“São esses gritos que nos devem levar a pensar como é que podemos ajudá-las. Provavelmente, existindo um estatuto para o cuidador, devemos trabalhar todos em conjunto para levar mais longe a sua implementação”, propõe Ana Escoval, coordenadora do projeto Saúde que Conta da Escola Nacional de Saúde Pública, numa conversa sobre o estudo “Literacia em Saúde e Qualidade de Vida dos Cuidadores Informais – a realidade portuguesa”.

HealthNews (HN)- Os resultados obtidos são verdadeiramente alarmantes. Quais destacaria e como se explica a realidade portuguesa?

Ana Escoval (AE)- Eu gostava de destacar duas ou três questões de enquadramento, que acho que são muito importantes, e a caracterização da amostra e dos resultados, porque está tudo interligado. Uma questão que temos de ter em conta é que Portugal é dos países mais envelhecidos do mundo e, também, dos países com taxas mais elevadas de cuidados informais no domicílio na Europa. Outra questão que temos de ter presente, que também nos preocupou, é que cuidar de alguém que é dependente é muito exigente e, com um país muito envelhecido e com um elevado nível de doenças crónicas, esta função do cuidar tem muitos impactos, naturalmente negativos, a nível físico, psicológico, social, económico, na vida da pessoa que cuida e, também, na vida da pessoa que é cuidada.

Tendo isto como enquadramento, fizemos um questionário eletrónico; portanto, não podemos daqui tirar ilações para o todo nacional, porque, na nossa amostra, 41,5% completou o ensino superior. Em princípio têm alguma literacia, naturalmente. Mas, mesmo assim, 58,6% tem um nível de literacia em saúde inadequado ou problemático, e isto preocupa-nos. E também, mesmo com este nível de educação, 48,1% classifica o seu acesso à informação sobre ser cuidador informal muito mau ou mau. Tendo isto tudo presente, convém também caracterizar a amostra: 92% são mulheres e a idade média são 57 anos; 43% tem um rendimento familiar entre os 700 e os 1400 euros; e para adensar as nossas preocupações, 44,4% trabalha a tempo inteiro ou tempo parcial. Diz-nos também a nossa amostra que quase 86% não usufrui do estatuto de cuidador informal, embora quase 79% cuide de pelo menos uma pessoa; 47% tem essa responsabilidade há mais de um ano e quase 38% presta cuidados até seis horas por dia, pese embora trabalhar a tempo inteiro ou a tempo parcial. Isto diz-nos que estamos perante pessoas que, efetivamente, têm uma sobrecarga grande nesta tarefa do cuidar. Perguntámos também às pessoas como é que elas percecionavam o seu estado de saúde: 57% diz-nos que perceciona um nível razoável e 51% que o seu estado de saúde mental também está no nível razoável.

A Lei de Bases da Saúde, na sua base 3, de facto, reporta uma preocupação sobre o cuidador informal. Diz que a lei deve promover o reconhecimento do importante papel do cuidador informal. Simultaneamente, há um estatuto do cuidador informal, que foi uma lei de setembro de 2019 que veio regular os direitos e os deveres do cuidador e, naturalmente, da pessoa cuidada. A implementação desta lei foi primeiro experimentada em 30 municípios e depois, em janeiro de 2022, foi alargada a todo o país. Mas há aspetos do estatuto que precisam ainda de regulamentação e algumas medidas de apoio ao cuidador informal, aos direitos laborais dos cuidadores, nomeadamente dos cuidadores não principais, o que, provavelmente, leva a que tenhamos esta percentagem tão elevada de pessoas que não usufruem do estatuto do cuidador informal. Isto é efetivamente uma grande preocupação.

Se olharmos para as conclusões – fizemos o questionário e, depois, desenvolvemos uma técnica de grupo nominal, com especialistas com quem discutimos os resultados que tínhamos encontrado. Os especialistas elencaram cerca de 32 questões/recomendações que consideraram fundamentais no corolário deste trabalho, e selecionámos as cinco que reúnem o maior consenso globalmente. Uma das primeiras é pressionar os decisores políticos para a necessidade de implementação efetiva do estatuto do cuidador; ou seja, pegar nas medidas que já estão aprovadas e que não estão ainda a ser aplicadas e rever/acrescentar outras. Isto implicará necessariamente mais informação e irmos mais longe no apoio a estes cuidadores informais.

HN- Um problema que não é novo e de recorrente debate. Porque é que está a falhar?

AE- Termos uma lei não significa que há uma aplicação plena e justa, se não houver uma boa regulamentação e se não houver um bom acompanhamento da mesma. Temos que entender que esta lei tem, pelo menos, dois grandes interessados: a saúde e o social. Esta é logo à partida uma reflexão que temos de fazer: como é que podemos garantir que o social e a saúde se articulam no sentido de levar mais longe a implementação efetiva do estatuto do cuidador? Esta é uma questão fundamental. Podemos até dizer que conseguimos o consenso dos peritos sobre isso, mas não é possível sem que haja várias articulações de diferentes atores para o conseguir.

Por exemplo, dizem os peritos o seguinte: é muito importante sensibilizar as entidades empregadoras para a exigência de ser e do papel do cuidador informal. As entidades empregadoras, hoje, maioritariamente, reconhecem o papel da mãe e do pai. Mas este papel do cuidador informal ainda não está nas agendas de todos os atores importantes, nomeadamente nas leis laborais. Nós tínhamos começado por dizer que a saúde e o social têm de se articular, porque a pessoa tem necessidade de cuidados de saúde, mas também tem necessidades sociais, e agora entra aqui mais uma vertente, do trabalho, obviamente também com o social. Depois, são as pessoas e os grupos que habitualmente trabalham estas temáticas, como associações, autarquias, juntas de freguesia, sociedade civil, etc. Todos aqui somos importantes.

Portanto, reforçando: a lei só por si não é garantia de que vamos conseguir responder a estas pessoas. A única garantia que temos é que o crescimento do envelhecimento em Portugal é uma realidade, como o é, também, o crescimento das doenças crónicas. Para já, aquilo que se diz é que não há estruturas que deem resposta a estas pessoas idosas e doentes. Mas nós não queremos que as pessoas sejam institucionalizadas, nem ninguém deve querer isso. O que gostaríamos era de manter as pessoas, primeiro, ativas o mais possível, e o mais possível nas suas casas ou nos locais onde seja possível elas estarem mais felizes, mais saudáveis, dentro do possível, e mais acompanhadas. E para isto precisamos de quem cuide delas. E quem é que pode cuidar delas? Os tais cuidadores informais.

Acho que os nossos governantes devem ficar muito gratos se a sociedade civil se mobilizar no sentido de apoiar todos aqueles que precisam, para evitar o mais possível que tenhamos de fazer crescer grandemente, mais ainda, o número de cuidadores formais e das estruturas para institucionalizar as pessoas. Devemos ser capazes de contribuir para uma sociedade grisalha acompanhada, se possível, em proximidade por estes tais cuidadores informais, que são muitas vezes a própria família, vizinhos ou amigos. Na maior parte dos casos, estas pessoas precisam de ser apoiadas, através da descentralização de apoio, por exemplo, por equipas multidisciplinares no domicílio, ou criação de apoios que em proximidade consigam, ligados aos cuidados de saúde primários, ligados à parte social, fazer a ligação com este cuidador informal, nos diferentes níveis de cuidados de saúde e sociais. E estas pessoas, que muitas vezes estão ainda a trabalhar, têm de ter quem as ajude, para aprenderem a cuidar bem dos outros e delas próprias, porque importa que, do ponto de vista físico e mental, estejam tranquilas, felizes e consigam cumprir bem aquela tarefa adicional que lhes está a ser pedida.

Daí a nossa preocupação em termos juntado às questões da literacia a qualidade de vida e a sobrecarga do cuidador informal. Claro que as pessoas que têm mais literacia em saúde têm mais qualidade de vida e têm menos sobrecarga, porque se protegem melhor. As pessoas transmitem-nos a sua preocupação, a sua angústia, a sua dor por estarem a cuidar de pessoas que têm necessidade de cuidados exigentes e sempre, porque são 24 horas/365 dias, e escrevem que se sentem perdidas, que não se sentem informadas e que não se sentem apoiadas. São esses gritos que nos devem levar a pensar como é que podemos ajudá-las. Provavelmente, existindo um estatuto para o cuidador, devemos trabalhar todos em conjunto para levar mais longe a sua implementação e levar às pessoas aquilo que precisam em cada momento das suas vidas.

HN- O que é que a surpreendeu mais?

AE- As amostras têm o significado que têm. Se vamos passar um questionário online, já sabemos que, em princípio, estamos a falar com pessoas que têm um certo nível de literacia. Se calhar aquilo que nos surpreende muito é que praticamente metade das pessoas classificam o seu acesso à informação sobre o cuidador informal como muito mau ou mau. Isto significa que não estamos a fazer o que temos de fazer, que é informar as pessoas, levar até elas aquilo que importa para as ajudar. É verdade que aquilo que as associações de doentes nos dizem, e a associação dos cuidadores informais também, é que há uma burocracia e há patamares de tal complexidade, para se aceder ao estatuto do cuidador, que a maior parte das pessoas tem muita dificuldade em navegar no processo. Se já perante pessoas que têm um certo nível de conhecimento se conclui que 50% classificam o acesso a este estatuto como muito mau ou mau, então na generalidade dos cuidadores este fenómeno aumentará significativamente.

Hoje temos acesso a um conjunto de serviços de uma forma muito mais simplificada, e a pandemia veio potenciar ainda mais esse acesso, e mesmo assim, para aceder a este estatuto, as pessoas sentem que não é fácil e que as exigências dificultam o percurso. É lamentável, porque o estatuto é para o cuidador e para a pessoa cuidada. Portanto, o que devemos fazer é facilitar, agilizar, criar canais que permitam às pessoas aceder ao estatuto que as vai ajudar.

As pessoas também dizem que não acedem ao descanso do cuidador. Descanso do cuidador é feito nas entidades de cuidados continuados. Têm uma burocracia que leva meses, para autorizar a colocação da pessoa numa dessas estruturas. Além disso, algumas das pessoas cuidadas não querem ser institucionalizadas, mesmo que por um período curto para o cuidador descansar. Mas há estratégias – por exemplo, se criarmos equipas multidisciplinares. A criação de equipas multidisciplinares de apoio no domicílio. Que essas equipas se foquem, por exemplo, na criação de relações de confiança que permitam ao cuidador ausentar-se. Que essas equipas possam ficar a apoiar durante um período. Há possibilidade de nos organizarmos nas estruturas que temos para podermos ter estas respostas conjugadamente. Não é ter apenas a resposta institucionalizada no âmbito dos cuidados continuados, é ir mais longe e trabalhar nesta possibilidade de descanso do cuidador com as tais equipas multidisciplinares, para que a pessoa possa ter momentos, dias ou períodos de descanso. São estas coisas que, existindo nas leis, estão montadas numa teia burocrática. Dificilmente o cidadão normal se consegue mexer nisto.

HN- No que é que é mais urgente trabalhar de momento?

AE- Implementar efetivamente o estatuto do cuidador. A implementação real, efetiva. O que importava era que os decisores tomassem a seu cargo a implementação. Não é no sentido paternalista. É no sentido em que este é um fenómeno que está a aumentar exponencialmente. Cada vez mais necessitamos de cuidadores, para cuidar de pessoas às vezes com doenças muito complicadas. As pessoas precisam de ser apoiadas para efetivamente beneficiarem daquilo que são os seus direitos, para poderem fazer bem o cuidado e continuarem a apoiar aqueles que necessitam.

O que eu gostaria de acrescentar é que importa dar continuidade a estes trabalhos, aprofundar, ir mais longe do ponto de vista da investigação; mas, principalmente, importa fazer. O que é importante é fazer e isso está nas mãos de quem decide a nível nacional, regional e local. Nós deixamos dúvidas, recomendações, perguntas e preocupações.

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HN/RA