a nossa relação com os outros, a doença, a cura, a dieta que seguimos, entre um sem-fim de outros temas, Margot Cardoso, jornalista e mestre em filosofia, aponta-nos um caminho, a filosofia, “uma grande farmácia que apresenta remédios específicos para dores e males”. A autora do livro A filosofia resolve (edição Oficina do Livro), revela-nos que são inúmeras as aplicações práticas desta ciência. A filosofia é mais do que pensamento abstrato, “está em tudo e em toda parte. Está na ida ao café, de manhã, até na hora em que se decide silenciar o telemóvel, antes de dormir. Está nos planos para o próximo fim de semana, nos planos para o futuro e no questionamento sobre o sentido da vida”, sublinha Margot na entrevista que concede ao SAPO Lifestyle.
Uma conversa que responde à pergunta, “o que a filosofia pode fazer por nós?”, para nos apresentar caminhos para voltarmos a abraçar virtudes como a coragem, a empatia, a resiliência e a esperança, num tempo de grande consumismo e urdido de malhas tecnológicas.
Margot Cardoso nasceu em São Paulo, licenciou-se em Jornalismo e História, tem um mestrado em Filosofia pela Universidade de Lisboa. Vive na capital portuguesa desde 2001.
Há uma pergunta que a Margot lança a abrir o seu livro cuja resposta motiva um bom ponto de partida para esta conversa: “Para que serve a filosofia?”
A filosofia ensina a viver. Essa resposta, aparentemente simples, causa estranheza porque as pessoas acham que isso não é necessário. Paradoxalmente, todos admitem que viver é difícil, que é uma arte. Porém, essa dificuldade em viver contempla e inquieta o homem de todos os tempos. E agora, na modernidade, mais ainda. Hoje, vivemos um tempo de psicopatias e distúrbios mentais, como a depressão e a ansiedade. Há excessos por toda parte. Nunca se falou tanto na “busca da felicidade”, propósito e sentido da vida. E a filosofia pode ser uma boa companheira nessas buscas.
Muitos dos leitores terão contactado com a filosofia somente nos currículos escolares, sem fazerem a ligação ao plano utilitário da disciplina. Em abono da filosofia, que exemplos nos pode dar do apoio que esta presta em questões que nos são próximas no dia a dia?
A filosofia está em tudo e em toda parte. Está na ida ao café, de manhã, até na hora em que se decide silenciar o telemóvel, antes de dormir. Está nos planos para o próximo fim de semana, nos planos para o futuro e no questionamento sobre o sentido da vida. Que estilo de vida quero viver; qual é a atitude que devo ter com o outro; qual é a melhor escolha; qual é ação certa; quem eu escolho para partilhar as minhas angústias e as minhas alegrias; que tipo de pessoa quero amar. Todas são questões filosóficas. E em todas essas questões a filosofia tem uma palavra a dizer.
Lamento que não haja filosofia no primeiro ciclo porque as crianças crescem obcecadas com o desejo de se destacar, em serem populares. E mais para frente — e peço licença para ser um pouco subversiva — a filosofia do secundário deveria falar diretamente com as inquietações e os desafios da adolescência, por exemplo. Teríamos mais reconhecimento sobre a importância da filosofia, mais adolescentes saudáveis e mais amantes da filosofia.
Nunca se falou tanto na 'busca da felicidade', propósito e sentido da vida. E a filosofia pode ser uma boa companheira nessas buscas.
Atualmente, a filosofia e os filósofos estão a ganhar um novo protagonismo?
A filosofia sempre foi necessária, porém, hoje, ela é ainda mais necessária porque o nível de complexidade atual subiu muito. Há uma avalanche de informações, de apps, de apelo, de distrações que contribuem para que nos percamos. O senso comum diz que a psicopatia é a falta de sentido. Não é. É o excesso de sentido, a falta de leveza, que nos adoece. A filosofia serve para nos situar, saber o que devemos prestar atenção e o que devemos ignorar.
Vivemos num mundo imerso em tecnologia, no digital, onde se apregoa o progresso permanente. É um mundo onde ainda faz sentido, por exemplo, a mitologia grega?
Os mitos são arquétipos muito antigos, antes de surgir a filosofia e a religião, eram eles que explicavam o mundo e ajudavam o homem a compreender os outros e a si próprio. E os mitos continuam incrivelmente atuais porque a nossa natureza é a mesma. As narrativas mitológicas — dramas e tragédias — estão em camadas profundas da nossa psique, no consciente coletivo, na nossa cultura. Os mitos revelam realidades psíquicas nossas que racionalmente não alcançamos. O que está na base da violência contra a mulher, praticada pelos homens? A psique narcísica do homem. O complexo de Édipo está em destaque na modernidade, o mito do Minotauro revela as nossas intensas contradições. Os mitos são uma espécie de banco de dados de todas as vivências e narrativas humanas.
A leitura de certas passagens do seu livro deixa-nos um travo a um certo fim de tempo. Concorda?
Sim. Eu não sou otimista sobre “este” tempo. Mas não acredito na ‘danação’. Creio que haverá uma quebra, e surgirá outro cenário substituto. Qual será, não sei. Mas como está não vai durar porque é insustentável.
Escreve no seu livro que “hoje o homem é emocionalmente mais fraco do que o que Nietzsche testemunhou”. O que nos torna mais fracos e como se manifesta essa debilidade?
Somos vítimas de uma cultura que nos ensina que a vida boa, a vida que vale a pena (ou qualquer outra busca moderna, como realização, sentido da vida, propósito e felicidade, por exemplo) estão sempre fora da vida: no futuro, nos nossos projetos. É a história do final da corrida, da linha de chegada, da luz no fim do túnel. São séculos de ensinamentos de que o paraíso está num outro mundo, não neste, não agora. De uma certa forma, a vida está sempre suspensa. E essa condição foi captada pelo radar de Nietzsche. Considerado como o grande vitalista, Nietzsche é o filósofo da vida no aqui e agora, no presente, neste exato momento. E esse apelo nietzschiano, mais do que nunca, precisamos dele. É um chamamento para a vida no agora, no presente, o único tempo que temos.
Hoje estamos numa condição pior da que Nietzsche testemunhou porque na maioria das nossas horas, além de habitarmos o futuro, temos menos tempo ainda para o presente porque estamos distraídos com o excesso de apelos da sociedade digital. Com isso, somos mais fragmentados e atuamos com menos intensidade.
Somos vítimas de uma cultura que nos ensina que a vida boa, a vida que vale a pena, estão sempre fora da vida: no futuro, nos nossos projetos.
Por que nos diz que encontrou em Nietzsche uma salvação?
Quando quis tomar decisões importantes na minha vida, fui a uma psicoterapeuta. Não sou uma pessoa de muita ação, sou reflexiva, precisava de ajuda. Eu sentia que deveria agir, dar o salto. E tinha urgência, como uma boa vitalista precisava dar o salto hoje. Após quatro sessões, desisti, não podia esperar mais. Foi então que reencontrei Nietzsche. Apesar de sentir dor 200 dias por ano, Nietzsche tem um vigor intenso, é um filósofo da vida. Foi ele me encorajou, me fortaleceu, segurou na minha mão e me acompanhou no salto. Desde então, o obra de Nietzsche acompanha-me, e a sua leitura é sempre em estado de absoluto encantamento.
Também refere no livro que procuramos anular a nossa dimensão emocional em detrimento da racional. Contudo, no dia a dia, assistimos à manifestação “a quente” das emoções e “estados de alma”, por exemplo, nas redes sociais. A que aspetos emocionais/racionais se refere a Margot?
Somos um misto de razão e emoção. Mas, praticamente, desde o surgimento da filosofia, passando pelo ápice com Descartes passamos a valorizar em demasia o racional e esquecemos as emoções. É quase com orgulho que nos autoproclamamos “somos animais racionais”, porém, as nossas emoções, conscientes e inconscientes continuam vivas e procurando o seu espaço. O problema dessa “negligência” com as emoções é que elas não vão embora. Ficam por ali e podem ficar fora de controle, inadequadas, impertinentes. Na “intimidade” das nossas redes sociais, a sós, protegidos pela distância do ecrã, alguns protegidos até pelo anonimato, essas emoções não vividas, negligenciadas, não trabalhadas emerge das sombras. E é o que se vê: os haters, a agressividade, a maledicência, a infâmia. Vamos de um extremo ao outro, sem equilíbrio, sem saúde. As emoções, o que sentimos e o que pensamos precisam estar entrelaçados.
A “busca fanática por fórmulas de felicidade” que refere está a deixar-nos angustiados e depressivos? Será que procuramos a felicidade onde esta não se encontra?
O problema é mais fundo. A busca da felicidade é angustiante porque é uma busca por algo que não pode ser alcançado. É uma busca inútil. A felicidade, como pensamos, não existe. O que existe é a ideia da felicidade. E esse ideal da felicidade foi inventado pela sociedade de consumo. É uma ideia para vender produtos. É preciso que se diga que o sorriso na fotografia é coisa do pós-guerra. Antes as pessoas não riam em fotografia.
E a grande frustração gerada por essa ideia da sociedade de consumo é que ela bate de frente com o nosso aparelho psíquico, que visa sobretudo a sobrevivência. Estamos muito orientados para identificar o negativo, aquilo que falta, do que perceciona que nos traz satisfação. Geralmente, os momentos de “normalidade” para usar uma palavra próxima da satisfação passam-nos ao largo. Não damos por eles, porque eles não ameaçam a nossa sobrevivência. Então, eles não são captados pelo nosso radar. Não fomos feitos para sermos felizes.
A busca da felicidade é angustiante porque é uma busca por algo que não pode ser alcançado. É uma busca inútil. A felicidade, como pensamos, não existe.
O amor e o trabalho tornam-nos menos felizes?
Se o trabalho invade outras dimensões da vida como a familiar e a social, sim, o trabalho pode ser uma fonte de sofrimento. Infelizmente, hoje, há uma predominância do trabalho como uma experiência nociva. A maioria só consegue sair desse looping quando adoece, com os burnouts. É um modo de funcionar difícil de travar porque o excesso de trabalho é visto como algo positivo. Há uma espécie de glamorização da “agenda cheia” e o “não tenho tempo para nada”. As pessoas são exploradas, prejudicam a sua saúde mental e física, sacrificam o tempo com a família, com o autocuidado e acham que estão a realizar-se.
Sobre o amor. O amor romântico ou a busca por um par pode ser uma grande fonte de angústia. A idealização do outro, a falta de autoconhecimento, só para citar dois entraves, fazem com que as relações sejam o grande desafio da modernidade. Freud, no Mal-estar da civilização afirma que nunca nos encontramos mais desprotegidos contra o sofrimento do que quando amamos, nunca nos sentimos mais desesperadamente infelizes do que quando perdemos o objeto amado ou o seu amor.
Margot, vivemos numa sociedade híper-consumista, provavelmente como nunca antes assistimos. A filosofia prescreve-nos a receita para refrear este consumismo?
Sim. A filosofia ajuda a refrear porque expõe os mecanismos que levam ao consumo. É preciso que se diga que as marcas têm atrás de si um arsenal de conhecimento sobre manipulação e gatilhos que ativam o nosso desejo de consumir. Para além dessa questão mais técnica, é preciso que se diga que a grande confusão moderna é entre ser e ter. Pessoas satisfeitas e equilibradas não são consumistas.
Os filósofos são bons “conselheiros matrimoniais” e em questões amorosas?
São. A dimensão do amor foi sempre um tema da filosofia de todos os tempos. O marco primeiro é O Banquete, de Platão e o tema segue importante até os dias de hoje. Alguns mais realistas (Kant), outros mais pessimistas (Schopenhauer), outros românticos (Kierkegaard). E mais do que isso, as próprias trajetórias amorosas (ou não trajetórias) desses filósofos complementam e elucidam as suas ideias sobre o amor.
A Margot considera que a filosofia nos pode acrescentar uma dimensão de humildade num mundo dominado pelo “eu” e onde falta o “nós”?
Com certeza. A filosofia dá muita ênfase à alteridade, a profunda importância do outro. O outro constitui-nos. Somos formados a partir do olhar do outro. Durante muito tempo, acreditou-se que éramos seres solitários que para sobreviverem tiveram que se agrupar, se relacionar com outros. E passa-se o contrário, nascemos coletivos e a partir do outro construímos a nossa singularidade, a nossa individualidade. Por isso, não é correto, dizer “eu não gosto de determinada pessoa”. O correto é: “eu não gosto do que sou quando estou com determinada pessoa”.
Uma palavra que parece ter caído em desuso é “virtude” por nos parecer desadequada no presente. Como praticar na atualidade a virtude?
Antes da modernidade, as virtudes tinham muito valor porque elas estavam associadas à honra, ao heroísmo. E mais do que isso, elas agradavam a Deus. Hoje, essas dimensões perderam importância. E para piorar, todos os dias, somos confrontados com exemplos do triunfo do mal. Youtubers, com conteúdo nocivos, ficam milionários. Supostos músicos arrastam multidões. Assassinos confessos recebem cartas apaixonadas no cárcere. E o pior é que as pessoas já se habituaram a ausência de virtude e, principalmente, de modelos éticos. Quando alguém tem um gesto altruísta, de compaixão ou de coragem, é visto com descrédito. Desconfiam que a motivação é a isenção de impostos, a vaidade ou qualquer outra agenda oculta. Isto é, nem se cogita se se trata de uma pessoa virtuosa. Paralelamente a isso, há um culto do ódio, que neutraliza um dos melhores trunfos humanos: a bondade. O que fazer? É um trabalho longo, de base. É preciso educar para as virtudes, destacar os modelos éticos. E essa é uma tarefa dos pais, mas que a escola, a sociedade civil e o estado também têm um contributo importante. Sem virtudes não se protegerá o planeta, não haverá tolerância para as diferenças. Será a materialização do “todos contra todos” de Hobbes.
Entrevista concedida por escrito em julho de 2022.
Comentários