Não há como negar a importância da visão no nosso dia a dia, na forma como nos conecta com o mundo e nos permite o ato primevo da comunicação com outrem. O olho, maravilha da natureza que nos permitiu evoluir enquanto espécie e desenvolver todo o aparato cultural e civilizacional que nos rodeia, expõe-se ao meio e aos nossos comportamentos. Estima-se que, globalmente, pelo menos 2,2 mil milhões de pessoas têm uma deficiência visual. Um contexto que levou dois investigadores e professores universitários, Jorge Jorge e Madalena Lira a endereçarem-nos uma obra para compreendermos o sistema visual, clarificar dúvidas do quotidiano e explicar como se pode manter uma visão saudável: Visão sem segredos – Mitos verdades e como realmente cuidar dos seus olhos (edição Contraponto).

José Manuel González-Meijome, Professor Catedrático, presidente da Escola de Ciências da Universidade do Minho, sintetiza o trabalho da dupla de investigadores na apresentação que faz à obra: “Este livro traduz para o público não especialista alguns dos aspetos mais importantes do funcionamento da visão em condições não patológicas, sensibilizando pessoas de todas as idades para o modo como podem proteger a sua visão”. Temas como o papel da visão na aprendizagem das crianças e no seu desempenho escolar; o que fazer para se proteger da fadiga ocular; como surge a miopia e como nos protegermos deste problema enformam as páginas de Visão sem segredos e dão mote a esta conversa com os dois especialistas. Uma conversa à qual não é alheia uma pandemia que não a Covid-19, a preocupar em todas as latitudes; assim como aspetos ligados à alimentação e visão e ao rendimento no desporto e cuidados oculares.

Madalena Lira e Jorge Jorge são ambos licenciados em Física Aplicada – Ramo ótica com especialização em Optometria e doutoramento em Ciências pela Universidade do Minho, instituição onde também praticam a docência e investigação. Madalena Lira centra a sua investigação na área das lentes de contacto e superfície ocular. Jorge Jorge investiga nas áreas da miopia e da visão e desporto.

Visão sem Segredos
Jorge Jorge e Madalena Lira, autores do livro "Visão sem segredos". créditos: Divulgação

Subjacente à escrita de um livro há sempre um propósito. No vosso caso, porque lançam neste momento o livro Visão Sem Segredos?

Madalena Lira: Começámos a pensar na escrita deste livro na fase pós-pandemia. Muito de nós tivemos de mudar hábitos de trabalho durante a pandemia. Por exemplo, muito frequentemente as pessoas referiam o olho seco, cuja sintomatologia inclui, entre outros aspetos, irritação ocular, secura, prurido e sensibilidade à luz. Fez-nos refletir e considerar que seria interessante esclarecer e desmistificar esta entre muitas outras questões.

Esta é uma conversa acerca do olho humano, uma maravilha da natureza. Gostariam de fazer uma breve apresentação deste órgão?

Jorge Jorge: Sim, o olho humano pode ser equiparado a uma câmara fotográfica ou, para sermos mais corretos, a máquina fotográfica assemelha-se ao olho humano que a antecedeu em muito. Temos o filme que é a retina, onde a imagem se vai formar; um sistema de lentes, separadas entre si e que permitem a focagem da imagem, ou seja, a córnea e o cristalino; e também o diafragma, isto é, a pupila que permite a entrada de luz e assim formar a imagem na retina. É um sistema muito complexo. A imagem forma-se na retina. Aí, os sinais luminosos são transformados em impulsos elétricos que, através do nervo ótico, são conduzidos ao córtex visual, ou seja, ao cérebro. No fundo, temos o recetor, mas a unidade de armazenamento está mais atrás, na zona occipital. O facto de os dois olhos estarem separados entre si cerca de 6 cm, permite que cada um deles tenha perspetivas diferentes. Isso permite-nos ver o mundo em três dimensões.

Madalena Lira: Gostaria só de acrescentar que o olho é uma pequena bola, com perto de 7,5 gramas, possui uma determinada consistência e nele encontra alguns fluidos. Acresce que tem de existir uma determinada tensão ocular. É protegido pela parte branca do olho, a sua camada externa, mais rígida, denominada esclera. No fundo é o “esqueleto” do olho.

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A visão binocular de que nos falavam há pouco foi-nos útil no nosso caminho e sucesso evolutivos…

Jorge Jorge: Exatamente. Com a visão binocular temos uma perspetiva diferente do que nos rodeia e permite-nos ter a noção das três dimensões, aquilo que tecnicamente chamamos estereopsia. O ser humano evoluiu baseado em olhos funcionais que não podiam ter problemas de graduação. Num tempo em que fomos uma espécie preponderantemente caçadora, sermos míopes seria contraproducente. Era uma questão de sobrevivência. Havia que ver ao longe e, em simultâneo, calcular as distâncias e identificar os relevos.

Lemos no vosso livro que, no mundo, 2,2 mil milhões de pessoas, segundo dados da Organização Mundial da Saúde, têm deficiência visual e desses, pelo menos mil milhões de casos, podiam ser prevenidos. O que concorre para esta falta de prevenção?

Madalena Lira: Há realidades dispares. Por exemplo, em países como a Índia, as pessoas não conseguem ter acesso a cuidados elementares de saúde como o tratamento das cataratas. No que concerne à realidade portuguesa, o livro aborda alguns pontos em que podemos atuar, principalmente junto das crianças e adolescentes. Neste âmbito, pormenoriza a questão da excessiva utilização dos meios digitais, e com estes a síndrome visual do computador.

Jorge Jorge: É frequente depararmo-nos com crianças com um problema de visão que lhe afeta apenas um dos olhos. Aparentemente veem bem e, quando chegadas a uma determinada idade, ao fazerem o seu primeiro exame visual, deparamo-nos com o “olho preguiçoso” [ambliopia]. São problemas que, quando diagnosticados atempadamente, podem ser resolvidos com facilidade. Este é um dos problemas com que nos deparamos, não obstante termos rastreios preventivos ou através de diagnósticos atempados.

Madalena Lira: Acrescentaria as intervenções. Há muitas pessoas que a partir dos 40/45 anos não veem bem ao perto e não usam óculos. Chama-se cegueira, embora não seja a cegueira que associamos ao ser-se invisual. Neste caso, é uma questão tratável.

Há muitas pessoas que a partir dos 40/45 anos não veem bem ao perto e não usam óculos. Chama-se cegueira, embora não seja a cegueira que associamos ao ser-se invisual.

Inclusivamente há em Portugal o programa de Rastreio Saúde Visual Infantil…

Jorge: Sim, é uma mais-valia. Efetivamente, esse rastreio tem funcionado. Nalguns distritos, melhor do que noutros. Verifica-se que em muitas crianças rastreadas, aos dois anos e meio, são detetados os problemas que referi.

Não raro, somos confrontados com notícias que sublinham a saúde oral precária no nosso país. No caso da saúde dos nossos olhos, que quadro nos conseguem traçar?

Jorge Jorge: As pessoas quando chegam a um determinado momento em que não conseguem ver bem, acabam por comprar óculos em farmácias, bombas de gasolina. Durante algum tempo estes óculos remedeiam. Ou então recorrem aos consultórios que estão nos estabelecimentos de ótica o que permite às pessoas acederem com relativa facilidade a esses serviços. No entanto, quando falamos de serviços de cirurgia em oftalmologia, verificamos que são aqueles que têm uma lista de espera mais longa, por vezes a ultrapassar os mil dias de espera para uma consulta.

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Madalena Lira: Dou-lhe um exemplo: A maior parte das pessoas sabe que tem de usar protetor solar na pele. Mas, só uma percentagem muito pequena de pessoas sabe que deve proteger os olhos. Países como a Austrália empreenderam campanhas muito grandes nesse sentido. O olho está tão exposto ao ambiente como a pele. Julgo que este seria um dos fatores em que se deveria atuar.

Falam de uma pandemia e não se referem à COVID-19, mas sim à da miopia. Pandemia é uma palavra que tem uma carga dramática. Neste caso, o da miopia, é uma realidade dramática socialmente?

Jorge Jorge: Antes de se falar da pandemia da COVID-19 já se falava da pandemia da miopia. Nos últimos anos, tem-se verificado um aumento da incidência da miopia nas populações mais jovens. Há países na Ásia, como o Japão, a Coreia do Sul e Singapura, em que, na população de jovens, até aos 20 anos, existem prevalências superiores a 80% de miopia. A prevalência da miopia na Europa ronda os 30 a 35% da população. A pandemia na miopia não se prende apenas aos números elevados, mas também porque a miopia a partir de determinado valor, o olho passa a ser dúbio e tudo o que lhe acontecer passa a ter consequências mais danosas do que num olho normal. Um olho com 10 dioptrias de miopia tem cerca de 150 vezes mais probabilidade de ter doenças do que um olho normal. Este é um problema com impacto no futuro e com grande impacto a nível de rendimento das pessoas, com encargos económicos e sociais elevadíssimos porque impedirá a atividade laboral das pessoas, sujeita-as a cirurgias. Um dos alertas que deixamos no nosso livro é o de fazermos tudo o que estiver ao nosso alcance para que a miopia não se manifeste.

Quando falamos de serviços de cirurgia em oftalmologia, verificamos que são aqueles que têm uma lista de espera mais longa, por vezes a ultrapassar os mil dias de espera para uma consulta.

Há pouco referiram a Síndrome Visual do Computador. Gostaria que pormenorizassem ligando-a a comportamentos que adotamos no dia a dia.

Jorge Jorge: Na miopia há fatores de risco que não podemos mudar, como o hereditário ou a raça. Mas há comportamentos que podemos mudar, como o excesso de atividade de visão de perto. Ao obrigarmos o sistema visual a maior foco, com mais exigência, maior é o risco de desenvolvermos miopia. Outro fator que determinámos como protetor prende-se com as atividades ao ar livre. Um estudo de 2008 demonstrou que as crianças que passam mais tempo ao ar livre têm menos miopia. Todos os trabalhos feitos a partir dessa data comprovam este facto. Em relação ao trabalho da visão de perto, não está provado cientificamente que seja pior usarmos dispositivos móveis ou lermos em papel. Agora, os dispositivos móveis têm consequências noutros aspetos.

Madalena Lira: Sim. Certamente, há uns anos, estaríamos a ler e quando terminássemos, provavelmente não faríamos mais nada em visão de perto no resto do dia. Agora, o que acontece é que durante o dia trabalhamos frente a ecrãs ou papel, saímos do trabalho e estamos no telemóvel, entre outros dispositivos. Pestanejamos de forma incompleta, o olho fica desidratado. Hoje, já não se designa Síndrome Visual do Computador e sim Fadiga Ocular Digital, o que engloba inúmeros dispositivos.

Neste contexto o sono também é importante?

Madalena Lira: O sono também tem influência, por exemplo, no caso do olho seco, na produção de lágrima. Não lhe chamaria uma pandemia, mas penso que estamos a caminhar para isso, uma pandemia do olho seco. Nas nossas aulas aparecem-nos muito alunos com sintomas de secura ocular, o que não acontecia há alguns anos.

Todos conhecemos a expressão popular que nos diz que “a cenoura faz os olhos bonitos”. Uma alimentação equilibrada pode cuidar dos nossos olhos?

Madalena Lira: Julgo que a alimentação é uma área que tem sido bem trabalhada pelos nutricionistas. Há muita informação e alertas. De uma forma geral, uma alimentação equilibrada, por exemplo baseada na Dieta Mediterrânica, acaba por ser boa para todo o organismo.

visão sem segredos
créditos: Contraponto

No capítulo sobre “visão e aprendizagem” sublinham que vários problemas visuais provocam sintomas que induzem a comportamentos que podem ser confundidos com hiperatividade ou défice de atenção. A que problemas visuais se referem?

Jorge Jorge: Quando as crianças vão para a escola são confrontadas com novas tarefas, passam a estar sentadas longas horas com pequenos intervalos. Para que os olhos estejam corretamente alinhados, é preciso, por exemplo, que não haja nenhum erro refrativo; que não haja nenhum problema de graduação. Por exemplo, o ser humano ao olhar para um objeto a 30 ou 40 cm está a fazer um esforço de focagem que varia entre as 2,5 e as 3 dioptrias. Uma criança que tenha, por exemplo, uma hipermetropia de 4 dioptrias, um defeito refrativo que é muito frequente na criança, além das 3 dioptrias que já referi está a fazer mais 4. Ou seja, um esforço acomodativo de 7 dioptrias. Isso até se consegue nos primeiros minutos, mas não conseguirá durante um longo período. O que é que a criança faz? Vai arranjar um subterfúgio para abandonar a tarefa. Levanta-se, fala com o colega do lado, torna-se mais irrequieto. Pode também ser por uma questão de coordenação entre os dois olhos. Este esforço para manter a coordenação leva a este cansaço que chamamos astenopia. O que faz a criança? Fica irrequieta. Com o nosso livro não desmerecemos os problemas de transtorno de aprendizagem e de comportamento, mas há que fazer um diagnóstico para que se tenha a certeza absoluta de que não existe um problema visual na criança. Neste contexto, os professores e educadores têm um papel importantíssimo.

Na miopia há fatores de risco que não podemos mudar, como o hereditário ou a raça. Mas há comportamentos que podemos mudar, como o excesso de atividade de visão de perto.

Um dos aspetos que abordam no vosso livro é o da ligação da visão ao desporto. Neste campo, faz-se um trabalho específico junto dos atletas?

Jorge Jorge: Na Universidade do Minho começámos a trabalhar com atletas no ano de 2005, de forma esporádica. Desde 2010-2011, iniciámos uma outra vertente, ou seja, pretendemos melhorar o rendimento do atleta também na sua visão, por exemplo o tempo de reação, a visão periférica. Claro que temos de fazer um acompanhamento cuidado do atleta, percebermos quais são as suas dificuldades ou limitações visuais e, a partir daí, preparamos um plano de reabilitação ou otimização visual do atleta. Os atletas estão a sofrer dos mesmos problemas do ‘comum dos mortais’, ou seja, tocamos, uma vez mais, na questão da exposição aos dispositivos móveis.

A Universidade do Minho onde lecionam está a desenvolver um projeto de reciclagem de lentes de contacto. Querem pormenorizar?

Madalena Lira: Estamos a desenvolver esse estudo porque há uma tendência de uso de lentes de contacto diárias, o que se traduz num enorme volume de lentes. Há quem as deposite na sanita ou no lavatório o que acaba por as encaminhar para os rios e oceano. Até ao momento, os estudos indicam que se transformam em microplásticos, não se degradam. Estamos a fazer a recolha dessas lentes e a tentar encontrar um produto de valor acrescentado.