Healthnews (HN) – Como coordenadora do Departamento da Criança e do Adolescente, de que forma tem implementado a Medicina Narrativa na abordagem aos seus doentes mais jovens e quais os resultados que tem observado?

Margarida Lobo Antunes (MLA) – A Medicina Narrativa é uma abordagem que engloba a narrativa e as histórias dos doentes nos cuidados médicos. Quando o médico valoriza as histórias dos seus doentes, considerando as múltiplas experiências, sentimentos, contextos socioeconómicos e pessoais, consegue promover uma maior empatia e um atendimento mais humano e personalizado.

MLA – A prática médica não se pode dissociar da narrativa. Qualquer narrativa ou história necessita da interação entre duas pessoas, quem conta a história e quem ouve, bem como a disposição para ouvir e compreender. A medicina narrativa pretende fomentar essa interação e uma melhor comunicação que está na essência da relação médico-doente. As histórias dos doentes têm um valor riquíssimo. Averiguamos as queixas e os sintomas, mas com uma escuta ativa e cuidadosa, apuramos as preocupações, valores e sentimentos que são fundamentais para ver o doente com um ser humano complexo multidimensional. Um doente que percebe que está a ser ouvido e visto desta forma holística e personalizada, terá uma maior sensação de bem-estar, melhor adesão às recomendações e tratamentos propostos e uma participação mais ativa nas decisões relacionadas com a sua saúde.

Numa consulta de rotina, apesar da pressão do tempo, o ambiente é mais propício para ouvir histórias. A beleza de uma especialidade com a Medicina Geral e Familiar é que são médicos que têm um conhecimento privilegiado da família toda, das várias histórias, problemáticas e interações. Têm uma visão global, completa da pessoa doente e, quando existe, do seu meio familiar. O pediatra também é um “sortudo” porque pode acompanhar a vida de uma criança e da sua família desde o momento do nascimento até a entrada na vida adulta. Nas consultas ouvimos e observamos múltiplas coisas, como por exemplo, a dinâmica do casal que cuida da criança, as formas com os cuidadores lidam com o bebé e a postura entre os pais e o seu adolescente.

HN – Num contexto hospitalar marcado pela pressão do tempo e exigências burocráticas, que estratégias podem os profissionais de saúde adotar para integrar efetivamente a Medicina Narrativa na sua prática diária?

MLA – No dia-a-dia atribulado de um médico, com a pressão do tempo e as exigências burocráticas, ainda é possível ouvir com cuidado as histórias dos doentes e seus familiares. Se queremos aplicar a “Regra de Platina”, que significa tratar as pessoas como elas querem ser tratadas, como é que podemos saber isso num primeiro encontro? O psiquiatra Canadiano, Prof. Harvey Max Chochinov, no seu livro “Dignity in Care” responde a esta questão com aquilo que ele definiu de “Patient Dignity Question” – A Pergunta de Dignidade do Doente. A pergunta é simplesmente: o que preciso de saber sobre você/seu familiar como pessoa, para lhe prestar os melhores cuidados possíveis? Segundo Chochinov, o processo de pergunta-resposta demora cerca de 10-15 minutos e faz toda a diferença quando estamos a conhecer um doente pela primeira vez numa situação delicada, como por exemplo num internamento num serviço de urgência. Situações de urgência são sempre momentos de grande stress e ansiedade quer para o doente, quer para a sua família. Conseguir criar uma ligação de confiança será importante para que o processo seja mais tranquilo. Num cenário de consulta de ambulatório é tudo muito diferente.

HN – De que forma a escuta ativa das histórias dos doentes pode influenciar o processo de diagnóstico e contribuir para decisões terapêuticas mais personalizadas?

MLA – A aplicação da medicina narrativa na pediatria é também muito importante e tem nuances particulares. Num ambiente pediátrico é fundamental considerar o desenvolvimento cognitivo e emocional da criança, que naturalmente irá depender da sua faixa etária. Ouvir atentamente as histórias das crianças e dos seus cuidadores permite avaliar os sentimentos, inseguranças e medos. Nas crianças mais novas, até aos 6 anos, iremos ouvir maioritariamente os pais/cuidadores, enquanto nas crianças mais velhas e adolescentes, é essencial criar o espaço para que estas possam ter a possibilidade de se expressarem sem receio. Os adolescentes em particular, devem ter a oportunidade de estarem sozinhos com o pediatra para partilharem à vontade todas as questões relacionadas com o seu bem-estar físico e psíquico, sem risco de censura ou juízo critico.

HN – Como vê o equilíbrio necessário entre o avanço tecnológico da medicina moderna e a preservação da dimensão humana e narrativa na relação médico-paciente?

MLA – A medicina moderna tem beneficiado muito dos enormes avanços científicos e tecnológicos, com terapêuticas inovadoras e a ajuda preciosa da inteligência artificial e, neste momento, chegamos a questionar: qual será o papel do médico na medicina do futuro? Longe vai o tempo em que o médico era visto com uma certa reverência especial por ter o poder de curar e salvar vidas. Apesar das muitas críticas que possam surgir, os médicos continuam a ter um lugar privilegiado na maioria das sociedades, porque a sua “arte” reside em lidar diariamente com o sofrimento e a fragilidade da condição humana.

HN – Que abordagens ou ferramentas específicas da Medicina Narrativa têm-se revelado particularmente úteis no contexto pediátrico e como podem ser adaptadas para diferentes faixas etárias?

MLA – Nas consultas ouvindo as histórias, aprendemos muito sobre as famílias e as crianças/adolescentes e podemos escrever pequenas notas no processo clínico. Coisas tão simples como se têm uma alcunha que gostam de ser tratados, pratos preferidos, disciplinas que não gostam, passatempos de eleição e qual o seu clube de futebol. Tenho muitas notas no processo clínico que permitem que na consulta seguinte posso fazer perguntas do género, ainda fazes ginástica rítmica ou ainda tocas guitarra? O cérebro humano tem uma memória limitada, mas com essas pequenas anotações, quem está na minha consulta sente-se especial e tem a noção que me preocupo genuinamente com eles porque me dei ao trabalho de tomar nota de alguns temas. Essa notas não são textos literários, mas são pérolas simples que fortalecem a minha relação como pediatra.

Nas crianças mais novas podemos utilizar a arte, nomeadamente um desenho para contar uma história. Muitas vezes as técnicas do desenho ou das brincadeiras permitem que a criança conte a sua história, expressando emoções e perceções que podem ser difíceis de verbalizar. Por exemplo, pedir à criança para desenhar a sua família ou para desenhar como se está a sentir hoje. A disposição e o tamanho dos vários elementos, a escolha e utilização das cores e a introdução de outros elementos no desenho, podem servir como ponto de partida de uma conversa. Através de um simples desenho podemos compreender o como a criança se sente e o que a preocupa.

HN – As 3.ªs Jornadas de Medicina Narrativa abordam esta vertente como uma resposta aos desafios atuais da saúde. Na sua opinião, quais serão os principais desenvolvimentos e tendências neste campo nos próximos anos?

MLA – As 3ªs Jornadas de Medicina Narrativa, “Finding the Human Within Healthcare”, organizadas pela Lusíadas Knowlegde Center, vieram reforçar o papel da Medicina Narrativa e das Humanidades Médicas como ferramentas fundamentais para cuidados de saúde humanizados. A inclusão das Humanidades Médicas no currículo dos profissionais de saúde é indispensável para fornecer as ferramentas necessárias para praticar medicina num mundo cada vez mais complexo. Os futuros médicos devem-se esforçar para serem curiosos sobre tudo, o mundo que os rodeia, a ciência e, sobretudo, sobre as pessoas que querem tratar e também devem ser bem instruídos. Como disse o teórico pedagógico, RS Peters, “ser instruído não é ter chegado; é viajar com uma visão diferente”.

Com um programa rico, diverso e inovador, as 3ªs Jornadas de Medicina Narrativa permitiram momentos de aprendizagem, reflexão e comoção. Ouvimos relatos na primeira pessoa sobre o impacto da doença, do diagnóstico, do tratamento e da cura, o caminho que se fez e aquilo que foi mais marcante. Fomos relembrados que podemos apreender muito com a sabedoria antiga e as práticas de tribos indígenas das florestas. Os cuidados no fim de vida estiveram na ordem do dia e a extrema importância da compaixão, compaixão essa que se cria quando nos ligamos ao próximo e estamos disponíveis para ouvir a sua história de vida. Descobrimos que somos seres relacionais antes de ser seres racionais e que a criatividade faz parte de cada ser humano e que pode ser expressa de várias formas. O simples ato de ler uma história a uma criança internada pode trazer uma alegria sem fim. Aprendemos a importância da atmosfera, do belo e da arte no contexto dos museus, como forma de intervenção terapêutica. Não podemos esquecer a música, a utilidade na doença, como a de Parkinson, e, de uma forma mais simples, na perspetiva do ensino para cativar melhor as crianças.

HN – Como pode a formação médica ser reformulada para incorporar elementos da Medicina Narrativa desde o início, e qual o papel das instituições de saúde neste processo?

MLA – A Medicina Narrativa terá um lugar útil em Portugal na promoção da igualdade na saúde. Cada vez mais precisamos de ouvir e dar voz às histórias de populações historicamente marginalizadas, como por exemplo, imigrantes, refugiados e comunidades LGBTQIA+. Conhecimentos adquiridos pela prática da medicina narrativa permitem dar voz aqueles que nunca foram ouvidos e garantir que possam receber os melhores cuidados de saúde. É preciso ter em conta as barreiras linguísticas, culturais e religiosas no contexto clínico para oferecer cuidados de saúde centrados na pessoa e compreender as necessidades particulares de cada um.

A Saúde Mental, que tem sido uma área crescente na medicina, poderá beneficiar muito da Medicina Narrativa e das Humanidades Médicas. A utilização das histórias tem sido cada vez mais reconhecida no acompanhamento do luto, doenças crónicas e paliativos e algumas doenças mentais. Os doentes escrevem diários, textos, poemas ou partilham as narrativas através da arte com desenhos, pinturas e colagens. São múltiplas as formas criativas para expressarem a dor e as diversas emoções. A biblioterapia tem sido um movimento com impacto crescente em Portugal como exemplos extraordinários como “Livros além das grades” – o potencial transformador das bibliotecas prisionais.

HN – A integração das Humanidades na prática clínica é uma das suas bandeiras. Pode partilhar algum caso concreto em que a abordagem narrativa tenha transformado significativamente um processo de cura ou o bem-estar de um paciente?

MLA – A integração das Humanidades Médicas na prática médica é sem dúvida uma das minhas bandeiras. A recente criação da Sociedade Portuguesa de Humanidades Médicas, da qual sou sócia fundadora, pretende promover todas as formas de arte no contexto clínico para beneficiar quer os doentes, quer os profissionais de saúde. Albert Camus escreveu: “a verdadeira generosidade para com o futuro, reside em dar tudo ao presente”. Acredito que é preciso esse gesto de generosidade na prática clínica, no momento da consulta temos de fazer um esforço para esquecer os nossos problemas, as nossas preocupações, o nosso sofrimento, para estar totalmente disponíveis para ouvir atentamente as pessoas. Devemos ser eternamente curiosos e ter a humildade para reconhecer que nem sempre sabemos as respostas, mas estarmos dispostos para procurar e apreender. No meu caso, a leitura, a música e a arte são fiéis e constantes companheiros. Os livros são o meu refúgio, tomo notas e escrevo num caderno especial para futuras apresentações ou aulas. Nunca vou de férias sem uma pilha de livros porque fazem parte de mim. O escritor Matt Haig escreveu: “para viajar no tempo pode-se ler e para sentir o tempo pode-se escrever”. Talvez a escrita seja o próximo caminho.