HealthNews (HN) – Como é que se explica a elevada prevalência da diabetes em Portugal, que ultrapassa a média europeia?
João Raposo (JR) – Os números continuam a ser alarmantes. Em Portugal, continuamos a não ser capazes de debelar este crescimento da diabetes. Somos uma população envelhecida. Isso também contribui para uma parte significativa dessa diferença numérica que apresentou. Por outro lado, a nossa mudança de estilo de vida é razoavelmente mais recente comparando com outros países da União Europeia. E sabemos também que povos que entraram mais tarde nesta transição demográfica e social têm prevalências mais altas de excesso de peso, obesidade e diabetes. Portanto, estes números resultam do nosso modelo de desenvolvimento económico, por um lado, e, por outro, do envelhecimento populacional. Dado que não analisámos convenientemente estas causas, nem as intervenções a elas dirigidas, não conseguimos inverter esta tendência de crescimento.
HN- Quais são hoje as principais preocupações da Sociedade Portuguesa de Diabetologia?
JR – O que a Sociedade Portuguesa de Diabetologia procura enquanto sociedade multidisciplinar na abordagem da diabetes é que haja uma conjugação de esforços de toda a sociedade no sentido de combater os números de que falámos. Ou seja, queremos medidas eficazes de prevenção da diabetes; queremos melhores cuidados às pessoas com diabetes, com melhor ligação entre aquilo que acontece nos cuidados de saúde primários, nos cuidados hospitalares e nos cuidados continuados; queremos maior apoio às pessoas idosas; queremos ter equipas multidisciplinares devidamente treinadas e queremos que haja apoio na área da investigação, porque é preciso continuar a investir no conhecimento do que é a diabetes, suas causas e tratamentos.
A Sociedade Portuguesa de Diabetologia tem desde a sua fundação, há 45 anos, esta obrigação de ligar os vários ramos do conhecimento e da prática, para que isso se traduza numa sociedade com menos pessoas com diabetes e com pessoas com diabetes mais bem tratadas e com melhores resultados na sua vida, mais ativas e com o seu potencial atingido; que não fiquem limitadas pela diabetes, que sabemos que é uma doença que causa um elevado grau de incapacidade.
HN – Em 2023, como é que governantes, profissionais de saúde e o cidadão comum podem contribuir para melhorar a realidade portuguesa?
JR – A diabetes tem vários níveis de responsabilidade. Começamos pela nossa responsabilidade individual e vamos até à responsabilidade social, ou vice-versa. Um dos maiores problemas que temos é que, às vezes, assumimos que a prevenção da diabetes, tal como o controlo da diabetes, passa exclusivamente pela responsabilidade individual. Ou seja, cada um é que tem de comer de modo saudável e fazer atividade física; quem já tiver diabetes, fazer o seu tratamento de forma adequada, fazer as suas consultas, fazer os seus rastreios. Se as pessoas faltam, se as pessoas não o fazem, são tipicamente os “maus doentes”. Não é isso que nós queremos. Sabemos o peso que ter diabetes representa na vida de cada um; portanto, temos é que criar um modelo de sociedade e de cuidados de saúde que ajude as pessoas a tomarem as decisões certas, seja na área da prevenção, seja na área do controlo da medicação e adesão à terapêutica.
Na área da prevenção, estudos recentes mostram que boa parte da população sabe o que é a diabetes e quais são as medidas de prevenção. No entanto, percebemos que entre esse conhecimento e a prática há uma grande distância. Esta só pode ser encurtada se, de alguma maneira, do ponto de vista das autarquias e das regiões de um país, tivermos medidas que favoreçam esta adoção de comportamentos. Se nós queremos que a promoção da atividade física seja uma realidade, temos de ter espaços que sejam facilitadores de as pessoas se mexerem naturalmente. É evidente que, por exemplo, a aposta em melhores transportes públicos faz parte deste tipo de ações. Mas terem passeios seguros que evitem as quedas ou que diminuam o risco de quedas é muito importante; os espaços cicláveis; os espaços para os miúdos brincarem desde cedo.
Portanto, a atividade física tem de se transformar naturalmente parte da vida das pessoas, e não um extra, porque é para os extras que as pessoas não têm tempo. Temos de pensar como é que nós integramos naturalmente este tipo de comportamentos. E este é o desafio para o nível da sociedade, para o nível da governança – como é que nós mudamos estes hábitos que começam desde cedo. Não podemos abandonar a esperança de que nós, em qualquer idade, somos capazes de mudar, assim nos deem as condições para tal. Precisamos de programas na área da prevenção sobre como é que nós mudamos comportamentos, e não como é que dou a informação. Como é que eu mudo o comportamento da população em idade escolar, como é que trato da mudança, crítica muitas vezes, para o meio universitário – porque até ao secundário há uma percentagem significativa da população que até faz atividade física e depois, na mudança para a universidade, de repente, essa prática é interrompida e os hábitos alimentares mudam drasticamente. A partir daí, com a transição para o mercado de trabalho e para a vida familiar, perdemos uma oportunidade significativa de manter hábitos saudáveis. Esse é outro desafio que temos aqui e que não é muito falado.
Depois, tudo aquilo que tem a ver com o processo do envelhecimento é crítico em Portugal, como sabemos, e devia ser ainda mais cuidado. Aqui, falamos do isolamento. Sabemos que o isolamento social das pessoas mais velhas é um fator crítico. Na verdade, ainda não encontrámos medidas estruturadas para o combater.
Refugiamo-nos muitas vezes nesta culpabilização da pessoa. Temos de ter esta visão integrada, que não é da exclusiva responsabilidade do meio da saúde, dos prestadores de cuidados de saúde, mas sim de todos nós. Essas doenças crónicas não transmissíveis são doenças de sociedade. Portanto, é esta cidadania ativa que é necessária. Temos de ter este conhecimento e temos de ter as condições para poder atuar.
HN – O 19.º Congresso Português de Diabetes centra-se em que temas?
JR – Na sessão de abertura, vamos olhar para a diabetes em contexto de emergência humanitária, como é o caso da guerra e dos desastres naturais, e como é que nós nos estamos a organizar (ou não), como é que as pessoas com diabetes sabem ou não o que fazer nestes contextos e como é que os países estão ou não estão preparados. Percebemos, com a Covid, como um país pode não estar devidamente capacitado para ter todos os recursos que são necessários para assegurar todos os cuidados à sua população, e isso foi discutido em muitos países.
Na sessão de encerramento, vamos ter um palestrante para falar da literacia em saúde, não só ligada ao conhecimento que as pessoas têm da sua saúde, de como navegar no sistema de saúde, como tomar as atitudes corretas, mas, na verdade, como é que podemos construir em cada comunidade projetos que promovam a literacia de saúde, para melhores resultados em saúde. E portanto, é exatamente como é que nós ligamos todos esses eixos do conhecimento e todos os intervenientes a nível de comunidade; como é que se constrói conjuntamente modelos de intervenção que, devidamente acompanhados, vão levar a uma mudança nos comportamentos e a melhores resultados em saúde. O Grupo de Estudo de Educação Terapêutica e o Grupo de Enfermagem irão igualmente complementar esta visão no seu simpósio.
Depois, é evidente que temos que pensar que estamos no século XXI. Os aspetos tecnológicos são importantes. A tecnologia na diabetes é cada vez mais relevante, sendo facilitadora das atitudes terapêuticas; mas, por outro lado, se as pessoas não tiverem acesso à devida educação, pode haver aqui um bloqueio, uma barreira à sua adoção. Novamente, é preciso que as equipas multidisciplinares estejam devidamente capacitadas para aceitar e adotar a tecnologia, e transmiti-la de modo adequado às pessoas que dela beneficiariam.
Depois, há o lado que mostra aquilo que nós ainda temos que saber sobre as complicações da diabetes. Sabemos como é que devemos organizar os cuidados para rastrear as complicações e ter acesso ao melhor tratamento, mas precisamos de perceber melhor porque é que as complicações aparecem, de que é que dependem e qual é a melhor abordagem terapêutica. Portanto, vamos falar ainda da retinopatia, da nefropatia, da doença cardiovascular, do declínio cognitivo e da demência – uma ligação mais recente, entre o cérebro e a diabetes. Hoje começamos a perceber que muitos dos mecanismos que levam ao aparecimento da diabetes são relevantes para o funcionamento cerebral, podendo estar também na origem de muitas das doenças degenerativas do ponto de vista cognitivo. Falaremos também de sexualidade e de fígado gordo, a esteatose hepática, uma complicação cada vez mais na ordem do dia. Ainda temos de perceber quais são as consequências clínicas do aparecimento deste fígado gordo.
Quando falamos da pandemia da diabetes, esquecemos muitas vezes a diabetes tipo 1 e, especialmente, a diabetes tipo 1 pediátrica, que é uma população que precisa de um acompanhamento específico, em modelos próprios de cuidados e com acesso a terapêuticas que são muito específicas, que os profissionais de saúde que estão interessados na área da diabetes têm todo o interesse em avaliar e perceber qual o melhor modo de as utilizar.
A Sociedade tem vários grupos de estudo dedicados a diferentes áreas de interesse. O nosso congresso reflete também as suas propostas e organização. Um desses exemplos é o da diabetes e gravidez, que desde há muito faz um levantamento destas situações e tem sempre conseguido apresentar resultados daquilo que é a realidade em Portugal. Esta é uma das áreas em que, novamente, o papel das equipas multidisciplinares no acompanhamento das pessoas é fundamental.
Um outro grupo muito ativo é o da investigação fundamental e translacional, que junta o que de melhor fazemos no nosso país no domínio da investigação. Uma parte significativa dos sócios da SPD vem desta área, algo que não é tão frequente noutras sociedades científicas de orientação clínica.
Não poderíamos deixar de lado o papel da nutrição neste grupo de doenças, sabendo nós que esta é a base da abordagem da sua prevenção e controlo.
No primeiro dia, de manhã, há o programa pré-congresso, onde procuramos que grupos mais pequenos tenham abordagens mais interativas. E a abordagem interativa passa por algo que já fazemos há alguns anos, que é a ligação da investigação – a investigação e como é que nós olhamos para os números, para os indicadores, como é que construímos a informação que usamos mais tarde.
Depois, outros três temas também normalmente muito apelativos: a insuficiência cardíaca (porque sabemos que é uma das patologias mais recorrentes na diabetes), o rim e um outro sobre as tecnologias avançadas na diabetes, especificamente sobre os sistemas de perfusão subcutânea de insulina, hoje em dia em discussão, quer no acesso, quer na melhor utilização destes dispositivos.
Fizemos a primeira caminhada/corrida no ano passado. Este ano, teremos novamente esta ação aberta à comunidade, porque também nos parece importante ligarmos as atividades da sociedade à comunidade. No sábado de manhã, teremos esta caminhada/corrida, que engloba os participantes do congresso e toda a população que a nós se quiser juntar.
Entrevista de Rita Antunes
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