Hoje em dia, são muitos os hospitais e centros de tratamento de cancro que têm, numa das suas paredes, um sino de latão. Tocar nele simboliza o momento em que as crianças terminam os seus tratamentos e podem, finalmente, começar a viver as suas vidas.
Estes sinos assinalam um marco enorme para as crianças e para as suas famílias, e fornecem inspiração para outros pacientes, sejam eles pequenos ou graúdos.
Quando, aos 5 anos, fui diagnosticada com cancro, os sinos da esperança ainda não existiam.
Mas hoje, muitos anos depois de ter recebido alta hospitalar, sei que vencer esta doença não é tão simples quanto o toque daquele sino faz parecer. Porque hoje, com 23 anos, eu ainda estou a viver com o legado do meu cancro, um legado que sei que será vitalício.
Quase 20 anos depois, ainda sinto o impacto, físico e mental, que aquela doença teve em mim.
O início de uma dura batalha
Eu era uma criança feliz. Vivia com os meus pais e com o meu irmão mais velho numa casa em Hornchurch, nos Reino Unido, quando fui diagnosticada com leucemia linfoblástica aguda, o tipo de cancro mais comum em crianças.
As lembranças que tenho desse tempo são imprecisas e incompletas.
Não me lembro de me terem dito que tinha cancro, mas lembro-me de os meus pais me dizerem que, a partir daquele momento, teria que ir ao hospital com muita frequência para que os médicos tivessem a certeza que eu estava boa.
Eu não sabia que os ossos das minhas pernas não se iriam desenvolver de forma adequada por causa do tempo que eu passei deitada na cama; ninguém me avisou que a minha batalha contra o cancro implicaria grandes reviravoltas na minha vida escolar ou que os meus dentes ficariam estragados para sempre.
Estas são algumas das marcas que o cancro deixou, para sempre, no meu corpo. Todos os dias, estas marcas servem como um lembrete indesejado do meu trauma de infância, um lembrete de que a minha vida será sempre um bocadinho mais difícil do que a vida de todas as pessoas que não tiveram que lutar contra um cancro.
Os meus pais não gostam que fale da minha doença. O horror de reviver que a sua filha mais nova poderia ter morrido é algo que eles ainda não estão preparados para fazer. E, na verdade, quem os pode culpar?
Tratamentos, sobrevivência e reação
O meu corpo pode já não estar a lutar contra um cancro, mas ainda existem muitas batalhas que ele tem de travar.
Estar internada durante meses a fio, a maior parte do tempo prostrada na cama, fez com o que crescimento das minhas pernas ficasse atrofiado. Atualmente, sofro de dores nas articulações, tenho os músculos doridos e não consigo andar por mais de 40 minutos sem que os meus joelhos enrijeçam.
A quimioterapia também impediu que as minhas células saudáveis se dividissem, o que significa que elas não se desenvolveram tão rapidamente quanto deveriam.
Eu vivo diariamente sabendo que, enquanto sobrevivente de cancro, tenho um risco significativamente maior de desenvolver osteoporose mais tarde na vida. E depois ainda há a questão do estado do meu sistema imunitário, que eu apelido de “miserável”. Devido aos tratamentos e antibióticos que recebi quando era criança, o meu sistema imunitário ficou comprometido, o que me torna o alvo ideal de tosses, constipações e gripes.
A quimioterapia também reduziu o desenvolvimento dos meus glóbulos vermelhos, o que retardou a libertação de células na minha corrente sanguínea; ainda hoje, o meu número de células sanguíneas permanece abaixo da média, o que me coloca em maior risco de desenvolver coágulos sanguíneos.
Regularmente sou sujeita a exames às pernas para ver se existe algum tipo de bloqueio nas minhas artérias.
Foi por todas estas coisas que decidi que tinha de cuidar da minha saúde. O cancro que tive na infância não me podia roubar a vida adulta. A partir daí comecei a frequentar um ginásio 3 vezes por semana e a comer de forma saudável. Estou a preparar o meu corpo para o caso de ele ter que voltar a lutar.
“E se eu tiver cancro outra vez?”
Mas se as repercussões físicas do cancro são tramadas, as repercussões mentais são ainda piores. Consegue imaginar o que é viver o resto da vida com a incerteza de que esta terrível doença pode regressar a qualquer momento?
A verdade é que, mesmo que os médicos “curem” o cancro, ele pode recidivar vários anos após o tratamento.
Isto faz com que muitos especialistas oncológicos defendam a não utilização de termos como “cura” ou “sem cancro”, preferindo, em vez disso, o “estar em remissão”. Mas a remissão pode ser parcial, o que significa que algumas células cancerígenas podem permanecer no corpo, mesmo que quantidades reduzidas.
Quando me disseram que eu estava “em remissão” faltava um dia para fazer 9 anos. Na altura não sabia, mas hoje sei que “em remissão” não significa “curada do cancro para sempre”.
Há apenas algumas semanas atrás, notei um caroço no meu corpo e, de imediato, uma onda de ansiedade tomou conta do meu corpo.
“Oh não, e se eu tiver cancro outra vez”, foi a primeira coisa que me veio à cabeça. Depois lembrei-me que, quando era criança, as sessões de quimioterapia deixavam-me em pânico. Fiquei petrificada ao pensar que poderia ter que voltar a ser sujeita aquilo.
Crescer com cancro e ter de faltar à escola tornou-me numa pessoa introvertida e auto consciente.
Para todos os efeitos, perder o cabelo, adormecer durante as aulas e estar meses sem aparecer na escola não são propriamente uma receita infalível para se ser popular.
“A menina careca”
Perder o cabelo aos 5 anos, depois de 1 mês de quimioterapia, foi horrível.
Lembro-me de entrar nos balneários femininos da escola e uma menina dizer-me que eu estava na casa de banho errada. Fiquei perdida. Era uma criança, com um vestido e careca.
Sentia que algo estava errado dentro de mim. Sentia-me traumatizada. Sentia que não me encaixava em nenhum lugar.
Eu passava meses sem ir à escola, e quando voltava já toda a gente se tinha esquecido de mim. Já todos tinham o seu grupo de amigos, menos eu, a “menina careca”.
Foram várias as vezes que tive ataques de pânico. Os professores tentavam acalmar-me, mas não conseguiam, e a minha mãe tinha que me ir buscar. Ainda hoje vivo dentro da minha própria redoma. Não é fácil fazer amigos.
Estudos mostram que muitos sobreviventes de cancro infantil ficam com problemas de memória e de aprendizagem durante e após o tratamento; isto deve-se às altas doses de quimioterapia, ou radioterapia, que podem causar problemas de memória e concentração.
A baixa contagem sanguínea causada pela quimioterapia pode tornar até mesmo as tarefas mais simples em algo impossível. Estudos mostram que, especialmente em crianças até 5 anos, os problemas cognitivos de longo prazo ocorrem com frequência meses ou até anos após os tratamentos; mas a memória fraca é apenas a “ponta do iceberg”.
E falo por mim, a minha capacidade matemática é igual à de uma criança de 5 anos.
Mesmo tendo um tutor no hospital que serviu para preencher as minhas lacunas educativas, tentar recuperar o tempo perdido foi muito penoso. As minhas notas sempre foram baixas, nunca consegui acompanhar os meus colegas.
Com muito esforço, consegui entrar na Universidade e acabar o meu curso.
Um futuro bem longe do cancro
Raramente falo sobre a minha doença a alguém que acabei de conhecer. Não quero que as pessoas pensem que quero atenção. Tenho amigos de longa data que ainda hoje não sabem que sou uma sobrevivente.
Há dois anos comecei a namorar. Passaram-se meses e, só por acaso, o meu namorado descobriu a minha história. Foi num dia em que fomos visitar os meus pais e lá estavam, no meio dos móveis, fotografias minhas sem cabelo.
O meu namorado reagiu como eu imagina: foi gentil, sensível e compreensivo e isso deu-me força.
Até onde eu sei, o tratamento contra o cancro não afetou a minha fertilidade. Tive essa sorte, mas há milhões de sobreviventes de cancro infantil que não podem dizer o mesmo.
Mas, e apesar de não ter motivos para acreditar que terei problemas em ser mãe, já sei de antemão que, quando chegar a hora, irei ter o cancro na mente.
“E se os meus genes forem amaldiçoados? E se os meus filhos tiverem cancro por minha causa?” são algumas das perguntas que sei que vou fazer a mim própria, mesmo sabendo que vários estudos mostram que a probabilidade de a leucemia infantil ser herdada é extremamente rara.
O cancro roubou a minha infância, mas eu farei de tudo para que ele fique bem longe do meu futuro.
Fonte: PIPOP
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