
Healthnews (HN) – Como especialista em Medicina Interna e coordenador científico do Update em Medicina, qual considera ser o papel da formação contínua na prática clínica diária, especialmente no contexto das rápidas mudanças tecnológicas e científicas na medicina?
António Pedro Machado (APM) – A formação contínua é absolutamente essencial para quem está na linha da frente da prática clínica. A medicina não pára de evoluir — todos os dias surgem novas evidências, novas tecnologias, agora também a inteligência artificial que está a revolucionar a medicina e fala-se cada vez mais em medicina personalizada. Como médicos, temos uma responsabilidade clara, que é garantir que os nossos conhecimentos e competências estejam atualizados para podermos oferecer aos nossos doentes os melhores cuidados possíveis.
No contexto do Update em Medicina, este espírito torna-se ainda mais claro: criar um espaço onde possamos trocar experiências, discutir de forma crítica e, acima de tudo, atualizar-nos de forma prática — com foco real no que faz diferença na nossa prática clínica diária. É este compromisso com uma formação contínua, bem sustentada na evidência, que nos dá confiança para enfrentar os desafios crescentes da prática médica e continuar a fazer bem aquilo que nos trouxe até aqui: cuidar com qualidade.
HN – A multidisciplinaridade é cada vez mais valorizada na saúde moderna. Quais são os principais desafios que os médicos enfrentam ao trabalhar em equipas multidisciplinares e como a formação pode ajudar a superar essas barreiras?
APM – Sem dúvida, trabalhar em equipas multidisciplinares tem muitas vantagens, mas também tem muitos desafios. Um dos maiores desafios é mesmo a comunicação — cada área tem a sua linguagem, as suas prioridades, e nem sempre é fácil alinhar tudo isso numa abordagem centrada no doente. Além disso, há também questões como a sobreposição de funções, a falta de tempo para reuniões conjuntas, ou até diferentes formas de encarar o processo de decisão clínica.
É aqui que a formação multidisciplinar faz toda a diferença. Quando temos oportunidades para aprender em conjunto — médicos de diferentes especialidades, enfermeiros, farmacêuticos, psicólogos, nutricionistas, etc. — começamos a valorizar mais cada elemento da equipa e a perceber que não temos de fazer tudo sozinhos. Aprendemos a comunicar de forma mais clara, a confiar mais uns nos outros e a partilhar responsabilidades. No fundo, a formação ajuda-nos a passar de um grupo de profissionais a trabalhar no mesmo sítio para uma equipa de verdade.
HN – O Update em Medicina tem sido uma referência na formação médica em Portugal. De que forma este congresso e os cursos certificados pela DGERT têm contribuído para capacitar os médicos a enfrentar os desafios clínicos atuais, como a gestão de doenças crónicas e o uso de novas tecnologias?
APM – O Update em Medicina tem mesmo feito a diferença na formação médica em Portugal. Não é só mais um congresso — é um espaço onde falamos de medicina real, da que vivemos todos os dias, e isso nota-se nos temas que são escolhidos, nas pessoas que partilham experiências e na forma prática como tudo é apresentado.
Os cursos da Academia Update em Medicina, certificados pela DGERT são cursos pensados para colmatar aquelas falhas de formação prática que todos sentimos em certas áreas da Medicina. Não são cursos “só para o currículo” —
Quem faz um curso destes sabe que, no fim, sai preparado para “pôr mãos à obra”. Por exemplo, o Curso de Intervenção na Cessação Tabágica, que já vai na 5.ª edição, dá aos formandos tudo o que precisam para montar uma consulta intensiva de cessação tabágica. Outro exemplo é o do Curso de Urgências Médicas do Adulto que capacita qualquer médico para integrar uma urgência com confiança, em qualquer parte do país.
É graças a este foco na prática, na aplicabilidade imediata e na resposta a necessidades concretas, que faz com que os cursos Update sejam tão valorizados. No fundo, não é formação “só porque sim” — é formação que muda mesmo a forma como trabalhamos.
HN – Tendo dedicado grande parte da sua carreira à formação pós-graduada em áreas como Hipertensão Arterial, Diabetes e Risco Cardiovascular, quais são as lacunas mais significativas que ainda existem na formação médica nestes campos? Como podem ser abordadas?
APM – Apesar de já se ter avançado bastante na formação médica nestas áreas — hipertensão, diabetes, risco cardiovascular — ainda há lacunas importantes, sobretudo quando falamos da prática do dia-a-dia. Uma delas é a dificuldade em integrar todos os pilares do tratamento, para além da medicação. Muitas vezes, a parte da mudança de estilo de vida, da abordagem motivacional, ou até da articulação com outros profissionais, apesar de essencial, fica para segundo plano.
Outra grande falha é a atualização com base na evidência mais recente. O conhecimento nesta área evolui rapidamente — o aparecimento de novas classes terapêuticas, recomendações revistas, abordagens cada vez mais personalizadas — e nem sempre temos tempo, ou acesso, a formação prática sobre isso.
A melhor forma de colmatar estas lacunas é obviamente através da formação contínua, focada na nossa realidade clínica, feita por quem está no terreno e sabe o que é aplicável, idealmente, em formatos que permitam a discussão, a troca de experiências e até a simulação de casos. Porque decorar guidelines já não chega, é preciso saber usá-las com bom senso no contexto de cada doente.
HN – Com a crescente integração de inteligência artificial e outras inovações tecnológicas na medicina, como vê o futuro da educação médica contínua? Que competências considera essenciais para preparar os médicos para esta nova era?
APM – O futuro da educação médica contínua vai ter de acompanhar esta revolução digital. A inteligência artificial, os algoritmos de apoio à decisão, a medicina personalizada, tudo isto já não é ficção científica, já está a acontecer e vai ser cada vez mais parte do nosso dia-a-dia clínico.
Por isso, acho que há duas grandes áreas onde temos de investir na formação. A primeira é a literacia digital: perceber o básico sobre como funcionam estas ferramentas, como interpretar os dados que nos dão e, acima de tudo, como usá-las de forma ética e segura. Não falo de sabermos programar, mas de saber fazer boas perguntas à máquina e interpretar bem as respostas.
A segunda é a capacidade crítica e humana para não aceitarmos e aplicarmos cegamente qualquer resposta e não deixarmos de ouvir quem nos procura. Quanto mais tecnologia tivermos, mais precisamos de médicos que saibam ouvir, decidir com bom senso, comunicar com clareza e manter o foco no doente como pessoa. A tecnologia deve ajudar e não substituir.
O segredo da educação médica no futuro vai ser este equilíbrio: formar médicos tecnicamente competentes e humanamente presentes, preparados para trabalhar lado a lado com a inteligência artificial — mas sem nunca perder a sua própria identidade.
HN – O lema do Update em Medicina 2025 é “Atualização Médica Contínua para um Cuidado de Qualidade”. Na sua opinião, como este compromisso com a atualização constante pode impactar positivamente os cuidados de saúde prestados à população portuguesa?
APM – A verdade é que a medicina está em permanente evolução — há sempre algo novo a aprender, seja uma nova evidência, uma abordagem mais eficaz ou uma ferramenta que pode melhorar a forma como cuidamos dos nossos doentes. Por isso, o compromisso com a atualização contínua é absolutamente essencial e não é só uma questão académica porque tem impacto direto e bem real na vida dos nossos doentes.
Quando um médico está atualizado, consegue tomar decisões mais seguras, escolher tratamentos mais eficazes e, muitas vezes, evitar exames ou terapêuticas desnecessárias. Isso traduz-se em cuidados mais eficientes, mais humanos e com melhores resultados.
No fundo, a atualização médica contínua não é só um investimento no conhecimento de cada profissional — é um investimento na qualidade do sistema de saúde como um todo. Assim se queremos garantir cuidados de qualidade à população portuguesa, temos mesmo de começar por aí: mantermo-nos informados e tentar fazer sempre melhor.
HN – Considerando o envelhecimento da população e o aumento da prevalência de doenças crónicas, como a formação contínua pode ajudar os médicos a adaptar-se às necessidades de um sistema de saúde em constante transformação?
APM – O envelhecimento rápido da população e o aumento das doenças crónicas associadas ao envelhecimento, representam um enorme desafio para os médicos e, na verdade, para todos nós.
Os idosos são, sem dúvida, um grupo muito particular dentro da medicina pelas suas especificidades fisiológicas e pelas doenças que se associam especificamente ao envelhecimento. Com o avanço da idade o corpo já não responde da mesma forma a tratamentos e, muitas vezes, existem múltiplas condições ao mesmo tempo, o que torna o tratamento mais complexo.
há um grande desconhecimento sobre como gerir a saúde dos mais velhos de forma eficaz. Muitas vezes, as abordagens tradicionais não são adequadas ou não têm o impacto desejado. E é aqui que entra a importância da formação contínua, para nos ajudar a entender melhor as necessidades específicas desta faixa etária e garantir que a gestão da saúde seja feita de forma mais personalizada e eficaz, com impacto positivo na qualidade de vida dos mais velhos, mas também com impacto económico positivo tanto para o sistema de saúde como para as famílias. Quando conseguimos tratar as doenças de forma mais eficiente e prevenir complicações, há menos internamentos, menos idas às urgências e menos sobrecarga dos serviços de saúde, o que se traduz em redução de custos para os serviços de saúde e para as famílias.
HN – Em sua opinião, como é que iniciativas como o Update em Medicina podem incentivar uma maior colaboração entre diferentes especialidades médicas e promover uma abordagem mais integrada e centrada no paciente?
APM – Encontros de atualização médica como o Update em Medicina são fundamentais para promover a colaboração entre as diferentes especialidades médicas. Ao reunir profissionais de várias áreas, cria-se um ambiente onde a troca de experiências e as discussões interdisciplinares acontecem de forma natural, o que facilita a compreensão mútua das diferentes perspetivas e realidades.
Além disso, estas iniciativas ajudam a derrubar barreiras entre especialidades, mostrando que, no fundo, o foco deve estar sempre no paciente. Quando médicos de diferentes áreas trabalham juntos e partilham conhecimento, conseguimos montar uma abordagem mais integrada e personalizada para cada doente, o que é fundamental para garantir que todas as suas necessidades sejam atendidas de forma eficaz e coordenada.
No final, eventos como o Update não só promovem a atualização científica como lembram que a colaboração entre especialidades é essencial para oferecer o melhor cuidado possível, aos nossos doentes.
Entrevista MMM
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