Desde 2003, o projeto vem levando declamadores a restaurantes, cafés, fábricas, escolas e outros espaços públicos da cidade, mas esta é a primeira vez que se alarga ao centro de saúde local, disponibilizando aos médicos seis publicações diferentes que, replicando a aparência de uma prescrição médica oficial, recomendam ao utente a toma de versos da autoria de Adília Lopes, Almeida Garrett, Ana Paula Inácio, Carlos Tê, Onddjaki e Sidónio Muralha.
A posologia indica que se deve "ler o poema até ao fim para melhores resultados" e, consoante a receita se destine a contribuir "para melhor humor", "para começar bem o dia" ou "para combater a dor emocional", a recomendação é também de que o texto seja lido "em jejum", "antes das refeições" ou a intervalos de quatro, oito ou 12 horas.
As fotos das receitas
Bruno Costa é um dos enfermeiros que acompanha a distribuição dessas receitas poéticas e acredita que a experiência contribui "pelo menos para melhorar o ânimo" dos pacientes.
"Há um poeta colombiano, o Juan Manuel Roca, que diz que a poesia é a saúde da linguagem e nós efetivamente costumamos aconselhar livros e leituras aos nossos utentes. É muito bem pensado fazer isso também com a poesia, porque é o género literário de efeito mais imediato, que mais rapidamente desperta nas pessoas sensações, emoções e estados de alma", afirmou à Lusa.
O enfermeiro defende ainda que a iniciativa resulta em "motivação adicional para a própria equipa" do centro de saúde, já que essa área de atividade "é algo fechada em si própria e está muito afastada da cultura e das artes, pelo que esta intertextualidade entre um domínio e o outro é um fator positivo".
Carlos Condessa foi o declamador destacado para recitar poemas nas salas de espera e concorda que essa foi "uma grande ideia", porque, mesmo que ainda não suficientemente analisada em termos científicos, sempre permitirá que os utentes "se sintam mais acolhidos e mais bem-dispostos".
Para a sessão da manhã, o ‘diseur’ escolheu versos de Adília Lopes, Ondjaki e Fernando Pessoa, na consciência de que o efeito desses poemas nos doentes "depende imenso de caso para caso", pelo que o melhor "é usar de bom senso e empatia, e tentar acompanhar as pessoas no caminho que pensam imaginar e sentir através das palavras".
Um entretenimento útil
António Santiago foi um dos utentes que o ouviu enquanto esperava pela remoção dos pontos de uma cirurgia a um sinal suspeito e, embora assumindo-se mais dado a leituras de desporto por encarar as restantes como de maior interesse "para mulheres", considerou a experiência como uma forma de "entretenimento" útil.
Prefere apreciar poesia em espetáculos de sala "como os da Casa da Criatividade", mas reconhece que as receitas e declamações no centro de saúde servirão ao menos para divulgar o festival "por quem ainda não o conhece" e "para ver se os doentes ficam melhores".
Maria da Graça revela que, com ela, funcionou. À saída do consultório onde foi avaliar o que estaria a provocar-lhe uma súbita dor de ouvido, já exibia uma receita com versos de Ondjaki repetindo sempre a mesma cadência fonética inicial e confessava: "Eu adoro poesia e gostei muito [da surpresa]. A poesia sossega a nossa alma quando estamos doentes e, assim calminha, é sempre boa e ajuda um pouquinho".
Organizado pela Câmara Municipal de São João da Madeira, o programa da 17.ª edição do festival "Poesia à Mesa" propõe até ao dia 23 uma combinação de concertos e outros espetáculos em sala com concursos, exposições, uma feira do livro e declamações em diversos outros espaços da cidade.
Entre os cenários previstos incluem-se restaurantes, cafés e padarias, pelos quais serão distribuídos versos impressos em suportes como toalhetes de mesa, bases de chávenas, sacos de pão e aventais. A iniciativa envolve também escolas, fábricas, o mercado municipal e até os autocarros do serviço camarário de transportes urbanos, cujos circuitos pela cidade contarão com declamadores nos dias 19 e 21.
No centro de saúde local as receitas poéticas e declamações repetem-se esta tarde e também no dia 20.
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