O cancro pode mesmo derrubar sonhos e impossibilitar projetos comuns. Mas também pode ajudar a unir famílias e a ensinar a lidar com o sofrimento.
Ana Maltez, jornalista, escreveu o livro «Para ti, Campeão», publicado pela Chiado Editora em 2012, em jeito de homenagem ao namorado Rafael Duarte, obrigado a lutar contra a tal doença de que ninguém quer sequer ouvir falar.
Um livro que ajuda outros casais, pessoas ou famílias que estejam a passar por esta dura prova. Um cancro no cérebro, detetado em 2002, antes de começar a namorar, acompanhou a relação de quase sete anos de Ana Maltez e Rafael Duarte, quase sempre de forma tranquila. Mas, como em muitas outras histórias de amor, há sempre um mas. «Tudo mudou no momento em que o médico me disse que ele tinha dois anos de vida, na melhor das hipóteses», começa por explicar a jornalista.
A partir daqui, o futuro desta relação passou a ter um prazo de validade. Antes de o neurocirurgião falar com Ana Maltez, sempre presente nas consultas, nos tratamentos e em todas as imposições que a doença ditava ao namorado, o casal vivia confiante de que, juntos, iriam vencer a doença. «Vivíamos na esperança de que o nosso amor, de tão forte, iria superar todas as adversidades. De facto, quando vivemos na ilusão é tudo mais fácil e suportável», desabafa.
Ana Maltez e Rafael Duarte tentavam levar uma vida normal dentro das condicionantes da doença. No entanto, a partir do momento em que o diagnóstico foi feito e que ditava apenas dois anos de vida ao Rafael, na melhor das hipóteses, a jornalista recusou-se a acreditar. «Entre dezembro de 2010 e julho de 2011, corri imenso para tentar arranjar maneira de o curar», salienta.
Leu imensa informação, falou com pessoas, procurou novos dados um pouco por todo o lado. «Foram meses de grande desespero e tal sentimento aumentava à medida que a busca de informação me levava sempre ao mesmo ponto, ao zero. Quando em julho do ano passado [2011], o Rafael tem uma nova recidiva e o médico aponta para três meses de vida, aí nem sei dizer o que senti. Passam-nos mil coisas pela cabeça», sublinha.
Viver um dia de cada vez
Apesar de toda a realidade, Ana Maltez tentava sempre obter um sorriso
de Rafael Duarte. E assim ganhava os dias. «Pensei muitas vezes no que
teria ele feito se soubesse quanto tempo de vida tinha. Agora,
sinceramente, pouco me detenho nisso, sobretudo porque não me arrependo
de nada.
Ele viveu feliz até ao fim, mesmo nos piores, nos mais
dolorosos momentos da doença. E isso tranquiliza-me. Saber que fiz tudo o
que podia fazer tranquiliza-me», afirma Ana Maltez.
A autora de «Para Ti, Campeão» nunca contou ao namorado Rafael quanto
tempo lhe restava de vida. Não queria que ele se entregasse à doença e
preferiu omitir uma informação que só lhe traria mais ansiedade e dor.
Por isso, os planos continuavam como se a doença não existisse, para
perturbar a felicidade. Porque foram sempre muito felizes mesmo entre
consultas, cirurgias, tratamentos e tudo o que esta doença implica.
Durante esse período, Ana Maltez nunca esqueceu a doença. Nem tinha
como. Mas de vez em quando arranjava formas de a fintar.
«Não dá para esquecer. Desde logo, porque ela impõe várias limitações.
Aconteceu combinarmos férias e cancelarmos por causa das recidivas. Mas,
entre 2005 e 2010, estava tudo a correr tão bem que dava para sairmos,
para passearmos, para namorarmos sem o peso constante do tumor. O cancro
deu-nos ali um período de tréguas, como costumo dizer. Ainda assim, é
impossível esquecer que está lá», confessa.
Entre 2010 e 2011, os tempos foram bem mais complicados de gerir. «Aí a
nossa vida ficou mesmo muito condicionada. Mas conseguimos obviamente
dar a volta. Em vez de irmos ao cinema, víamos filmes em casa. E todos
os dias víamos uma série na televisão, episódios de 15, 20 minutos que
não deixavam o Rafael tão cansado. Tudo se faz. É este o papel do amor
na nossa história», explica, determinada, Ana Maltez.
O princípio do fim
A 14 de outubro de 2011, a notícia inesperada chegou. O cancro venceu.
Depois de mais um internamento em que esteve em coma no serviço de
medicina/neurologia do Instituto Português de Oncologia de Lisboa (IPO),
Ana Maltez teve de enfrentar a perda e, como confessa, caiu-lhe
completamente o chão.
No próprio dia do funeral, começou a escrever,
como forma de catarse. Relatos de acontecimentos que se iam passando
enquanto Rafael Duarte esteve inconsciente.
Ao fazê-lo, partilhava com ele tudo o que não lhe pôde dizer de outra
forma. Porque não teve tempo. Do diário para o namorado ao lançamento do
livro em sua homenagem aconteceu tudo muito rápido e sem qualquer
planeamento. «Comecei a escrever para o Rafael. E só para o Rafael. O
livro não nasceu como livro mas antes como uma espécie de diário»,
sublinha.
«Aqueles primeiros dias em que realmente percebo que já não vou estar
com ele fisicamente, que já não o vou ver, que já não o vou poder
abraçar como dantes, que já não vou poder contar-lhe o meu dia e ouvir o
dele, deixaram-me totalmente desorientada. E comecei a escrever porque
me sentia bem. Era a minha forma de comunicar com o Rafael, de lhe
contar muita coisa que tive de guardar comigo», justifica.
«Ele faz-me falta em todos os passos que dou. O livro acaba também por
ser uma forma de preencher um bocadinho esse vazio», desabafa Ana
Maltez. Mesmo as pessoas que conhecem bem a autora do livro «Para ti, Campeão» ficaram admiradas com a coragem de colocar no papel esta
história. «Pensei muito, pedi várias opiniões, mas eu já tinha a minha
bem formada. Sempre achei que iria fazer uma bonita homenagem ao Rafael e
que, ao mesmo tempo, iria conseguir ajudar outros doentes e famílias
neste luta tão desigual. Foi precisamente isto que me fez avançar»,
salienta
Campeão em toda a linha
Desde o lançamento do livro, a 7 de janeiro de 2012, Ana Maltez tem
recebido muitas mensagens e testemunhos de pessoas que estão a passar
por situações semelhantes ou que vivenciaram a luta contra a doença de
algum familiar ou amigo e que se revêem no seu livro.
Para Ana Maltez,
Rafael Duarte é um campeão «por toda a força e coragem que sempre teve». «Nunca se queixou, mesmo quando tinha todos os motivos
para se queixar. Isso é impressionante. Só um verdadeiro campeão luta
como ele lutou, sem baixar os braços».
«Claro que também tinha os seus momentos mais difíceis, como é normal.
Claro que, de vez em quando, o notava mais triste. Mas isso era raro
nele», assegura. Nos últimos dias de vida, no IPO, Rafael Duarte
agarrava a mão de Ana Maltez com tanta força que ainda hoje parece que a
jornalista a sente. «Na última noite, despedi-me dele como sempre, com
um até amanhã, campeão. O Rafael é um exemplo para mim e para a minha
vida e quero que o seja para outros doentes oncológicos», reforça.
O livro tem sido um sucesso. Uma semana depois do lançamento, «Para ti, Campeão» entrava na segunda edição. «Há pessoas que me dizem que, depois
de ler o livro, passaram a encarar a vida e a perda de outra maneira. O
livro é a minha história de amor com o Rafael. É uma história que
apresenta o amor como terapia. Da experiência que tenho de IPO, sei que
as pessoas se esquecem de aproveitar os pequenos miminhos, os pequenos
gestos, o que é natural, porque estão completamente focadas nas
consultas e nos tratamentos», explica Ana Maltez.
O casal arranjava formas de tornar as caminhadas até ao IPO, para uma
consulta ou para um tratamento, menos cansativas e penosas. «Quando
íamos de metro, saíamos sempre mais longe para irmos a pé, fosse para
apanhar sol, fosse para apanhar o friozinho das manhãs secas de inverno.
Quando chegávamos ao IPO, líamos revistas, conversávamos... Só nos
direcionávamos para a consulta quando nos chamavam», recorda.
«É importante que as pessoas percebam a importância das conversas, do
sol, do canto dos passarinhos, das flores que crescem na primavera ou
das folhas amarelas que o outono traz, coisas ridículas aos olhos de
quem nunca viveu o cancro. É neste sentido que eu acho que o livro pode
ajudar. Porque conta a nossa história. E a nossa história, num ponto ou
noutro, é a história de muitos casais, de muitas famílias», acrescenta
Ana Maltez.
Livro solidário
O livro escrito por Ana Maltez tem o preço de 12 € e tem como grande
objetivo abordar o papel do amor na luta contra o cancro.
O valor dos
direitos de autor reverte para o serviço de medicina/neurologia do IPO
de Lisboa.
«Era isso que o Rafael faria. Aquele departamento é muito
acolhedor graças ao carinho da equipa de C8 e isto é importante
referir», sublinha a jornalista.
«Há quem passe muito tempo ali. Nós passámos muitos dias naquele piso.
Quando receber os direitos de autor do livro, falarei com os enfermeiros
para que possamos decidir, em conjunto com os responsáveis do serviço, o
destino desse dinheiro. No fundo, vamos tentar perceber na altura o que
faz mais falta aos doentes que lá estarão internados», justifica.
Ao adquirir este livro, estará não só a conhecer um enorme testemunho de
amor e de luta contra o cancro mas também a contribuir para uma enorme
causa. Se tiver curiosidade em conhecer melhor esta história, pode
também aceder à página da obra no Facebook.
Texto: Cláudia Pinto
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