A caminho do fim da 2ª fase de confinamento são cada vez mais as vozes que se fazem ouvir a dizer - "Quando é que voltamos à normalidade?" Enquanto outros preferem perguntar - "Quando é que voltamos ao novo normal?" E outros mais conservadores continuam a dizer como dantes - "Quando é que voltamos ao antigamente?".

Seja como for, ao fim de setenta e um dias de confinamento, estado de emergência e agora de calamidade, muitos procuram recuperar a sua vida. Mas nem todos! Parece-lhe estranho?

As pessoas com Perturbação do Espectro do Autismo (PEA) podem dizer que este não é o seu primeiro confinamento. Nem o primeiro estado de emergência ou calamidade. Ao longo do desenvolvimento passam por inúmeras situações, muitas delas traumáticas. Seja durante o período escolar as múltiplas situações de bullying. Depois na adolescência a enorme dificuldade em se integrarem num grupo de pares.

Mas na vida adulta, desde o processo de transição, integração sócio-profissional, autonomia e independência, vida a dois, relações sociais e intimas e falta de apoios em todas estas situações, as dificuldades não param de crescer. Num grupo já de si com uma maior necessidade de apoio. E se eles não desejam voltar a certa normalidade, devemos escuta-los.

Primeiro, são muitos os adultos que continuam a não ter o seu diagnóstico de PEA ou então têm-no tardiamente. Isto faz com que vejam adiado a possibilidade de um acompanhamento adequado. Sabendo que a prevalência do autismo nos adultos ronda 1 em cada 100 pessoas (Brugha et al., 2011).

Podemos antever que em Portugal serão muitos aqueles que se enquadram no grupo de pessoas ainda não diagnosticadas. Muitos adultos com esta condição ou que suspeitam de a ter e já procuraram inúmeros serviços de saúde depararam-se com um número grande de profissionais de saúde com aparente falta de competência para avaliar e/ou acompanhar estas situações.

E no caso das mulheres esta situação ainda parece mais acentuada, devido à expressão qualitativa diferente que estas demonstram relativamente ao homens autistas. Já para não falar do número de perturbações psiquiátricas que co-ocorrem no Espectro do Autismo.

Segundo, o processo de transição para a vida adulta parece continuar a ser feita num grande número de vezes tardiamente. Quando o jovem autista já com 18 anos de idade procura entrar na Universidade sente existir uma falta de continuação dos apoios que lhe eram possibilitados até então, apesar de haver cada vez mais Universidades a adoptar medidas educativas à semelhança do que era feito até então.

O deficit de comunicação que é atribuído a este grupo parece também existir entre o Ensino Secundário e Superior. E aqueles que continuam pela via do Ensino profissional parece que em muitas das vezes o plano e a preparação do projecto de vida não é feito de forma consertada e com a participação do próprio.

Terceiro, a integração sócio-profissional neste grupo especifico continua a ser diminuta. Os números conhecidos das pessoas com PEA que estão empregadas a tempo inteiro e a ser remuneradas é inferior a 40%. Uma etapa fundamental na vida de todos os adultos, sejam pela questão da realização pessoal e social mas também pela procura e obtenção da sua autonomia passa necessariamente pela entrada no mercado de trabalho.

Apesar da legislação existente, por exemplo, emprego protegido e a implementação de cotas para pessoas com um grau de incapacidade igual ou superior a 60%. Além de parecer não ser suficiente, leva a que muitas pessoas no Espectro do Autismo estejam de fora deste critérios, isto apesar das suas dificuldades se manterem.

As pessoas adultas com PEA continuam a manifestar desejo em realizarem todo um conjunto de etapas próprias desta fase. Sejam aquelas enumeradas anteriormente, mas também as que dizem respeito às relações de uma forma geral e às intimas de uma forma particular.

Trabalhar os aspetos da sexualidade ao longo do desenvolvimento neste grupo é fundamental. E ainda continuam a haver muitos tabus e restrições que não deviam existir. E a preparação feita ao nível do treino de competências sociais já realizado desde há muito precisa de contemplar estes tópicos e outros mais relacionados com aspectos do quotidiano das pessoas adultas.

Uma outra questão é a manifesta vontade em alguns deles em constituir família e a procurarem uma maior autonomia face aos seus pais.

Após um período de cerca de setenta dias em que viram as suas rotinas abruptamente alteradas, aqueles que estavam habituado a sair viram as mesmas restringidas. Ou a utilização obrigatória de máscara para muitos com hipersensibilidades.

Para além de muitos verem algumas das suas terapias interrompidas, não fosse a intervenção à distância por videoconferência a ajuda-los. Voltar à normalidade vai implicar rever todas estas situações porque muitos de nós passámos e também estes adultos do Espectro do Autismo, e redesenhar um projecto mais inclusivo e com respeito pela neurodiversidade.

Pedro Rodrigues - Psicólogo clínico no Núcleo das Perturbações do Espectro do Autismo e da Consulta do Adulto |