Até há duas décadas, a investigação médica centrava-se no sexo masculino e as conclusões apuradas pelos cientistas redundavam numa (aparente) certeza: o que era descoberto sobre os homens seria extensível ao sexo feminino.
«Um dos maiores erros do pensamento médico», escreve Marianne J. Legato, cardiologista e o nome que mais se destaca quando falamos em Medicina de Género, a ciência que estuda «como os processos fisiológicos humanos normais e a experiência de doenças variam em função do sexo biológico».
O trabalho desenvolvido pela autora de «Porque morrem os homens primeiro» sublinha que o sucesso das estratégias de prevenção e tratamento de doenças assim como o prolongamento da nossa longevidade passam pelo domínio dos porquês das diferenças entre os sexos.
Surpreenda-se com as descobertas desta especialista, já a seguir.
Tinha três anos quando soube que queria ser médica. Quando é que percebeu que iria dedicar a sua carreira à Medicina de Género?
Em 1990, fui convidada pela American Heart Association para escrever um livro sobre mulheres e doença arterial coronária.
Escrevi-o com Carol Coleman, ganhámos um prémio e demonstrámos que a experiência do sexo feminino ao nível das doenças cardiovasculares é diferente da dos homens, assim como as mulheres não estavam a ser correctamente diagnosticadas, nem a ser tratadas de forma tão agressiva em relação a estas patologias, embora matem mais do que todos os cancros combinados. Desde aí, tenho-me concentrado em definir o impacto da biologia na experiência da doença e ao nível das funções normais.
Que diferenças detectou, nessa altura, a nível cardiovascular?
Os sintomas e a forma como a doença «funciona» no sexo feminino são diferentes. Por exemplo, no ataque cardíaco, grande parte das mulheres refere sentir dores, não no peito, mas no estômago, costas, náuseas, falta de ar e suores profusos, o que não acontece no caso dos homens.
No sexo feminino verifica-se também aquilo a que chamamos angina microvascular que acontece, não devido a uma doença, mas a uma anormalidade na forma como os pequenos vasos do coração reagem.
Tentámos igualizar a agressividade com que as doenças coronárias eram tratadas, porque as mulheres não estavam a receber medicação ou intervenções com a mesma rapidez do que os homens. Isso ainda acontece, embora de forma menos acentuada.
Hoje, defende que os tratamentos devem ser adaptados tendo em conta o sexo do paciente, que todos os médicos deviam ser «versados em Medicina de Género», que este campo «não é uma sub-especialidade da Medicina Interna».
Sim, a Medicina de Género deve atravessar todas as disciplinas da Medicina e todos os médicos deviam ter uma cópia do livro Principles of Gender Specific Medicine, cuja segunda edição acabámos de publicar e que aborda matérias como cérebro, coração, tracto digestivo, ossos, desenvolvimento relacionado com a idade.
Todos os médicos devem estar familiarizados com as diferenças entre homens e mulheres, no que toca aos diversos sistemas do corpo.
Pode dar-nos um exemplo?
A reacção de cada um dos sexos a certos medicamentos é bastante diferente. As mulheres, devido a uma diferença ao nível das enzimas do fígado e às suas hormonas, metabolizam uma série de fármacos de forma distinta.
Por exemplo, antes da menstruação, o dilatin (anticonvulsionante) é metabolizado muito mais depressa do que em outras fases do ciclo. As mulheres podem ter crises antes da mentruação e, se tiver noção desse facto, o médico pode aumentar a dose de dilatin nos seus pacientes epilépticos do sexo feminino para que não tenham essas crises (epilepsia catemenial).
Os médicos, em geral, estão conscientes das diferenças entre os géneros, quando fazem diagnósticos ou prescrevem tratamentos?
Não. Mas é algo que se está a difundir. Realizámos quatro congressos internacionais e há agora líderes no universo da Medicina de Género espalhados pelo mundo. Nas últimas duas décadas, surgiram pessoas que não só se interessam pelo tema como estão a desenvolver investigação em torno dele.
É um assunto que, enquanto pacientes, devíamos abordar com o médico?
Sim. A pessoa pode perguntar-lhe «está consciente da minha reacção a este medicamento em função do facto de eu ser mulher (ou homem)? Os meus sintomas ou o desenvolvimento desta doença são influenciados pelo facto de eu ser mulher (ou homem)?». Claro que a resposta será «não», mas pelo menos o assunto foi abordado.
Acredito que a opinião pública pode conduzir ao financiamento e à pesquisa. Se estiver convencida de que homens e mulheres são suficientemente diferentes ao ponto de os seus médicos deverem ter em consideração o seu género, quando tomam uma decisão relativamente ao seu tratamento, a ciência avançará de forma mais célere.
Que áreas de investigação destaca no campo da Medicina de Género?
Para além do campo cardiovascular, destaca-se a pesquisa em torno do cérebro. No meu livro Why men never remember and women never forget, abordo as diferenças ao nível da estrutura do cérebro, funcionamento e química cerebral que explicam o porquê das dificuldades que ambos os sexos têm para encontrar um «território» comum em que possam discutir temas.
As diferenças comportamentais entre homens e mulheres são determinadas também pela nossa biologia?
Sem dúvida. É uma combinação de biologia, hormonas e do impacto do ambiente, da educação e da socialização.
Estamos geneticamente programados para agir de forma diferente?
Não somos reféns do nosso «equipamento» genético. Podemos desenvolver forças, aprender e modificar as nossas capacidades e até desenvolver novas capacidades de forma a lidar com as nossas vulnerabilidades. E esse é o ponto central da vida humana.
No universo da Medicina de Género existem estudos em torno da homossexualidade e da transexualidade?
Esse tema está sub-explorado. No nosso livro, há uma secção sobre identidade do género, mas há muito pouca investigação. Existe muita sensibilidade em torno do tema e relutância em explorá-lo. As pessoas receiam tornar-se alvo de reacções negativas. Já quis escrever sobre o assunto, mas encontrei alguma resistência por parte dos meus editores e conselheiros que consideram que é muito delicado.
Que relações já se estabeleceram entre a Medicina de Género e a investigação genética?
Demonstrou-se que, em milhares de casos, o mesmo gene é expresso de forma diferente no cérebro, gordura, músculo e coração, caso se trate de uma mulher ou de um homem. Excluir o estudo da Medicina de Género do campo da genética é, portanto, um erro.
No livro «Porque morrem os homens primeiro», refere que há geneticistas que equacionam a hipótese de, no futuro, a raça humana ter apenas um sexo. Acredita nessa possibilidade?
Há um grupo de cientistas que acredita que o cromossoma Y, que determina a masculinidade, se está a deteriorar e a tornar-se mais pequeno e que, eventualmente, dentro de 125 mil anos não irá existir. Não acredito.
Penso que os homens estão para ficar, graças a Deus, e penso que partes do cromossoma Y são muito resilientes.
O cromossoma Y pode reparar-se a si mesmo, quando se verificam erros durante o processo de replicação celular.
A pesquisa tem demonstrado, tal como refere no seu livro, que «desde a concepção os homens têm menos probabilidade de sobreviver do que as mulheres»…
A vida do feto masculino é muito mais difícil do que a do feto feminino. Os rapazes têm um sistema imunitário menos competente e são alvo de mais infecções no útero. As mães podem, em alguns casos, ser alérgicas aos seus bebés do sexo masculino e desenvolver inflamações na placenta.
Dois terços dos fetos que não desenvolvem os pulmões de forma adequada são do sexo masculino.
O desenvolvimento inadequado no segundo trimestre da gravidez é um factor importante para a ruptura prematura das membranas e parto prematuro.
E os bebés do sexo feminino?
As raparigas têm um nível mais elevado de hormonas do sistema simpático do que o rapazes, o que as ajuda no momento do parto, altura em que precisam de ter um ritmo cardíaco mais elevado. Isto protege o seu cérebro de danos.
Os rapazes, infelizmente, não conseguem desenvolver esses ritmos cardíacos rápidos e isso pode contribuir para a preponderância do desenvolvimento de problemas neurológicos.
O que explica a surpreendente fragilidade masculina?
Por um lado, nós, enquanto cultura e sociedade, pedimos-lhes que executem os trabalhos mais perigosos e eles fazem-no de boa vontade. Mas, por outro lado, encorajamo-los a não se queixarem e a persistirem.
Há pouco tempo, um jornalista polaco perguntava-me «se encorajarmos os homens a pedir ajuda, não estaremos a correr o risco de os tornar menos masculinos?» Na verdade, quando «masculinizamos» os rapazes, ensinamo-los a esconder os seus sintomas e a nunca pedir ajuda.
A área do cérebro associada à avaliação das consequências dos actos é menos desenvolvida nos rapazes do que nas raparigas, mas já pensou com que idade recrutamos soldados? 18 anos. Isto leva-nos a reflectir sobre a forma como exploramos esta imprudência dos jovens para defender fronteiras.
Em Israel, alguém me dizia «se pedir a um jovem que invada uma fortaleza, ele irá perguntar «quando»; se o fizer a um homem de 30 anos ele perguntará «como?» e se colocar a mesma questão a um homem de 40 anos ele dirá «porquê?».
Defende que a depressão masculina é muito mais comum do que se supõe. Que sinais a denunciam?
Os homens tendem a escondê-lo, tornam-se mais solitários, viciados em substâncias como o álcool, jogo, levam uma vida sexual esregrada, tornam-se mais violentos, irritáveis.
Como podem as mulheres ajudar os seus parceiros a terem uma vida mais longa e saudável?
Para além de os aconselharem a ler o meu livro, devem explicar que é importante fazer exames físicos regulares, a partir dos 30 anos, assim como falar sobre as dores e mal-estar que sentem, pelo menos com o seu médico e colaborar com ele.
Olhando para o sexo feminino, que factor destaca como ameaça à sua longevidade?
A violência. Em muitas culturas, os homens ainda encaram as mulheres como algo que lhes pertence. Podem ser exploradas e até mortas. Isto acontece nas sociedades do terceiro mundo, mas também assistimos a casos na nossa sociedade.
Nas áreas mais pobres, morrem muito mais jovens devido ao negligenciar da sua saúde, à violência da sua comunidade e à má nutrição. A idade média de doença cardíaca de uma mulher em Harlem, em Nova Iorque, é 36 anos.
Morrem mais frequentemente devido a hipertensão, diabetes e até cancro da mama. A educação, prevenção, programas de nutrição e de exercício poderão ajudar muito, mas também a violência é um terrível inimigo.
Devemos proteger as mulheres da percepção de que são objectos e não seres humanos.
O que aconselha aos nossos leitores para que se possam defender das doenças cardiovasculares?
Qualquer pessoa, quando deixa de ser seguida por um pediatra, deve ser acompanhada por um bom médico de clínica geral, fazer um exame físico completo anualmente ou, no máximo, de dois em dois anos, para averiguar se existem factores de risco, como pressão arterial elevada, diabetes, elevados níveis de stress, obesidade, sedentarismo, tabagismo, excesso de álcool.
Deve tentar modificar o seu estilo de vida e colaborar com o seu médico para prevenir a doença. Existem medicamentos poderosos para controlar situações como os níveis elevados de colesterol que devem ser usados para prevenir a doença coronária.
Qual poderá ser o limite da nossa longevidade?
Estamos a desenvolver dispositivos médicos, a aprender a colocar sondas no cérebro que ajudem a controlar patologias como a Doença de Parkinson.
Estamos a criar robots que podem vir a ajudar o homem nas suas limitações e a prolongar a sua vida, de uma forma que não imaginávamos. Penso que podemos vir a viver, no final do século, até os 200 anos.
Há, entretanto, uma mensagem que é importante passar: as mulheres não devem sentir vergonha em dizer a sua idade. Elas são hoje muito mais fortes, competentes e saudáveis do que eram os seus antepassados.
Texto: Nazaré Tocha
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