Quem é o Fausto Silva?

O Fausto Silva é uma pessoa que gosta de fotografia, de conduzir, de ir à praia, de estar com a família e com os amigos, que tem um trabalho onde é feliz. E, por acaso, é uma pessoa transgénero.

Com que idade é que percebeste que o sexo que te tinha sido atribuído à nascença não era aquele com que te identificavas?

Senti-me mulher durante muito tempo, mas tinha momentos em que era confrontado com o facto de não me sentir bem no meu corpo. Eu andava muito de BMX, fui a primeira rapariga a participar num campeonato nacional e, também por isso, usava roupas largas e calças da secção de rapaz, o que trazia muitos comentários. Quando vim morar para Lisboa, tive mais contacto com pessoas transgénero, a sua experiência, e depois foi um processo de autoconhecimento gradual.

Na altura estavas familiarizado com noções como transexualidade, disforia de género e comunidade LGBT+ ou era um universo completamente desconhecido?

Quando vim morar para Lisboa, comecei a ter mais contacto com pessoas transgénero. Aos 21 anos comecei a fazer voluntariado na ILGA e fui ficando cada vez mais familiarizado com estas noções. Ao longo de todo o processo, comecei a compreender melhor este universo e a conseguir associar aquilo que ouvia àquilo que sentia. Ao conhecer certas noções, comecei a refletir sobre os meus pensamentos e a conseguir acrescentar um significado àquilo que eu sentia.

À medida que me fui conhecendo melhor, comecei a sentir-me cada vez mais à vontade para ser eu mesmo

Olhando para trás, sentes que, até esse momento, tiveste de representar um papel nos diferentes domínios da tua vida?

Na adolescência, sinto que, por pressão da sociedade, fiquei muito feminino. Ainda que de forma inconsciente. À medida que me fui conhecendo melhor, comecei a sentir-me cada vez mais à vontade para ser eu mesmo. E eu não sou só uma pessoa transgénero. Eu sou o Fausto.

O que mudou na tua vida a partir do momento em decidiste avançar com a transição social e a terapia hormonal?

Desde o início do processo de tratamento hormonal até à intervenção cirúrgica, tive como foco masculinizar o meu corpo porque queria ter uma imagem coerente para mim e para os que me rodeiam. Em 2022, fiz uma intervenção cirúrgica, que representou uma enorme liberdade para mim. Passei a sentir-me mais confortável, a poder fazer coisas simples, como tirar a camisola em público. Porque, até esse momento, eu sentia que tinha algo que não me pertencia.

Por mais que me tratem por um pronome feminino, eu vou sempre ser um homem

Qual a reação dos teus pais, familiares e amigos mais próximos quando lhes contaste que ias mudar de sexo? Qual a maior dificuldade sentida por eles durante este período de transição?

A minha família foi muito compreensiva, tal como os meus amigos próximos. Também eles tiveram o seu tempo para processar e assimilar a informação. Colocaram-me muitas questões, que vinham de um lugar de pura curiosidade, e eu estive sempre disponível para lhes dar a conhecer a minha experiência. Creio que a maior dificuldade deles são os pronomes, mas tenho consciência de que tem de existir um período de adaptação, que pode ser mais longo consoante a idade e o contexto em que as pessoas foram educadas. Estou cá para esclarecer o que for necessário. Nada vai mudar aquilo que eu sou. Por mais que me tratem por um pronome feminino, eu vou sempre ser um homem. No final do dia, é isso que importa.

Sentes que tua vida começou de novo e que, de alguma forma, renasceste assim que viste o nome Fausto no teu Cartão de Cidadão?

Sinto que, desde então, sou uma pessoa mais livre e realizada.

Enquanto um dos 11 colaboradores IKEA membro da comunidade LGBT+, o que significa para ti uma empresa reconhecida a nível mundial ter uma cultura mais inclusiva, tolerante e que acolhe a diferença em vez de a marginalizar?

A IKEA para mim é sinónimo de inclusão e diversidade. Na IKEA, eu sou o Fausto e ponto final. Aqui sinto-me em casa. Sei que ainda existem muitas pessoas que se sentem excluídas, e acredito que a IKEA é uma inspiração e tem tido um papel fundamental na mudança deste paradigma.

Temos o dever de ouvir, compreender e tratar todas as pessoas como pessoas, independentemente do seu género ou orientação sexual

Qual o balanço que fazes desta experiência profissional? Já passaste por alguma situação delicada no teu local de trabalho?

Sobre a campanha

No âmbito do mês do PRIDE, a IKEA Portugal lançou a campanha ‘Juntos contra a discriminação LGBT+’ onde onze colaboradores membros ou aliados da comunidade LGBT+ foram convidados a partilhar os seus testemunhos sobre os desafios da sua comunidade.

Estereótipos, microagressões, exclusão, mas também superação, aceitação e otimismo fazem parte das sete histórias que foram expostas ao mundo, ocupando espaços onde em tempos estiveram azulejos tradicionais lisboetas, e podem ser visitadas pelo público.

A iniciativa foi levada a cabo em colaboração com o projeto “Preencher Vazios”, que espalha frases inspiradoras pelas principais cidades do país, ocupando espaços em branco deixados pelo roubo ou destruição da fachada original em azulejo.

Tem sido uma boa experiência. Já aconteceu, numa fase inicial da transição, a trabalhar com clientes menos fáceis, tratarem-me por senhora. Mas foram casos excecionais. O balanço é muito positivo. Já trabalho na IKEA há cinco anos e costumo dizer que só saio se me tirarem de lá.

Consideras que passos como o da IKEA são importantes para que se comece a verificar uma maior transformação de mentalidades e aceitação da comunidade LGBT+?

Claro que sim. Campanhas como esta ['Juntos contra a discriminação LGBT+'] são uma forma de sensibilizar a sociedade para a importância da diversidade de género. Acredito que cabe às empresas, e a cada um de nós, ser uma voz ativa para mudar mentalidades e colmatar a lacuna de inclusão que ainda existe. Temos o dever de ouvir, compreender e tratar todas as pessoas como pessoas, independentemente do seu género ou orientação sexual.

 Sentes que Portugal ainda tem um longo caminho a percorrer a respeito deste tema?

Temos feito avanços significativos no que diz respeito à inclusão da comunidade LGBT+, mas ainda há um longo caminho a percorrer. É necessário um esforço contínuo para combater a discriminação, garantir a igualdade de direitos e criar um ambiente seguro e inclusivo para todos.

Ainda são muitos os casos de discriminação e violência contra pessoas LGBT+. É importante criar um ambiente seguro e inclusivo, especialmente nas escolas

Quais os maiores mitos e estereótipos que ainda persistem sobre a comunidade LGBT+?

Um dos mitos e estereótipos que contribuem para a discriminação e o preconceito é a ideia de que a identidade de género ou a orientação sexual é uma escolha ou uma fase passageira. Essa ideia desconsidera estes conceitos como uma parte fundamental da identidade de uma pessoa e perpetua a noção de que ser LGBT+ é algo anormal ou errado. É importante desconstruir estes mitos e estereótipos.

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Acreditas que a educação é fundamental para a criação de uma sociedade mais justa e que aceita o ser humano com todas as suas diferenças?

Acredito, sim. Um dos principais desafios é combater a homofobia e a transfobia, totalmente enraizadas na sociedade. Apesar dos esforços de muita gente, ainda são muitos os casos de discriminação e violência contra pessoas LGBT+. É importante criar um ambiente seguro e inclusivo, especialmente nas escolas. A promoção de políticas de combate ao bullying e a implementação de medidas de apoio psicológico são cruciais para proteger os jovens e garantir que podem ser quem entenderem, independentemente da sua orientação sexual. Tratem-nos como pessoas, acima de tudo como pessoas. Não nos tratem com mais respeito ou como coitadinhos só porque não nos identificamos com o género que nos foi atribuído à nascença. É necessário investir em programas de educação e sensibilização para desmantelar estereótipos e preconceitos, promovendo uma cultura de respeito por todos os seres humanos, com todas as suas diferenças.

Tratem-nos como pessoas. Não nos tratem com mais respeito ou como coitadinhos só porque não nos identificamos com o género que nos foi atribuído à nascença

Enquanto membro da comunidade LGBT+, o que representa para ti o mês PRIDE e porque consideras tão importante a sua celebração pelo mundo? 

O mês do PRIDE é de extrema importância porque celebra a diversidade, a luta pelos direitos igualitários e a visibilidade das pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transgénero. É um momento de reflexão, de memória e de reafirmação dos avanços conquistados, bem como dos desafios que ainda precisam de ser superados. O mês do PRIDE é uma oportunidade para promover a inclusão, combater a discriminação e consciencializar a sociedade para a importância da diversidade. É um momento de união, em que diversas vozes se levantam para reafirmar que todos têm o direito de ser quem são, amar quem quiserem amar e viver com dignidade e respeito.