O que é a canábis e quais os seus efeitos?

A Cannabis Sativa é uma planta de origem asiática, pertencente à família das Cannabaceae, que possui mais de 500 compostos químicos e que se caracteriza pela presença de várias substâncias ativas, os canabinóides, que se ligam a recetores específicos (CB1 e CB2) no cérebro, na medula espinal, em algumas glândulas endócrinas, em células do sistema imunitário, no coração, em partes dos aparelhos digestivo, respiratório, urinário e reprodutivo, etc. Os principais canabinóides são:

- O delta-9-tetra-hidrocanabinol (THC), que tem um potente efeito psicotrópico (provoca euforia, tendência para riso inapropriado, alterações do estado de consciência - como se se estivesse a sonhar, com as ideias desligadas umas das outras -, alterações da perceção do tempo, do espaço, das cores e dos sons, sensação de calma, relaxamento e bem estar, aumento do desejo sexual, perturbação da concentração mental, dificuldade em executar tarefas mentais complexas, diminuição da coordenação motora fina, da visão em profundidade e do tempo de reação, e por vezes ansiedade, reações de pânico, paranoias e estados psicóticos), a par de alguns efeitos físicos (secura da boca, aumento do apetite, congestão das conjuntivas, aumento da frequência cardíaca).

Estes efeitos agudos podem facilitar os acidentes de viação, de trabalho e desportivos e levar à prática de atos sexuais não protegidos. Em geral, o seu uso crónico não provoca muita dependência, mas podem surgir sintomas de abstinência, como insónias, irritabilidade, humor deprimido, raiva, agressividade, inquietação, falta de apetite e perda de peso. A longo prazo pode provocar perturbações da memória e da aprendizagem, irritabilidade, adinamia, falta de capacidade de decisão e levar a situações de isolamento social, de disfunção escolar e laboral e de incapacidade para cumprir obrigações familiares, mas numa escala muito inferior à provocada pelas drogas “duras”, como a heroína, a cocaína ou as anfetaminas.

- O canabidiol (CBD), que é o principal agente não psicotrópico e o de maior interesse para o uso medicinal desta planta, produz efeitos tão diversos como a redução da dor, do vómito e da pressão ocular, o relaxamento dos músculos dos brônquios, uma ação anti-inflamatória e antiepilética, entre outas. Para além disto, o CBD é ansiolítico e neuro-protetor e contraria a taquicardia e os efeitos psicotrópicos do THC, reduzindo a sua ação psicoativa.

Diferentes tipos de plantas, usos diferentes

É precisamente o equilíbrio (ou o desequilíbrio) entre estes dois componentes que faz com que as plantas de cannabis sejam diferentes umas das outras e que muitas sejam produzidas e utilizadas para efeitos recreativos (psicotrópicos), outras para fins medicinais e algumas para uso industrial.

Existem basicamente dois tipos de plantas de cannabis (a C. Sativa e a C. Indica) e vários tipos de plantas híbridas, com teores de THC que podem ir de 1 a 2 % até aos 30 %.

As variedades de C. Sativa são geralmente altas (podem atingir 4 metros de altura), cultivam-se no exterior e são pobres em THC e ricas em fibras (a variedade Sativa L., vulgarmente conhecida por cânhamo industrial, serve para a produção de fibras para a indústria e não tem efeitos psicoativos), enquanto as variedades de C. Indica são geralmente pequenas, cultivam-se no interior e são ricas em THC. Tem-se verificado que as espécies híbridas têm vindo ao longo dos anos a aumentar o seu teor de THC, o que significa que são desenvolvidas para usos recreativos cada vez mais “pesados”.

Para dar resposta ao recente aumento da utilização medicinal da canábis (que é legal em vários países ou em vários estados de alguns países), ao alargamento das suas indicações terapêuticas e ao número crescente de doentes tratados, tem-se seguido duas estratégias diferentes para a obtenção de plantas para tratamento: ou se autoriza os doentes a cultivar as suas próprias plantas em casa (utilizando variedades com quantidades equilibradas de THC e de CBD) e se permite o seu uso pessoal (fumado, ingerido, em infusões ou vaporizado, conforme as indicações médicas), ou se recorre ao cultivo industrial de plantas para venda a pessoas com receita médica e para fornecer a indústria farmacêutica com matéria-prima para a produção de medicamentos com doses bem definidas (comprimidos, produtos para inalação…), sujeitos a controle de qualidade e distribuídos através dos circuitos legais.

As indicações terapêuticas da canábis

Conjugando e equilibrando os efeitos psicotrópicos e físicos dos diferentes canabinóides presentes nas plantas de Cannabis (THC, CBD, tetra-hidrocanabivarina, canadibivarina e canabigerol), de canabinóides produzidos sinteticamente e de outras substâncias não canabinóides presentes nas plantas de Cannabis, como os terpenóides, consegue-se obter benefícios nas seguintes situações:

  • Dor: enxaquecas e outras formas de cefaleias, dores menstruais, dores pós operatórias, dores da artrite reumatoide, dores neuropáticas, dores oncológicas (ação analgésica, podendo combinar-se a canábis com medicamentos opiáceos)
  • Processos inflamatórios (ação anti-inflamatória, podendo reduzir a necessidade de administrar outros anti-inflamatórios esteroides e não esteroides)
  • Náuseas e vómitos, especialmente em doentes oncológicos tratados com quimioterapia, mas também após radioterapia (ação antiemética com doses altas de THC, que podem ser reduzidas se se associar a canábis com outros medicamentos antieméticos)
  • Soluços persistentes
  • Esclerose múltipla (controle de espasmos musculares, da rigidez e da dor)
  • Lesões traumáticas da medula espinal (melhora a espasticidade, a dor, os tremores, a ataxia, as parestesias e o controle do funcionamento da bexiga)
  • Glaucoma e descolamento da retina (redução da pressão ocular até 50%)
  • Anorexia e caquexia associados às doenças oncológicas, à SIDA e à doença pulmonar obstrutiva crónica (aumenta o apetite)
  • Asma e bronquite asmática (ação broncodilatadora, devendo preferir-se as formulações de toma oral e evitar-se o uso da canábis fumada, para não irritar as vias aéreas e agravar as queixas respiratórias)
  • Perturbações ansiosas, como a perturbação de pânico, o estresse pós traumático e a perturbação obsessivo-compulsiva (efeito ansiolítico e calmante, embora em algumas pessoas o uso de canábis possa agravar a ansiedade)
  • Transtorno de défice de atenção e hiperatividade
  • Depressão (melhora o humor)
  • Doença bipolar (melhora a fase da mania)
  • Doença de Alzheimer (melhoria do apetite, do peso, das alterações do comportamento e da agitação)
  • Falta de libido (aumenta o desejo sexual)
  • Insónia
  • Prurido (alivia a comichão, podendo usar-se a canábis nas formas habituais ou em forma de pomada)
  • Síndrome de Tourette (reduz os tiques, em grau variável)
  • Disquinésias (reduz os movimentos anormais do corpo)
  • Epilepsia (pode reduzir as crises epiléticas e potenciar a ação de outros medicamentos anti convulsivantes, mas em algumas pessoas o uso de canábis pode desencadear crises convulsivas)
  • Desintoxicação da dependência de benzodiazepinas, álcool e opiáceos (reduz os sintomas da abstinência física e psicológica)

O futuro da canábis

Os exemplos apresentados são aqueles em que é mais evidente e consistente o benefício do uso medicinal da canábis, embora haja muitas outras situações em que foram descritos bons resultados terapêuticos. Como muitas destas situações foram pontuais, não reproduzidas e não comprovadas, fica-se sempre na dúvida sobre a verdadeira eficácia da canábis (muitos resultados obtidos podem ser o resultado do chamado “efeito placebo” ou dependerem de outro tratamento feito simultaneamente).

Está ainda por percorrer um longo caminho até que se clarifique todo o complexo mecanismo de ação dos inúmeros componentes químicos da canábis, se comprove a sua eficácia terapêutica, se perceba que doentes respondem melhor ao tratamento, se definam as doses corretas de cada canabinóide, se estudem as melhores formas de administração e se esclareçam todos os seus efeitos secundários. Uma coisa é certa: não há nenhum medicamento que sirva para tudo, nem que seja totalmente isento de efeitos secundários!

Falta ainda vencer muitas resistências ao pleno desenvolvimento da canábis como medicamento. Serão necessários muitos estudos científicos até que se cumpram os requisitos da “Medicina Baseada na Evidência” e a canábis seja aceite por todos como uma opção terapêutica válida, mas para já, o que se sabe é promissor.

A canábis é muito mais do que uma droga ilícita e seria pena que se desperdiçasse todo o potencial terapêutico que ela apresenta apenas por preconceito, tal como já sucedeu com o ópio, a morfina e tantos outros medicamentos.

Um artigo do médico Viriato Horta, especialista de Medicina Geral e Familiar na Clínica Europa – Carcavelos.