Hoje atingi o meu limite. É a quinta vez, pelas minhas contas, que piso os dentes de um ancinho e o cabo me acerta em cheio na cabeça. Chega. É a quinta vez que apresento queixa do ancinho no posto mais próximo aos acontecimentos. Desta vez estou decidido a levar o caso até às últimas instâncias, porque acredito na lei e numa justiça que me protege. Toda a gente sabe que não é vida para ninguém traumatizar todos os dias a testa com um instrumento de jardinagem. Passo a vida com a cabeça húmida do bolor do cabo, sujeito a apanhar testa de atleta. Disse para mim que só descansava quando visse aquele rastelo sentado no banco dos réus. Havia de perder a relva que lhe restava presa aos dentes.

O juíz com o poder de exercer a actividade jurisdicional foi Neto de Moura. Disse-me que o tribunal não tinha dúvida nenhuma de que os factos tinham mesmo ocorrido. Senti o conforto e a justiça de quem, à distância, confia no meu galo. Ficou decidido que o ancinho teria de usar uma pulseira electrónica, considerando a primeira instância que os factos dispensavam o consentimento do objecto agressor, como exige a lei. O problema é que Neto de Moura não pensou o mesmo. Disse que estaria dependente do consentimento do arguido e da vítima e não se vislumbra que tal acontecimento tenha sido obtido, talvez porque o ancinho é maioritariamente feito de pau. O pau vai ter sempre a vantagem de, toda a vida, ser um pau. Neto de Moura vai ter sempre a desvantagem de ser uma pessoa com um coração de lenho e, todos sabemos que estar a meio gás nas coisas nunca o deixará ser bom em nada. Não será nem uma boa pessoa, nem um bom pau e sairá, obviamente, a perder.

Num caso com a seriedade que o meu não tem, Neto de Moura disse que "a mais banal discussão ou desavença entre marido / companheiro/ namorado e mulher/ companheira/ namorada é logo considerada violência doméstica e o suposto agressor (geralmente, o marido ou companheiro) é diabolizado e nenhum crédito pode ser-lhe reconhecido". Isto, trocado por miúdos, quer dizer que, para um Homem de Neandertal, Neto de Moura está muito bem conservado e conseguiu a proeza de electrificar a caverna e chegar a juíz com figuras rupestres. E isso tem mérito. Teve ainda a coragem e a ousadia de dizer que "este caso de maus tratos está longe de ser dos mais graves que surgem nos tribunais", como se a vida se fizesse por comparação. Vai mais longe na imundice quando diz que "tirando os factos por que foi julgado, apresenta-se como um cidadão fiel ao direito". Uma vez mais, e trocando novamente por miúdos, o que Neto de Moura quer dizer é que, tirando a parte de o agressor querer matar a mulher, é um tipo porreiro para se contar um segredo ou beber um copo, mesmo que a seguir tenhamos um tímpano furado com a projecção do cálice. Para este juíz, ameaças de morte com uma catana são certamente provas de amor para o casal ir junto ceifar erva (como se de um gadanho se tratasse), para dar de comer ao gado. Ameaças de morte com um objecto semelhante a uma arma de fogo soarão a um convite para o casal ir junto à feira popular rebentar balões e ganhar um peluche.

Por coincidência, este foi o mesmo juíz que foi admoestado pelo Conselho Superior da Magistratura e que, num dos casos, citou a Bíblia para desculpar um agressor num caso de adultério. À luz dos seus argumentos, certamente o caso em questão estava longe de ser dos mais graves que surgem na Bíblia.

A vida pode deixar-nos receosos e até apreensivos. Mas o Estado tenta tranquilizar-nos na morte. Não é à toa que a segurança social pagou 3,7 milhões de euros em pensões a pessoas que já faleceram, para terem uma eternidade desafogada e não pensarem nos problemas da vida, porque essa já passou. É quase como se quisessem compensar um erro cometido que jamais poderá ser desfeito.

Sei que o meu problema está longe de ser dos mais graves que surgem na jardinagem. Mas o de tanta gente não. É que, sem querer, pode soar que vivemos num país que nos privilegia a morte que não foi capaz de impedir em vida.