Eleito presidente da Sociedade Portuguesa de Ortopedia e Traumatologia para o biénio 2023/2024, João Gamelas, diretor do Serviço de Ortopedia do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental falou em exclusivo ao Healthnews sobre as prioridades que definiu para o seu mandato. “Esta é uma liderança pela união de todos os ortopedistas” garante o dirigente, acrescentando que “todos juntos reinventaremos a SPOT com um projeto que privilegia a partilha de experiências e conhecimento, a promoção de literacias e a discussão dos problemas socioprofissionais dos ortopedistas”
Healthnews (HN) – Assumiu o compromisso de servir a SPOT, a Ortopedia e os ortopedistas portugueses num momento de grande fragilidade. No Serviço Nacional de Saúde (SNS), a Ortopedia é das especialidades mais problemáticas?
João Gamelas (JG) – No SNS a Ortopedia é uma das especialidades problemáticas. É um problema estrutural do SNS que afeta um conjunto de especialidades, ou todas as especialidades, ainda que com mais suscetibilidade numa ou noutra em determinados momentos.
HN- A especialidade passa também por uma situação que é comum a outras, é certo, de que toda a gente fala, mas poucos apresentam propostas para resolver, que tem a ver com o envelhecimento da especialidade. Mais de metade dos especialistas já podem não fazer urgências, com todas as consequências que daí advêm. Para além da não renovação da especialidade, acabam por não intervir numa área tão particular como as urgências.
JG – A sua pergunta é muito pertinente, mas foca aqui várias circunstâncias. A urgência é talvez o setor de atividade que tem mais visibilidade e mais repercussão mediática; mas há outras, que têm a ver com as listas de espera, quer para consultas, quer para cirurgias. Portanto, tem a ver com o global da atividade. É verdade que as urgências têm um grande impacto, porque são o grande recurso quando as pessoas têm uma situação aguda que muitas vezes resulta de situações crónicas arrastadas no tempo; não tratadas atempadamente.
Isto não é exclusivo da Ortopedia. Nós não teremos dificuldades, com os recursos que temos, de assegurar as urgências. O que nós temos dificuldade é de assegurar as urgências para todos os casos que vão à urgência porque, não sendo urgentes, não têm uma resposta noutros níveis da assistência. Claro que a solução do problema das urgências e de haver ortopedistas e especialistas hospitalares para assegurar as urgências passa por ver nas urgências aquilo que é urgente, e para isso é preciso que haja condições para ver fora das urgências aquilo que não é urgente nem precisa de ir à urgência. Diz-se muito que grande parte dos doentes que vão à urgência não deviam ir, que em Portugal há um excessivo consumo da urgência. Ora, isso não acontece porque os doentes gostem muito de ir à urgência, e de esperar horas ao frio, à chuva ou ao sol. É neste contexto que se diz muitas vezes que a reforma do SNS tem de passar pelos cuidados primários, pelos médicos de Medicina Geral e Familiar nos centros de saúde. Claro que sim. Tem de passar por isso, e para isso acontecer é necessário que o exercício da MGF seja mais aliciante; tenha mais apoio dos médicos das especialidades que estão nos hospitais, com quem têm que ter contacto, proximidade e capacidade de interagir. Trata-se de uma integração a vários níveis, não só ao nível dos recursos humanos, como ao nível tecnológico, entre outros, o que está por fazer. E portanto, não vale a pena continuar a dizer – nós já dizemos isto há décadas – que há um problema de resposta nos cuidados de saúde primários, que há uma sobreutilização dos serviços de urgência. Como também não vale a pena continuar a dizer e “a chover no molhado”, porque isso não se vai resolver por nós dizermos muitas vezes. Vai-se resolver quando tomarmos as medidas certas para isso.
HN- A questão é que os cuidados de saúde primários encerram. Os horários não são compatíveis com as urgências hospitalares. A partir de certa horas, não há cuidados de saúde primários e continua a haver urgências.
JG – É mais uma questão de recursos e de organização do que propriamente outra coisa. Eu diria que sim, que é importante que haja uma maior abrangência horária nos cuidados primários, mas não é pelo facto de eles fecharem a partir de certa hora que há muitos mais doentes na urgência que poderiam ter os seus problemas resolvidos nos cuidados de saúde primários, porque os picos de afluência da urgência, sendo certo que os há ao final do dia a seguir ao encerramento dos centros de saúde, a verdade é que ocorrem a outras horas do dia, em que os cuidados de saúde primários ainda estão a funcionar e até dispõem, em muitos locais, de serviços de atendimento permanente. Portanto, sim, há que rever o horário de funcionamento, mas para isso também há que ter recursos e há que ter profissionais, o que só acontece se a profissão for aliciante de tal modo que os médicos sintam que estão a enveredar por um projeto de carreira e de vida.
HN- Voltando à Ortopedia e ao seu mandato, na sua campanha anunciou que se iam dar os primeiros passos para reinventar a SPOT. A que se referia exatamente?
JG – Referia-me a muitas coisas. A SPOT tem tido um modelo tradicional de funcionamento e de governance em que têm sido feitas muitas coisas meritórias – é uma história com mais de 70 anos de duração. Mas a SPOT também tem de ser reinventada no sentido em que tem de se projetar, tem de ser orgulhosa do seu passado e projetar-se para aquilo que é o futuro. O mundo, nos últimos anos e ao longo do tempo, foi mudando muito. Já não temos o mundo que tínhamos há uns anos atrás. Hoje, tudo é diferente. Há coisas que se foram desenvolvendo do ponto de vista tecnológico e que tiveram uma grande alavancagem com a pandemia e que já não vão voltar para trás. A SPOT sempre teve um conjunto de procedimentos e um conjunto de atividades muito focados naquilo que era o anterior normal – focada na presença física, nas reuniões presenciais, etc. -. Agora tem de fazer uma transição para estes novos modelos. Temos uma aposta muito forte em webinares, formações online, e para isso também temos que nos dotar, e temo-lo feito, das necessárias ferramentas tecnológicas, que nos permitam realizar webconference e webinares, votações online. Temos de estar preparados para sermos capazes de ter isso para oferecer aos sócios.
Somos uma Sociedade que tem uma organização interna bastante complexa. Temos, para cada área anatómica ou para cada grande grupo de patologia, uma estrutura que se dedica a esse conhecimento específico. Temos sociedades afiliadas, temos secções, temos grupos de estudo. Cada um tem as suas iniciativas, promove os seus eventos, os seus congressos. A SPOT é uma organização de tipo “guarda-chuva”, em que estamos todos, e que, portanto, tem de estar em condições de fornecer as ferramentas para que cada um possa desenvolver a sua atividade nas melhores circunstâncias possíveis, se necessário com recurso às novas tecnologias. Portanto, essa é uma forma de reinventar a SPOT. Outra forma de reinventar a SPOT é apostar num congresso que seja mais dinâmico, mais participado, mais poderoso do ponto de vista científico, que atraia mais congressistas e ortopedistas, mas que também atraia mais parceiros e mais empresas e entidades que vejam vantagem ou queiram estar envolvidas connosco, com as nossas iniciativas formativas, com a nossa aposta na diferenciação dos profissionais, na melhoria contínua da qualidade dos serviços que são prestados aos cidadãos. Essa também é uma forma de reinventar a SPOT. Depois, é dotá-la das ferramentas regulamentares que são hoje obrigatórias e que têm de ser revistas – como a possibilidade de reuniões online, de convocatórias online, ferramentas de comunicação. Temos de ser capazes de comunicar melhor, comunicar para dentro da sociedade, para os nossos sócios, comunicar para fora, para a sociedade civil. São tudo ferramentas na área das comunicações que temos de ter. Temos também que melhorar as campanhas que temos desenvolvido tradicionalmente e, eventualmente, criar outras com os parceiros que temos tido ou envolvendo outros parceiros. Temos algumas campanhas que têm bastante impacto na sociedade civil. Isso também é uma forma de reinventar a SPOT. Outra grande aposta é a de termos um site poderoso, forte em conteúdos. Os sócios têm de querer ser sócios, têm de ver vantagens em serem sócio e estar mais próximos da sociedade. Temos de nos aproximar de todos dos nossos sócios, ter mais sócios, ter os nossos parceiros mais envolvidos, estar mais próximos dos cidadãos permitindo-lhes acesso à literacia para a saúde, conteúdos destinados ao público. Estamos a trabalhar de uma forma muito ativa em tudo isso, em todas essas vertentes e noutras também. Outro objetivo é o de termos a nossa revista científica reforçada, indexada em várias plataformas, com uma capacidade de publicação assídua, periódica, qualitativa, mais poderosa, mais internacional, mais indexada, mais referenciada. Tudo isto são formas de reinventar a SPOT. São muitas vertentes, são muitas áreas a que temos de nos dedicar e é isso que estamos a fazer. Aquilo que prometemos na altura da campanha foi reinventar a SPOT e prometemos trabalhar muito para isso. É isso que estamos a fazer.
HN- O que é que significaria para si despedir-se da SPOT com a sensação de missão cumprida?
JG – Representaria, primeiro, a consciência tranquila de que trabalhei com a minha equipa, com todos, e consegui mobilizá-los para trabalharem afincadamente neste projeto. Sentir que deixarei, no final deste mandato, a SPOT mais forte, com mais capacidade, com mais ferramentas para atuar e para se apresentar junto das pessoas. Também seria uma marca de sucesso nesta tarefa ver os sócios mais próximos da Sociedade e a acreditar que a Sociedade pode trilhar outros caminhos no futuro; que pode viver os próximos 70 anos a fazer coisas, a ser útil aos sócios, às pessoas, à sociedade civil em geral. Os três principais pilares para dizer que saio com a sensação de dever cumprido: uma SPOT mais forte, uma SPOT mais próxima e participada e uma SPOT preparada para o futuro.
HN- Quais são as atividades previstas para este ano? Há alguma coisa que gostaria de destacar?
JG – Para este ano temos previsto um conjunto de atividades. Para já, o reforço importante de conteúdos do site. É um evento em contínuo. Temos já muito material recolhido para isso e estamos a preparar a disponibilização desses conteúdos para breve. Depois, a aposta no grande evento da SPOT, que junta todos os ortopedistas, que é o congresso nacional. Será entre 2 e 4 de novembro e estamos a fazer uma aposta muito forte tanto do ponto de vista científico quanto do ponto de vista de temas mais transversais sobre gestão de saúde, sobre as problemáticas de carreira do SNS, etc. E numa aposta também muito forte em relação aos participantes institucionais, às empresas, aos patrocinadores. Temos neste momento a ser trabalhadas duas séries de podcasts, com características diferentes. Temos webinares de duas horas que fazemos uma vez por mês e temos os eventos das estruturas organizadas. Alguns fazem eventos muito importantes e muito fortes, como é o caso da Sociedade Portuguesa do Ombro e do Cotovelo. Temos um grande evento da anca que a secção da anca está a organizar. Temos tradicionalmente o congresso da Sociedade Portuguesa de Ortopedia Pediátrica (SPOP), que é também um evento muito relevante no universo da SPOT. Temos eventos do joelho, da Sociedade Portuguesa para o Estudo do Joelho, que também é uma organização SPOT; do punho e mão – sobre os quais também há eventos, muitas vezes associados à Sociedade Portuguesa de Ortopedia e Cirurgia da Mão; e eventos da secção de trauma, ente outros. Enfim, todas essas estruturas fazem os seus eventos. Temos as jornadas médico-cirúrgicas mirandesas, da secção de medicina legal, que realiza um congresso em associação com a Sociedade Espanhola de Dano Corporal. Tivemos o Congresso Luso-Hispano de Cirurgia do Pé e Tornozelo, que não sendo um evento SPOT, também estivemos envolvidos.
HN- Há uma intenção declarada de uniformizar ao todo nacional o modelo ULS. Como vê esta intenção?
JG – Cada modelo tem as suas vantagens e desvantagens. O modelo de ULS é um modelo que já não é novo; do qual já temos algumas experiências nacionais e internacionais. Penso que a principal vantagem que este modelo oferece é o de permitir gerir o doente e o fluxo do doente como um todo, envolvendo os diferentes níveis de cuidados.
HN- Tem o problema de transferir maior responsabilidade para a ULS.
JG – Transfere maior responsabilidade para a ULS, de facto, mas também deixa ao critério da ULS se obtém mais ganhos de saúde investindo por exemplo na prevenção. Permitirá uma visão mais holística da saúde e do doente. Predispõe mais a investir na prevenção, que é uma coisa que hoje em dia os hospitais fazem pouco porque estão muito mais focados no tratamento dos doentes e são financiados em função dos doentes que tratam e não das doenças que previnem.
HN- Relativamente aos CRI, não pode ser uma opção concomitante?
JG – Sim. O CRI é uma forma de organização interna. Pode haver uma ULS e a ULS ter CRI. Não é nada de incompatível, não é um modelo alternativo. Há outros modelos alternativos à ULS, mas o CRI é uma forma de organização interna. Penso que os CRI neste momento são incontornáveis. Não há mais margem para não ter os profissionais envolvidos nos cuidados que prestam, na qualidade com que os prestam, no facto de os prestarem mais ou menos atempadamente. Os profissionais têm de estar envolvidos nisso, na gestão de todo o processo e têm de ter depois os seus incentivos em função dos resultados que alcançam. Outra coisa muito importante é que tenham autonomia na organização do serviço, que estruturem o serviço em função das necessidades reais, tendo alguma autonomia para contratar recursos para as necessidades que têm e para gerir dentro do serviço, porque o que não se gere dentro do serviço não é passível de ser gerido por alguém vindo de fora. Quando vem alguém de fora gerir, não está a gerir um serviço, está a seguir uma regra que se aplica a muitos serviços. Está-se a gerir mal. Quando se fazem restrições ao financiamento, por exemplo, está-se a gerir mal, porque está-se a cortar o financiamento para todos, quando uns deveriam ter mais e outros deveriam ter menos, em função também dos seus resultados.
HN– Quando pensamos nas especialidades mais propensas à criação de CRIS, a Ortopedia é uma delas.
JG – É sim. A Ortopedia é uma especialidade que tem bastante apetência para o CRI, ou seja, é fácil de montar, de organizar e depois de medir. Se bem que a Ortopedia mudou muito nas últimas décadas. A Ortopedia confrontava-se muito, no passado, com mais doentes traumatizados, acidentes de trabalho, acidentes de viação, etc. Esse volume foi diminuindo. E tratava habitualmente doentes mais jovens. Hoje há uma necessidade enorme de tratar idosos. E os doentes idosos trazem-nos muitos problemas acrescidos, um dos quais é o problema social que está associado ao doente idoso nos grandes meios urbanos, a falta de apoio e condições para os receber e a dificuldade em retirá-los das camas hospitalares para os pôr em unidades de cuidados continuados ou unidades de convalescença. Portanto, há falta dessas camas e isso penaliza. Por outro lado, a evolução tecnológica fez aumentar muito a capacidade cirúrgica. A engenharia e a indústria têm um peso muito grande, com o desenvolvimento de novas soluções que fizeram melhorar muito os resultados, e quando os resultados melhoram muito, o tratamento pende mais para a área cirúrgica. Muitas coisas que antes eram tratadas conservadoramente, sem cirurgia, hoje são tratadas cirurgicamente, porque conseguimos muito melhores resultados cirúrgicos, por força das novas tecnologias e novas filosofias, novos conceitos de tratamento cirúrgico, etc. E portanto, nós operamos doentes cada vez mais idosos, temos necessidade de operar cada vez mais doentes porque cada vez há mais indicações cirúrgicas, porque cada vez conseguimos melhores resultados do que não operando.
HN- Uma nota final…
JG – Não há Sociedades sem sócios. Não há Sociedades sem envolvimento dos sócios. Não há Sociedades em que uma direção trabalha e mais ninguém se envolve. Isso não faz sentido. Toda a dedicação, todo o trabalho, tudo aquilo que vamos continuar a fazer nos próximos meses só tem um objetivo: trazer os sócios para dentro da Sociedade, pôr os sócios envolvidos connosco, a trabalhar, a ter ideias, a protagonizar; pôr os sócios a acreditar na Sociedade e a dizer que vale a pena pertencer à Sociedade. Se isso for atingido, a Sociedade terá um grande futuro e os ortopedistas portugueses, juntos, terão um grande futuro. Se isso não for conseguido, não conseguiremos chegar tão longe quanto poderíamos. Do nosso lado, daremos aquilo que sempre prometemos: muito trabalho, muita dedicação, reinventar a SPOT. Do outro lado, que no fundo é o mesmo lado, temos de ter a resposta a isto, a presença, a participação, estar em força no congresso, ter muitos ortopedistas no congresso. Essa é que é a força do congresso. Um congresso com o melhor programa científico, se não tiver congressistas, é um fracasso. O sucesso do congresso passa por ter o congresso cheio; que valha a pena para todos os que lá estão, não só para os congressistas, mas também para aqueles que acreditaram que estando presentes podiam ter o seu retorno e a sua visibilidade. Só o terão se os sócios lá estiverem. Estamos a fazer tudo isto para os sócios. Claro que atrás dos sócios vem o resto, a sociedade civil, os cuidados prestados, a qualidade, a formação, a diferenciação. A dedicação que nos move é para com os sócios. Com os sócios virá tudo; sem os sócios não acontecerá nada por muito que trabalhemos.
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