Se acha que o sexismo é coisa do passado, desengane-me. Em pleno século XXI, ainda são diversas as marcas e empresas que apostam em anúncios e campanhas publicitárias que, à semelhança do que acontecia no passado, continuam a perpetuar estereótipos de género para promover os seus produtos e serviços. E a verdade é que estão por toda a parte: na televisão, nas revistas e nas redes sociais. Casos como este sucedem-se pelo mundo fora e Portugal não é exceção. Nas últimas semanas foram vários os exemplos que surgiram na Internet e que reforçam esta realidade.
A propósito do Dia Internacional da Mulher, celebrado anualmente a 8 de março, o tema serviu de conversa com Paula Cosme Pinto que há diversos anos se dedica a falar sobre a igualdade de género e questões femininas. Atualmente assina a crónica semanal do jornal Expresso "A vida de saltos altos" e ainda disseca estes temas através das suas redes sociais.
Surpreende-a que, em pleno século XXI, grandes marcas de moda e empresas de publicidade continuem a perpetuar estereótipos de género em torno da figura feminina?
Infelizmente não me surpreende porque se olharmos para trás há décadas desta utilização. Isto vem ao encontro do que é a estrutura e os alicerces da nossa sociedade. O machismo está totalmente enraizado, está no nosso imaginário coletivo, na nossa aprendizagem coletiva e é muito difícil desconstruí-lo. Nós somos educados para isto desde pequeninos. Portanto o que acho que está a acontecer - e que é francamente positivo - é uma maior consciencialização do público, dos consumidores. Aliás há países como Inglaterra, França e Suíça, salvo erro, que até fizeram uma regulação do setor da publicidade nos últimos anos, muito com base na proteção da dignidade humana. Percebemos que objetificação, desumanização, a forma ofensiva como falamos não só de género, mas também de etnias, religião e idade, já não é aceitável. Porquê? Porque as marcas têm uma responsabilidade com as mensagens que passam. Uma coisa sou eu, pessoa, que publico uma fotografia minha com uma mama à mostra. Tenho a minha liberdade individual de o fazer. Outra coisa é uma marca que tem uma responsabilidade para com a sociedade, para com os seus consumidores e para o impacto que a sua mensagem passa com o seu produto tem no geral, na nossa vida. O que me surpreende é que realmente nos últimos anos a consciência coletiva do consumidor tem aumentado. Estes movimentos nas redes sociais vieram dar voz à indignação de muita gente, que começou a questionar e a perceber que se calhar isto não faz sentido e que se calhar é ofensivo.
Até temos diversos casos de marcas e empresas que, mais tarde, chegam a emitir comunicados a pedir desculpa…
O que me espanta é que em grandes marcas, que têm grandes equipas de marketing e de comunicação, onde estas coisas passam por tantas mãos, como é que depois o produto final é lançado? Muitas vezes, e temos de ter isto em atenção, também é uma jogada para chamar a atenção. Lembro-me que há uns tempos houve um grande reboliço com a imagem de um talho, numa terriola algures, que fazia uma brincadeira com as coxas de frango e uma mulher na praia. E obviamente que isto gerou indignação e correu as redes sociais. Mas eu compreendo que numa estrutura pequenina e que está num contexto mais fechado - que não tem uma equipa grande a pensar nestas questões - isto possa acontecer. E o que acho louvável é que são os primeiros a pedir desculpa e a dizer "Não era esta a nossa intenção. Vamos retirar. Desculpem." Agora não acho aceitável que as empresas com grandes equipas não façam este exercício e que depois, muitas vezes, se tentem justificar recorrendo a um discurso que está na moda – o feminismo. Mandam três ou quatro patacoadas feministas e acham que está tudo bem. Errar é humano. Eu parto sempre desta premissa: nós somos pessoas, não somos robôs, e mesmo em grandes empresas podemos errar. Mas o caminho também faz-se de assumir que não correu bem. Agora tentar justificar o injustificável, a mim é que me parece uma péssima premissa.
O que tem a dizer às pessoas que desvalorizam a perpetuação e o combate dos estereótipos de género? Como lhes explicaria as suas limitações e perigos?
Há um ponto de partida que, ao longo destes anos todos a escrever sobre os direitos das mulheres, costumo ter: nós não podemos obrigar ninguém a perceber algo no momento. Há uma pergunta chave que nós podemos fazer, que eu acho um péssimo ponto de partida, mas que é ainda o que funciona: e se isto fosse a tua irmã? E se fosse a tua mãe? A tua namorada? O personalizar da figura feminina ajuda a fazer um clique. Muitas são as pessoas que estão completamente a leste destas questões que, ao fazerem esta personalização da figura, lhes pode ajudar a que, de repente, haja ali um momento de reflexão momentâneo.
Se nós pensarmos, as grandes vítimas de violação são mulheres. E os homens são os agressores. As maiores vítimas de violência doméstica são as mulheres e os agressores, mais uma vez, são os homens. E isto não quer dizer que todos os homens sejam agressores ou abusadores, mas as estatísticas mostram-nos isto. E porque é que as mulheres continuam a ser vendidas como mercadorias em pleno século XXI? Porque é que as mulheres continuam a ser obrigadas a casar quando são ainda pequeninas em tantos países? Porque é que as mulheres são violadas em larga escala, na sociedade contemporânea, no mundo europeu, em Portugal? Porque é que a casa continua a ser o sítio mais perigoso para uma mulher, onde invariavelmente são mortas? Estas coisas todas estão interligadas. Estas mensagens são globais e tanto chegam a mim, mulher adulta, como chegam à menina adolescente que está em construção da sua identidade e do seu lugar no mundo, e aos meninos. Passamos esta mensagem aos homens, aos rapazes. Portanto, no fundo continuamos a mostrar às mulheres que elas têm de se assumir como objetos submissos e que o seu corpo pode ser propriedade alheia.
Num destes últimos casos, por exemplo, temos um corpo que não está sequer identificado: não há uma identidade, não há um rosto. Há uma mama por detrás de um copo de vinho, para uma coisa que é de entregas ao domicílio. Isto remete-nos muito facilmente para outro tipo de exploração e cenários em que a mulher, mais uma vez, é a principal vítima. Enquanto tirarmos este lado 360º às mulheres, a normalização da violência contra elas e a sua desumanização vai sendo perpetuada. Quando pensamos em discriminação e violência de género isto é um puzzle cheio de pecinhas e esta é mais uma delas que ajuda à construção do puzzle final. Agora se calhar está na hora de começarmos a desmanchar o puzzle, a mandar as peças fora e construírmos outro tipo de cenário.
Acredita que ainda vivemos numa sociedade machista e que ainda existe um longo caminho a percorrer em relação a este tema?
Nós trazemos séculos de história em que a mulher tem problemas gravíssimos, até mesmo à sua sobrevivência. A sua vida é posta em causa devido a esta desumanização que nós fazemos constantemente das mulheres. Não nos podemos esquecer que, em pleno século XXI, as mulheres são mercadoria, as mulheres são vítimas de tráfico humano. Há países onde as mulheres são trocadas por uma vaca, onde meninas são vendidas para casar. Portanto não nos podemos esquecer que esta desumanização, objetificação e esta forma de transformar a mulher numa mercadoria no fundo, fomenta esta nossa construção global de que o machismo é um padrão e de que é aceitável a trivialização da violência. Podemos achar que foi só uma brincadeira, mas as brincadeiras ajudam a esta construção social.
Por que razão continua a banalizar-se este tipo de mensagens, muitas vezes defendidas pelas próprias mulheres?
Para mim é muito importante compreendermos que o machismo e o sexismo não são exclusivos ao homem. É uma coisa de pessoas no geral. E as mulheres não estão imunes a esta construção totalmente desequilibrada de papéis de género. Se te dizem desde pequenino que é normal, que estas são as regas do jogo, que isto é aceitável, que não há mal nenhum e que vai continuar a ser assim, é difícil questionar. E questionar é remar contra a maré, é cansativo. Muitas vezes é colocares-te em causa até mesmo dentro do teu círculo pessoal, não te reveres nos teus pares e isto pode ser muito desconfortável e pode levar, muitas vezes, a um cenário de exclusão. Dá trabalho refletir fora da caixa, deixar de ser o carneirinho. E é difícil fazer esse caminho quando tudo à nossa volta nos diz ‘não te chateies com isso’. É mais fácil mantermo-nos acomodadas e perpetuar, por mais que depois isso nos possa ser desconfortável a um nível muito interno. Esta aceitação feminina é também um dos resultados de toda esta construção discriminatória da nossa sociedade.
Apesar de serem termos distintos, considera que o sexismo e o machismo são dos principais promotores da perpetuação dos estereótipos de género? Que é impossível dissociá-los nesta matéria?
Nem mais. São problemas distintos mas que se cruzam e que se fomentam um ao outro. Estão totalmente na base das questões da desigualdade de género - que embora sejam um problema que traz maiores prejuízos à vida das mulheres - também afeta os homens. A gravidade com que afeta eles e elas é que é distinta, vai mesmo à questão da sobrevivência.
Para além da perpetuação de estereótipos, que outros efeitos é que a vinculação de mensagens e campanhas sexistas com representações antiquadas da figura feminina têm no leitor e, em especial, no desenvolvimento de crianças e jovens?
Não é só o problema da perpetuação, é também o da normalização. E consequentemente o mimetismo que sabemos ser muito recorrente nas crianças e adolescentes. Ao terem estes conteúdos disseminados em larga escala como exemplos do seu dia a dia, e ainda se põe em cima representações de pessoas adultas - que são os seus modelos de desenvolvimento - neste tipo de conteúdos, tenderão a reproduzi-los.
À semelhança de outros países europeus, considera urgente que em Portugal também sejam criados mecanismos que regulem e ponham limites a este tipo de conteúdos publicitários? Como olha para o papel da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (GIC) que tem como missão a promoção e defesa da igualdade de género?
Quando a autorregulação não funciona, mesmo com tantas recomendações oficiais partilhadas como tem acontecido, parece-me necessário que alguém faça esse papel. Organismos como a CIG, a CITE e a Secretaria de Estado para a Igualdade têm feito um ótimo trabalho de sensibilização nas mais variadas esferas da nossa sociedade nos últimos anos, e muitas vezes têm tomado a dianteira na tomada de posição, colocando um travão a situações inaceitáveis de perpetuação de estereótipos. Mesmo no que toca a avanços na lei temos de reconhecer o mérito do muito que tem sido feito e que está a ser projetado para o futuro. Mas é preciso perceber que mudar formas de discriminação tão estruturais e totalmente enraizadas no nosso ADN coletivo não é uma tarefa fácil e é irreal acharmos que se consegue fazer isto com rapidez. Há muita resistência mesmo a acordos e recomendações oficiais.
É possível erradicar os estereótipos de género? Acredita que a educação e a informação são as principais armas para a sua desconstrução e a criação de uma sociedade mais justa, inclusiva e real?
Eu acho que a escola tem um papel essencial de formação de cidadãos. Os jovens têm de aprender cidadania e a educação sexual é essencial. Temos de falar de relações interpessoais, de intimidade, de respeito, do que é uma relação de intimidade. Não é só falar de preservativos e de como se engravida. É preciso falar do que é o consentimento, do que é cuidar do outro, o que é a sedução, o que é a liberdade sexual. Todas estas coisas têm de ser faladas para não continuarmos a perpetuar. Agora obviamente há muitos miúdos que podem não ter com quem falar sobre isto. Há muitos miúdos que nem sequer têm pais e vivem em instituições. Para mim, a escola tem um papel essencial de educação dos futuros cidadãos e cidadãs deste país, inclusive nestas matérias. A velha máxima de que ‘informação é poder’ não podia estar mais correta e a chave para a mudança das sociedades está na educação. Acredito piamente que o investimento na educação é o que pode mudar o mundo.
Acredita que as novas gerações estão mais educadas/informadas e são capazes de gerar uma mudança de atitude em relação a este tema?
Eu acredito sempre que as coisas vão melhorar e acho que as novas gerações podem ter um papel fundamental nisso. Mas como em tudo há resistências e há um perpetuar de situação. Quando olhamos para os números da violência no namoro, como os que saíram no mês passado, temos de ter essa consciência: os jovens continuam a perpetuar determinados comportamentos. Este é um indicador assustador de como estamos longe de ter esta situação resolvida. A próxima geração que aí vem não está de todo esclarecida e com outro mindset. Até porque têm exemplos diários, até nas dinâmicas relacionais que têm dentro das suas próprias casas, e de tudo aquilo que os rodeia: a publicidade, os filmes, os videoclipes, as músicas, os conteúdos que se partilham no Youtube. Os miúdos continuam a ser bombardeados por todos estes estereótipos e por uma normalização destas várias formas de violência e de objetificação e sexualização das mulheres.
Por outro lado, começa-me a parecer - daquilo que vou vendo nas redes sociais, em conferências em que participo e em conversas nas plataformas como o Clubhouse - que há uma franja de gente mais nova, principalmente jovens mulheres, que estão poderosíssimas a questionar tudo isto. Mas acredito que para elas isto seja cansativo porque depois têm de questionar os próprios pais. E não nos podemos esquecer que é ingénuo acharmos que as crianças e os adolescentes têm bons exemplos em casa.
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