Mais de 260 mil pessoas estão numa lista de espera para uma cirurgia.

Esta informação é da Sra. Ministra da Saúde, que acrescenta que destas pessoas doentes, mais de 74 mil já deveriam ter recebido os cuidados de que necessitam, pois, “os tempos máximos de resposta garantida” já foram ultrapassados. Ou seja: a garantia de receber os cuidados de saúde de que necessita, antes que o problema se agrave ou a situação se torne insuportável, não é garantia nenhuma!

Pagaram o que lhes foi exigido, mas nem mesmo em perigo de vida recebem o que lhes é devido.

O Estado, os governantes, as instituições e os profissionais de saúde não cumprem as suas obrigações mais elementares para com os cidadãos e colocam-se, claramente, acima da lei, da ética e da moral pois declaram-se inimputáveis! Em atroz sofrimento, angustiadas e impotentes, as pessoas sentem a sua saúde deteriorar-se, muitas vezes de forma irreversível e fatal. Dezenas ou centenas de milhares de cidadãos são impedidos de trabalhar durante longos períodos e de viver uma vida saudável. Toda a sociedade sofre prejuízos emocionalmente, aterradores, economicamente incalculáveis. É inconcebível que uma sociedade democrática, há já duas gerações, se deixe espezinhar desta forma pelas elites políticas e profissionais que conceberam e gerem o atual sistema de prestação de serviços de saúde.

Um jovem, com pouco mais de trinta anos, que vive com a sua família entre Viana e Ponte de Lima, tem dores horríveis num pé, porque tem um dedo a mais, que está cada vez maior. Há meses que não pode andar e não sai de casa. A intervenção necessária é relativamente simples, mas há uma lista de espera de cerca de dois anos! Ingenuidade a minha. Esta lista de espera não é para a intervenção, mas para a primeira consulta de especialidade!

Não há coincidências! Patologias raras e graves, o que não é aqui o caso, continuam a ser relativamente comuns em famílias, nas aldeias do Norte, onde a utilização de pesticidas é ainda hoje, uma prática comum para salvar as colheitas, a vinha e as pequenas hortas familiares. 

Este assunto, não é assunto nos serviços de saúde locais, públicos ou privados. A informação nas embalagens dos pesticidas e as formações dos formadores, são, desde longa data, manifestamente insuficientes, e claramente do desagrado dos utilizadores e dos formandos.

Ignoram as pessoas, como se a sua existência fosse irrelevante

Maria (nome fictício) é uma das últimas lavradeiras da região. Quando jovem, era extremamente bonita. Hoje, com cinquenta e poucos anos, está totalmente esgotada. Como muitas outras famílias, Maria tem em casa um filho, hoje adulto, com uma terrível, e rara malformação congénita que já a levou, em tremenda angústia, dezenas de vezes ao hospital. Maria tem uma família e uma casa, modesta, e trabalha todos os dias para fora, geralmente no campo. É um trabalho físico, extremadamente exigente e pesado, ao sol e ao frio, que, muitas vezes, requer grande experiência e imensos conhecimentos. A precaridade é total, o rendimento é mínimo. Maria não se queixa. Fala quase de forma lacónica, sem azedume, resignada.

Como muitas outras pessoas que ela conhece, Maria tem por vezes períodos em que se sente triste e sem forças, cansada. Dorme pouco e mal, anda preocupada e não lhe apetece comer. Sente-se mal, cada vez com menos forças e por vezes tem dores, mas continua com a sua vida.  Até que um dia decide ir ao médico. Durante meses, três, quatro, cinco ou mais meses recorre aos serviços de saúde públicos e privados sem que alguém lhe explique alguma coisa, ou lhe diga o que tem. Todos os clínicos a mandam fazer análises e TAC’s, e lhe passam uma receita. Mas não há melhoras. Maria fez dezenas de análises e comprou dezenas de medicamentos, que não ajudaram. O pior é que alguns lhe fizeram mal. Quando se queixa, os médicos mudam os medicamentos, sem explicações ou pedido de desculpa. Alguns sintomas desaparecem, outros, novos, aparecem, os principais mantêm-se. Os clínicos andam a experimentar, a fazer tentativas, sem saberem qual vai ser o resultado. Maria foi também ao psiquiatra que fez o mesmo que os outros clínicos, com o mesmo resultado. Ninguém prestou atenção a Maria ou falou com ela para tentar compreender as origens do seu sofrimento. Os clínicos focam-se nos sintomas, não na pessoa que está sentada em frente deles.

Ninguém se preocupa e acompanha estas pessoas que na sua demanda de ajuda se sentem abandonadas e mais doentes. Maria perdeu imenso tempo em consultas e exames, gastou centenas de euros em medicamentos e consultas privadas, perdeu dezenas de dias de trabalho. Nada que a admire, pois sabe que o mesmo acontece com muitas outras pessoas.

Não tratam as pessoas, arruínam-lhes a saúde, a bolsa e o prazer de viver. Ninguém assume responsabilidades, provavelmente, porque nem sequer sabem o que andam a fazer.

Os cidadãos não são ressarcidos pelos prejuízos que os serviços de saúde e os profissionais lhes causam, a eles e á sociedade.

Os serviços de saúde, públicos e privados, são um sistema repleto de problemas gravíssimos que provocam danos irreversíveis à saúde de centenas de milhares, a milhões de cidadãos. Arruínam a sociedade e a nossa autoestima.

Para resolverem a situação que criaram, os governantes recorrem hoje, mais uma vez, á metodologia da medicina convencional, institucional. Sem darem sinais de compreenderem o processo, atuam sobre os sintomas. Esgotam as energias e os meios de que a sociedade dispõe e não resolvem nada.

É necessário refazer o sistema dos cuidados de saúde, dando-lhe bases sólidas e comprovadamente eficientes. As decisões cabem aos governantes, mas a organização, a administração e a gestão de serviços de saúde, “não é coisa de políticos.” É também necessário reduzir o apelo que é feito aos cuidados de saúde, atuando, preventivamente, na sociedade, aumentando a qualidade humanista e democrática da sociedade (ninguém adoece por acaso). Finalmente, e ao mesmo tempo, a qualidade e a efetividade dos serviços prestados, necessitam de melhorias profundas. Não é aceitável que a medicina atual, institucional, continue a alinhar-se pelos sintomas, ou seja: a ignorar o utente, a ignorar relação entre a “doença”, a pessoa humana, a sua história e as suas condições de vida. A medicina é (também) uma ciência social e humanizante, quando a sua prática respeita e se interessa pelas pessoas e ultrapassa “as boas práticas”, minimalistas, de autodefesa dos profissionais. É indispensável inovar e desmedicalizar, é indispensável que os cidadãos possam escolher e, porque não, organizem os seus próprios cuidados de saúde.

Um artigo de opinião de Manuel Fernando Menezes e Cunha, especialista em Psicologia.