A partir da segunda metade do século passado foram surgindo outras valências a partir da especialidade-mãe. Esta evolução aconteceu sobretudo na Medicina Interna, que abrange uma ampla área do conhecimento médico. Sem descurar a visão global do doente, alguns reputados especialistas dedicaram-se essencialmente à patologia de determinados órgãos. Foi assim que nasceram a cardiologia, pneumologia, gastrenterologia, nefrologia, infecciologia e outras.
A introdução de sofisticadas técnicas de diagnóstico desde a década de 1980 revolucionou a prática médica e, conjuntamente com o aparecimento de novas doenças e de medicamentos inovadores, altamente eficazes para tratar um amplo leque de doenças graves, ditou a necessidade de acelerar essa especialização. Em abono da verdade se diga que o fenómeno da subespecialização terá ido longe de mais, criando também especialistas de técnicas e não apenas de áreas de conhecimento.
Com este panorama, a Medicina Interna sentiu-se ameaçada ao verificar que lhes estavam a ser retiradas parcelas importantes da sua competência. Ora, isto é uma falsa questão, porque continua a ser a trave-mestra do funcionamento do internamento hospitalar e dos serviços de urgência. Os internistas da minha geração nunca se preocuparam com a proliferação de disciplinas afins, porque estavam seguros das suas capacidades e tinham o bom senso de recorrer a outros especialistas ou à discussão interdisciplinar, perante casos clínicos mais complexos.
Além disso, no seu seio gerou-se uma base sólida para a afirmação da Medicina Intensiva e alguns dos seus protagonistas inclinaram-se para certas patologias, sistémicas ou de órgãos, como é o caso da SIDA, da hepatologia, da diabetes ou das doenças imunológicas. Se forem competentes no desempenho dessas funções ninguém terá autoridade para os questionar. A sua legitimidade para o fazer será ainda maior se tivermos em conta que estes doentes apresentam comorbilidades muito significativas, que impõem uma visão holística. Não é por acaso que nesta trajectória assistencial, os cardiologistas olham muito para a patologia das coronárias e deixam a insuficiência cardíaca para os internistas, da mesma forma que os neurologistas lhes confiam os acidentes vasculares isquémicos.
Com frequência abordam-me pessoas para pedir opiniões sobre qual o especialista que devem procurar para os tratar. Respondo-lhes sistematicamente da mesma forma: deve escolher um médico que saiba, que o acompanhe na sua doença e que seja sensato. Reunidas estas condições, para delinear a terapêutica de uma hipertensão arterial ou de uma diabetes, por exemplo, tanto pode ser um médico de família, como um internista, um cardiologista, um nefrologista ou um endocrinologista. Se a maior parte das doenças não respeita fronteiras, não pode alguém querer criar compartimentos estanques para o seu diagnóstico e tratamento.
Mais do que enredar-se em guerrilhas mesquinhas, a Medicina Interna deve pugnar pela qualidade do serviço que presta; mais, deve fazer sentir a sua importância à comunidade médica, a gestores e ao poder político!
Para ajudar a equacionar esta questão, introduzo aqui uma reflexão que me parece pertinente. Nos tempos áureos da Medicina Interna eram os mais bem classificados no exame de acesso que a escolhiam, porque não abdicavam de ter uma visão global do doente e sentiam que gozavam de um estatuto particular no funcionamento harmónico do hospital. Muito mudou com o advento das técnicas de diagnóstico e de terapêutica, quando as especialidades que as executam passaram a figurar como primeiras opções, porque dão notoriedade profissional e permitem obter proveitos muito acima dos proporcionados pelo estetoscópio.
Felizmente, ainda há médicos que remam contra a corrente e não abdicam da sua vocação generalista. Mas queremos que sejam cada vez mais a contrariar esta tendência, para manter a especialidade no lugar a que tem direito. Não podemos ficar satisfeitos quando médicos enveredam por ela porque não têm outra alternativa! Como diz um colega da velha guarda, o internista compara-se ao queijo: «há serra e tipo serra…»
Noutro prisma de observação, com a degradação das carreiras médicas e da hierarquia nos serviços de acção médica também se perdeu o genuíno entusiasmo, outrora existente, pela formação médica, e que permitiu criar verdadeiras escolas de pós-graduação. Onde estão hoje essas referências? Pasma-se ao saber que há vagas da especialidade de Medicina Interna, em hospitais centrais e universitários, que ficam desertas! Ninguém as quer!
A Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, a Ordem dos Médicos e os decisores políticos têm que olhar atentamente para esta realidade, se querem assegurar qualidade assistencial à população.
Nesta problemática insere-se a perspectiva de criação de mais uma valência: «a medicina de urgência». Considero esta possibilidade uma verdadeira aberração, colocada em cena por actores que desconhecem os verdadeiros problemas dos nossos serviços de urgência. Prevejo que a concretização de um plano destes possa trazer mais perturbações do que soluções ao sistema de saúde.
A Medicina Interna, além de ter o papel de coordenação da urgência médico-cirúrgica e polivalente, deve constituir a base da equipa desses serviços, tendo em conta o amplo leque de patologias e de doentes com comorbilidades que a elas acorre. Contudo, nas precárias condições em que actualmente trabalham, estes especialistas não se realizam profissionalmente e sentem que não poderão ter um desempenho satisfatório. Também sabem que nenhuma mudança cosmética resultará caso não se vá ao fundo da questão.
Em primeiro lugar tem de se reformular a urgência básica. Para isso, torna-se urgente libertar os médicos de Medicina Geral e Familiar da desesperante teia burocrática em que estão enredados. Depois, é necessário concentrar recursos, mesmo que tenha de se esclarecer os autarcas de que não pode haver um serviço de urgência em cada concelho. Com convicção, tem de explicar-se-lhes que essa opção não é a melhor e pode trazer consequências nefastas. Por outro lado, há algumas experiências passadas, de serviços de atendimento permanente em grandes centros urbanos, que resultaram bem, pelo que deviam ser repensadas.
Na urgência hospitalar a situação é caótica, com procura desmesurada e irracional, casos sociais amontoados durante dias, equipas médicas reduzidas e clínicos sem vínculo à Instituição. Ou seja, os profissionais não têm um mínimo de condições de trabalho, cumprem escalas no início, meio e fim de semana, são desconsiderados, mal pagos e ainda correm o risco de serem acusados de má prática clínica e até de serem responsabilizados pelas insuficiências organizativas (Focando-nos neste aspecto, a ideia peregrina de enviar doentes das Urgências para os Centros de Saúde é altamente perigosa! Já imaginaram o deleite dos repórteres das televisões quando morrer um doente pelo caminho, com um enfarte de miocárdio ou uma embolia pulmonar, por exemplo?).
Também deve apostar-se na concentração dos recursos regionais e na criação e cumprimento de efectivas redes de referenciação, pondo fim à anarquia que reina presentemente neste sector.
Os casos sociais nos hospitais são uma realidade chocante e que complica substancialmente o funcionamento dos serviços de urgência. Muitos deles vêm dos Lares e tal acontece porque estas instituições não têm assistência médica e de enfermagem regular. Sendo assim, são as funcionárias, que ao mínimo sinal de doença, enviam os utentes para o Hospital. Como não é da sua competência fazer triagem, descartam responsabilidades! Esta realidade tem de ser olhada de frente! Torna-se imperioso que a Segurança Social e o Ministério da Saúde se articulem para arranjar forma de equacionar e ultrapassar esta grave lacuna.
Para estas instituições conseguirem estruturar eficazmente a sua prestação assistencial podiam ter como farol orientador a hospitalização domiciliária (É imperioso alargar os seus horizontes!), em boa hora concebida e implementada no terreno pelos serviços hospitalares de Medicina.
Há outra perversidade nos serviços de urgência: sem existirem condições para constituir uma equipa com hierarquia clara, muitos médicos que ali trabalham pedem demasiados exames complementares, seja por insegurança, seja numa atitude defensiva. Desta forma, dão mais um contributo para a sobrelotação do exíguo espaço, pois esses doentes ficam horas ou dias à espera de ser despachados.
Toda esta problemática tem de ser bem ponderada, sendo certo que não é com a criação de uma especialidade dita de urgência que o seu funcionamento caótico se ultrapassa. Médicos capazes de assumir a vertente clínica já temos, quer nos Cuidados Primários, quer nos Hospitais. Todavia, têm de ser respeitados, acarinhados e recompensados com incentivos remuneratórios por desempenharem um trabalho tão nobre e desgastante, que interfere seriamente com a sua vida pessoal e familiar. É chocante que sejam pagos a preço de saldo, recebendo bastante menos do que cobram as empresas prestadoras de serviços, para o desempenho de tarefas clínicas pontuais.
Apela-se a quem de direito para que pensem nestas questões relevantes e que não percam tempo com fantasias, como a de criar mais valências. A não ser que queiram avançar para a especialidade de «medicina de guerra», mais de acordo com o teatro onde se desenvolve o trabalho destes profissionais.
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