Quando era criança, o meu Natal tinha, ainda, muita fantasia primitiva, isto é, pouca manipulação mercantilista. A forma como se passava a mensagem sobre o Natal, pelo menos para nós, crianças, era absolutamente pintada de magia. Havia o Pai Natal, havia os presentes para quem os merecia, havia o saco de carvão para quem tinha deixado um rasto de mau comportamento ao longo do ano. Ah! O saco de carvão era fatal como o destino. Por isso, sempre que nos lembrávamos de cometer uma asneira, sabíamos que isso inflacionaria o preço a pagar sobre o saco de carvão. Ninguém o queria merecer. Ora essa! … era a humilhação máxima da condição pueril. Havia a lareira, o jantar que reunia tios, primos, primos dos primos, vizinhos. E o frio terrível que atravessava todas as frinchas e media forças com a lareira que ardia a todo o vapor dentro daquela sala. Depois vinha a hora de dormir, que maçada que era interromper aquela excitação familiar!

Contudo, aquela era a hora em que o sono permitia a descida pela chaminé do senhor de vermelho. Sabíamos que, sem o sono, ele não arriscaria descer e colocar no sopé do pinheiro lá de casa todas as caixas de presentes prometidos. Íamos contrariados, mas ansiosos para que os nossos olhos cedessem ao cansaço e acordássemos de rompante no dia seguinte. Quase sempre, no limbo, entre o João Pestana e a efusiva vontade de escutar qualquer barulho que acusasse a presença Dele lá em casa, tentávamos combater o sono, imaginando como seria a sua chegada, vestido naquele fato vermelho sangue, com o saco sem fundo onde vinham as nossas recompensas. Imaginei muitas vezes aquele corpo enorme, de barbas largas, a ficar preso no túnel da chaminé. Mas entre estas deambulações, o sono vencia-nos e ainda bem!

Aquele amanhecer era, talvez, o único dia no ano inteiro em que nós éramos os primeiros a levantar e a chegar à sala. Sempre na dúvida cruel se lá estaria o saco de carvão ou o nosso desejo maior - o presente!

Nunca encontrei um saco de carvão, graças a Deus. Isso era bem representativo da minha performance ao longo do ano. Era sim, senhor! O que sei é que assim que abríamos a porta da sala, lá estavam os sacos, cada um mais colorido que o outro. Tocávamos-lhe sempre com uma enorme ansiedade, porque, apesar de termos feito os nossos pedidos e termos reivindicado os nossos desejos, sabíamos que o Pai Natal poderia ter outros planos e o brinquedo oferecido ser outro, porque o Pai Natal também tinha motivos. E isso não era razão de desilusão. Aceitávamos a oferenda, mesmo que outra fosse, diferente do que imaginávamos. O importante era que estava lá uma caixinha e era nossa. Abríamo-las com humildade, não fazíamos comparações com as outras caixas por lá semeadas, partilhávamos o que recebíamos, brincávamos como se, naquele momento, fossemos as crianças mais ricas do planeta.

Tenho saudades desses Natais. De fazer e desfazer um pinheiro verdadeiro. De sujar as mãos no musgo dos muros de pedra e arrancá-lo até casa. De distribuir os bonecos de barro pelo presépio e ouvir a mesma história dos meus avós todos os anos enquanto enfeitávamos este jardim de fé. Da música … ah! … a música de fundo que impedia o silêncio lá em casa. Todas as melodias natalícias a impregnar as paredes. O Natal vivia-se ausente de comércio e cheio de histórias e afetos.

Hoje, o Natal é cada vez mais na rua, nas lojas, na troca de coisas por sensações. No dinheiro. Os portugueses, o ano passado, gastaram 3712 milhões de euros em compras entre 23 de novembro e 27 de dezembro. Esse total mostra que nunca se gastou tanto dinheiro em compras de Natal desde o ano de 2000 (primeiro ano em que há registos).

Quase todo nós tendemos a desvirtualizar o Natal … porquê? Será que ao perdermos a fantasia do senhor barbudo, perdemos o ritual que a alimentava? Ou será que o valor das coisas se sobrepôs ao valor dos afetos?

Que o Natal continue a ser quando o homem quiser e que todas as nossas crianças possam imaginar o seu presente como a derradeira forma de que os sonhos são verdadeiros e possíveis de resgatar quando no coração mora a mais pura forma de SER.