O novo olhar é a recuperação de forma natural das linhas de água afetadas pelos grandes incêndios de 2017 e 2018, usando técnicas antigas, produtos locais, aproveitando árvores queimadas e ramos secos para fazer diques e consolidar margens.
O concelho de Pedrógão Grande foi o primeiro a ser afetado nos incêndios de 2017 e foi nele, nas ribeiras de Frades e de Pera, que se iniciaram as intervenções de regularização fluvial, financiadas pelo Fundo Ambiental, que hoje já atingem 950 quilómetros de linhas de água de 67 concelhos, num investimento superior a 16 milhões de euros.
Em Pedrógão o projeto começou em novembro de 2018 e terminou em junho, explica Margarida Guedes, vice-presidente da Câmara, que o considera “absolutamente importante” já que envolveu todas as ribeiras do concelho, que “estavam em péssimo estado”.
“Sem esta intervenção do Ministério do Ambiente, do Fundo Ambiental, não teríamos conseguido fazer o que fizemos, porque são montantes elevados, de mais de meio milhão de euros”, diz a autarca à Lusa junto do açude do Gravito, na ribeira de Pera, lembrando também o envolvimento nos projetos de todo o concelho, desde escolas a associações e proprietários.
Ao todo foram 69 pontos de intervenção de engenharia natural nas quatro ribeiras do concelho, em zonas mais debilitadas (34,5 quilómetros), removendo sedimentos, recuperando margens, consolidando-as, trazendo espécies autóctones de volta, tudo de forma natural, sem máquinas e sem betão. “Conseguimos recuperar a grande maioria dos pontos importantes”, diz Margarida Guedes.
Foi assim junto da aldeia da Maranhoa, não muito longe da aldeia de Escalos Fundeiros. Sofia Carmo, técnica superior de ambiente na autarquia, fala do trabalho apoiado pela empresa Engenho e Rio e pela Universidade do Porto, além do especialista em reabilitação natural de rios Pedro Teiga.
O trabalho, resume à Lusa, consiste em usar técnicas de engenharia natural para fazer podas de formação de novas árvores, limpar os leitos, estabilizar, reabilitar. E agora os técnicos da autarquia também já aprenderam a fazer faxinas, entrançados, micro-açudes, estacarias para conservar a vegetação à volta dos cursos de água.
E recuperou-se a biodiversidade da fauna e flora. Sofia Carmo fala com entusiasmo. Há animais que voltaram às ribeiras de Pera, de Nodel, de Frades, da Bouçã. “Isto são nichos ecológicos e as linhas de água são extremamente importantes neste concelho. Eu diria mesmo que são as maiores riquezas do concelho de Pedrógão”.
A especialista salienta que as técnicas de engenharia natural foram usadas pela primeira vez no concelho, que serviram de laboratório para outras intervenções em outros pontos do país. E que agora as águas estão mais limpas, “a qualidade sempre a subir”.
Na ribeira de Frades há uma grade viva para segurar o solo, fizeram-se açudes para permitir a oxigenação da água, plantaram-se salgueiros, fizeram-se “bio-rolos” de fibras de coco e fio de sisal para consolidar margens, tudo de forma manual, aproveitando árvores queimadas, troncos vivos de onde estão a brotar novas árvores.
Os troncos e os entrançados de material lenhoso além de segurarem as margens também impedem que com as chuvas se depositem terras e cinza no leito das ribeiras.
E agora que o trabalho acabou, depois de ter envolvido mais de 300 pessoas, incluindo a comunidade escolar, correm livres e limpas as águas das ribeiras de Frades e de Pera, há hortênsias floridas junto dos troncos das árvores, veem-se as flores da “erva do betadine”, planta da família das papoilas cuja seiva tem propriedades antisséticas e cicatrizantes, entre salgueiros e sabugueiros.
“A engenharia natural é este processo de simplificar processos complexos para utilizar a linguagem da natureza, com muitas vantagens, como em termos ecológicos, proporcionando habitat para as várias espécies que existem nestes contextos, não só os peixes, os insetos, os mamíferos… e proporciona também baixo custo de aplicação, são muito mais baratas do que as convencionais para estabilizar as margens de um rio e são mais resilientes no tempo, proporcionando uma manutenção de todo este sistema”. Pedro Teiga, pés quase dentro de água junto do açude do Gravito, está tão entusiasmado como Sofia Carmo.
Doutor em Engenharia do Ambiente, professor, especialista em reabilitação de rios, Pedro Teiga é consultor, a “alma” da reabilitação natural que está em curso por concelhos afetados pelos incêndios.
Enquanto levanta pedras do leito da ribeira para mostrar como a vida voltou (seres vivos minúsculos que trata pelo nome científico) Pedro Teiga lembra à Lusa que foi ali um dos primeiros lugares onde se aplicou a técnica nos sete municípios afetados pelos chamados incêndios de Pedrógão.
“É exatamente aqui que se testam e se aplicam em simultâneo estas metodologias de valorização”, com o envolvimento da comunidade, em conjunto com as questões hidráulicas, “de valorização dos rios em termos de açudes, sistemas de praias fluviais, sistemas associados às problemáticas das infraestruturas hidráulicas, e a valorização dos ecossistemas ribeirinhos”.
Os projetos foram desenvolvidos pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto e estão dezenas deles em curso. Porque depois dos incêndios de junho de 2017 em Pedrógão aconteceram outros em outubro do mesmo ano, e já no ano passado outro grande incêndio em Monchique. Em Pedrógão os trabalhos estão quase todos finalizados, mas Pedro Teiga está a acompanhar projetos em 21 municípios só na região centro, sempre de recuperação de rios e ribeiras afetados por incêndios.
Além da limpeza, da contenção e estabilização de margens há um trabalho de contenção de espécies exóticas, como as acácias, e de corte de eucaliptos plantados ilegalmente junto das linhas de água.
Pedro Teiga salienta a metodologia inovadora, que nunca tinha sido aplicada associada aos incêndios nem numa extensão tão grande. Conta que "foi validada em Pedrógão”, e diz que estão envolvidas “milhares de pessoas”, e mais de três dezenas de empresas, “com várias equipas e frentes de trabalho”.
E simplifica a ideia de engenharia natural, diz que são técnicas “dos antigos”, de reaproveitar e reutilizar o material, utilizando “uma economia circular perfeita”. O entrançado de ramos para suster as terras ao longo das margens não é mais que a técnica antiga da cestaria. E uma pilha de compostagem é um amontoado de resíduos que serve de refúgio ao Lagarto de Água e à Salamandra Lusitânica, e segura as cinzas para que não cheguem às linhas de água.
Mas, acrescenta, “estas metodologias são baseadas em conhecimento e artigos científicos”.
Na margem da ribeira de Pera, o som das águas a cair do açude do Gravito rodeado de fetos reais, Pedro Teiga diz que o melhor de tudo é que a natureza vai absorver todas as técnicas e que dentro de três anos muitas das intervenções já não se notam sequer.
E os troncos derrubados pelos incêndios que guardam as margens da ribeira vão voltar a ser árvores.
Na ribeira de Frades junto da aldeia da Maranhoa os primeiros ramos de um salgueiro já despontaram.
Comentários