Os tempos que hoje vivemos em Portugal oferecem às novas gerações de pessoas com hemofilia oportunidades que outras gerações não tiveram. Falo de gerações como, por exemplo, as da década de 60 ou de 70, (a minha), quando o acesso aos tratamentos era praticamente inexistente. Os sonhos das gerações anteriores são agora realidade para estas novas gerações. Tirar proveito dessas oportunidades é uma responsabilidade que cada indivíduo com hemofilia nascido nos finais da década de 90 ou mesmo já neste século, à sua maneira, deverá reconhecer.
Há tratamentos disponíveis, e outros a chegar, mas, sem adesão à terapêutica, esta pode não ajudar e corre-se o risco de desperdiçar todos ou alguns dos benefícios que oferece. Os jovens que hoje não adiram ao seu regime terapêutico não têm vantagem em relação às pessoas de outras gerações que cresceram sem acesso aos tratamentos actuais. É quase como se eles não existissem realmente. É quase como viver no século passado.
A profilaxia é a infusão regular de factores de coagulação, para manter os mesmos em níveis que previnam as hemorragias. Em muitos países europeus já se faz tratamento profiláctico há mais de 50 anos. Em Portugal é uma coisa mais recente. Este regime terapêutico é consensualmente considerado pela comunidade médica como sendo o tratamento óptimo para a hemofilia. Razões para tal incluem uma menor frequência, ou mesmo a desejada ausência, de episódios hemorrágicos, a redução da dor, a prevenção de futuros danos articulares, a participação total na vida activa (lazer, escola, trabalho, etc.), a estabilidade (fazer planos e concretizá-los), a autonomia e a independência da pessoa com hemofilia, uma maior auto-estima e uma melhor Qualidade de Vida.
A profilaxia é um regime proactivo e preventivo que exige um certo nível de disciplina e de autoconhecimento. O termos nascido com hemofilia não nos atribui automaticamente as ferramentas necessárias para saber viver com hemofilia. Temos de aprender. Seja porque a doença se manifesta de forma diferente em diferentes alturas, ou porque impacto dela nas nossas vidas varia consoante a idade, ou porque a medicina vai avançando, as coisas estão sempre a mudar e essa mudança é a única constante na hemofilia. Por isso, a nossa aprendizagem também tem de ser constante.
Não estamos sozinhos nesse processo. Progredimos de uma relação médico-doente, que no passado era tendencialmente assimétrica, para uma relação mais cooperativa, em pé de igualdade. Só assim pode haver um diálogo franco entre médicos e doentes que resulte numa troca de conhecimentos e capacidades, e numa partilha de decisões e responsabilidades. Não faz sentido pensarmos em regimes terapêuticos se estes não forem vistos através da perspectiva da autonomia do doente.
A profilaxia promove essa autonomia. Trata-se de uma terapêutica adaptada a cada indivíduo, personalizada. Tem de passar por um estudo farmacocinético que dê ao médico uma imagem real de como o tratamento age em cada doente, desde o momento em que é administrado até ao momento em que desaparece do organismo. Dessa forma é possível determinar a dose e a frequência de administrações para que os factores de coagulação em circulação sejam sempre mantidos num nível que ofereça uma protecção continuada contra as hemorragias.
Outro parâmetro a ter em conta é o das exigências do estilo de vida de cada pessoa com hemofilia. Exigências que vão mudando com a idade, pelo que o regime terapêutico tem de ser flexível e sempre decidido entre o médico e o doente. Uma boa adesão à terapia personalizada permitirá que a pessoa com hemofilia possa viver sem episódios hemorrágicos e possa fruir de uma vida normal.
O doente tem de fazer a sua parte. Tem de aprender a administrar os produtos. Até aqui, esta administração tem sido por via intravenosa, mas já começam a chegar produtos de aplicação subcutânea. O ideal será aprender a fazer a administração o quanto antes, ainda em criança, para que se possa desde logo desenvolver a autodisciplina, fundamental ao longo da vida para o sucesso do tratamento.
É também necessário compreender os benefícios, a curto, médio e longo prazo (algo que não é fácil, por exemplo, na adolescência), e identificar a relação causa/efeito; se não há episódios hemorrágicos é porque estamos a seguir o regime terapêutico à letra. Neste caso, não haver hemorragia não é sinal de que podemos deixar de seguir a terapêutica. É sinal de que a terapêutica está a funcionar e que só funciona porque a seguimos. Não esperamos que a hemorragia aconteça. Evitamos que aconteça. Isto é ter uma postura positiva quanto à necessidade da terapêutica. Fazer a terapêutica não é uma restrição na nossa vida. É uma forma de ultrapassar restrições. É uma prática directa, com objectivos claros.
É boa ideia integrar a autoadministração da terapêutica numa rotina, que deve incluir o registo com data e hora de cada administração, e também ser capaz de identificar momentos em que a mesma possa ser alterada para suprir necessidades específicas: se vamos praticar desporto, ou se vamos em viagem, por exemplo. O doente tem de ser capacitado para tomar estas decisões por si, e associar os bons momentos vividos graças à adesão à terapêutica.
A Associação Portuguesa de Hemofilia e de outras Coagulopatias Congénitas, com o apoio da Shire, lançou este ano a campanha #HemorragiasZero com o objetivo de sensibilizar as pessoas com hemofilia para o facto de que hoje já é possível a uma pessoa com hemofilia, de qualquer idade, alcançar o objectivo das zero hemorragias. Mas cabe principalmente às gerações mais novas aproveitar a oportunidade de se tirar partido desta realidade para poderem alcançar os seus sonhos, sem limites ou constrangimentos.
Um artigo de Nuno Lopes, membro da direção da Associação Portuguesa de Hemofilia e de outras Coagulopatias Congénitas.
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