HealthNews (HN) – O facto de a ministra da Saúde ter reunido primeiro com as associações de doentes (Plataforma Saúde em Diálogo e RD-Portugal) é um sinal positivo?

Jaime Melancia (JM) – Sim, sem dúvida que é. Ao longo destes anos em que andamos nestas lutas reivindicativas daquilo que são os nossos direitos enquanto utentes do sistema de saúde tem-se falado muito em pôr o doente no centro. Eu e os meus parceiros das associações de doentes temos referido como metáfora a imagem de rotunda. Parece que o doente está no centro, gira tudo à volta dele, mas não participa em nada. Ultimamente, temos assistido a uma intenção de pôr o doente realmente no centro, mas já fomos para além daquela quase obrigação de convocarem as associações de doentes para participarem nos eventos e nalgumas reuniões. Já tínhamos trabalhado com a ministra enquanto bastonária da Ordem dos Farmacêuticos e também como presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, portanto tínhamos uma boa impressão da Professora Ana Paula Martins quanto à vontade de que as associações de doentes realmente participem nas decisões em saúde. Como tal, vimos com muito agrado estas reuniões. Mas mais importante do que isso foi a vontade que vimos da parte da senhora ministra em avançar realmente com algo que para nós é muito importante.

Temos muitas preocupações nesta gestão da doença crónica, porque o nosso sistema de saúde foi criado muito à imagem da doença aguda, das urgências. Estamos muito virados para esta organização no processo e não no utente. Fala-se que quatro milhões de portugueses têm pelo menos uma doença crónica e, portanto, a doença crónica vai estar muito presente no sistema de saúde. Daí haver a necessidade de que esta reorganização tenha em atenção o doente crónico, porque é ele o grande consumidor dos recursos do sistema de saúde, e, por outro lado, também ter esta noção de que doentes crónicos bem tratados são pessoas com as mesmas capacidades do que os outros e que podem trazer um retorno para a sociedade desse investimento que é feito em tratar bem as pessoas – nos diagnósticos atempados, nos tratamentos adequados. E de uma maneira que todo o país tenha as mesmas condições de acesso a cuidados de saúde, que estão muito concentrados nas grandes cidades, Lisboa, Porto e Coimbra, e muitos dos doentes que estão fora desses grandes centros têm grandes dificuldades no acesso às consultas e, consequentemente, aos tratamentos. Esta foi uma das primeiras questões que abordámos na reunião.

HN – Nessa reunião, que preocupações e mensagens foram transmitidas à ministra Ana Paula Martins?

JM – Focámo-nos naquilo que foi já uma conquista na legislatura anterior, não diretamente da Plataforma Saúde em Diálogo, mas que também apoiamos: a criação de um grupo de trabalho para analisar um documento conduzido pela Federação Nacional das Associações de Doenças Crónicas (FENDOC), que será a base para um Estatuto do Doente Crónico. Isto vai permitir que seja tida em conta toda esta problemática, que tem que ver não só com a parte da saúde, mas também com a parte social e do trabalho. Para isso, também achamos que é importante a questão da implementação do registo único de dados em saúde. No fundo, aquilo que já está a ser trabalhado pelos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde. Esta questão foi muito recentemente aprovada no Parlamento Europeu, e em qualquer país da União Europeia vamos poder dar acesso aos nossos dados clínicos para podermos ser tratados devidamente. Tudo isto traz-nos grandes benefícios também internamente, porque tendo acesso a esses dados clínicos, tanto nas unidades públicas como nas privadas, haverá uma grande poupança de recursos com os meios de diagnóstico, que muitas vezes são duplicados sem necessidade. Isto irá facilitar a circulação dos utentes entre unidades de saúde e entre os vários níveis de cuidados, otimizando a sua jornada, evitando lapsos e redundâncias e otimizando ainda os resultados em saúde. Há uma promessa de que em 2025 estará em funcionamento. Esperemos que sim, porque isso é bom para nós, obviamente, mas também para o sistema, que ficará muito mais bem organizado com essa base de trabalho, permitindo que haja também melhores condições de acesso para os utentes do sistema de saúde.

Falou-se de outras situações também e que têm que ver com a parte da comunicação. Achamos que se comunica mal em saúde. Muitas vezes as pessoas recorrem a outros meios de informação, muito disponíveis na internet, mas cuja informação não é fidedigna. Toda a área da saúde devia comunicar numa linguagem simples, que as pessoas entendam e nos meios a que as pessoas geralmente têm acesso, consoante o público-alvo dessas mensagens. E as associações de doentes podem colaborar no desenho dessas campanhas de comunicação. É importante que haja uma comunicação boa em saúde daquilo que são os rastreios, da prevenção. É um trabalho fundamental porque vamos evitar que essas pessoas recorram mais tarde aos serviços de saúde. Também temos uma quota-parte de culpa nisso: os nossos estilos de vida têm de ser cada vez mais saudáveis para que, realmente, venhamos a ter uma longevidade saudável e não andemos a consumir recursos do sistema de saúde.

Também falámos com a ministra sobre o regime de dispensa em proximidade dos medicamentos de fornecimento hospitalar. Foi algo regulamentado no princípio deste ano e agora os hospitais têm de dar resposta de acordo com a lei porque esta é uma medida importantíssima para as pessoas. Esperamos que não sejam criadas entropias ao processo. Isto já está a ser feito em alguns hospitais, mas esperamos que agora se estenda a todos os hospitais para que todos possamos vir a beneficiar disso.

HN – Em sentido inverso, que mensagens transmitiu a ministra? Quais são as prioridades de Ana Paula Martins?

JM – A ministra ainda está a tomar conta de todas as preocupações que já vinham de trás. A Plataforma Saúde em Diálogo já estava a trabalhar com a Direção Executiva do SNS, já estava numa comissão de humanização dos cuidados de saúde, numa comissão de organização do plano de comunicação dos rastreios oncológicos para o segundo semestre. O Professor Fernando Araújo pediu-nos e nós correspondemos com uma proposta de modelo de funcionamento e composição do Conselho Consultivo da Direção Executiva do SNS. Independentemente de quem possa ficar à frente da Direção Executiva, esperamos que o trabalho que tem sido feito até agora tenha alguma continuidade, pelo menos neste aspeto da participação ativa das associações de doentes e, concretamente, da Plataforma Saúde em Diálogo nestas comissões e conselhos consultivos, para que possamos transmitir as nossas necessidades, as nossas preocupações, que podem ajudar a que a reorganização do sistema que está a ser feita com as Unidades Locais de Saúde, mais à esquerda ou mais à direita, venha em benefício de um sistema que permita que as pessoas sejam também tratadas a tempo e horas. Isso vai trazer qualidade de vida e, ao trazer qualidade de vida para os doentes, vai trazer retorno para a sociedade. Fala-se muito em gastos em saúde e pouco no retorno que isso traz para a sociedade, porque um doente bem tratado é mais produtivo, é menos absentista, as famílias são mais felizes, são mais consumidoras. Tudo isto são aspetos positivos para a sociedade e, por outro lado, também para o próprio sistema de saúde, porque não vamos ter outras comorbilidades, muitas vezes associadas às doenças crónicas, que nos levam ao hospital e trazem mais encargos para o sistema.

HN – O que esperam do novo governo e dos profissionais e instituições de saúde?

JM – Vou começar pelos profissionais de saúde. Raros são os doentes que se queixam do profissional de saúde. A queixa que mais ouvimos é o pouco tempo que o médico despende com o doente, e isso muitas vezes é fundamental para a eficácia do tratamento, para o bem-estar das pessoas, do ponto de vista não só da sua doença, mas de toda a parte da saúde mental, que hoje está muito em foco, e muito bem, porque muitas destas doenças têm sempre associado um forte estigma social ou, pelo menos, uma situação em que as pessoas muitas vezes entram em depressões, em perturbações da ansiedade, que vêm agravar a sua pouca qualidade de vida se não forem devidamente tratadas. Portanto, não é por aí. É mais pela parte da reorganização.

Eu não posso ir a um hospital para uma consulta hoje, percorrer 100 quilómetros de distância e ter de voltar amanhã para um tratamento, por exemplo. Este tipo de organização não faz sentido nenhum. As Unidades Locais de Saúde vinham melhorar um pouco isto, esta integração entre os cuidados de saúde primários e os cuidados de saúde hospitalares permitiria uma melhor sincronização de todos estes atos médicos. Aquilo que esperamos é que não voltemos à estaca zero, que readaptemos aquilo de acordo com as políticas de saúde deste novo governo, mas que não deitemos fora aquilo que foi feito até agora, que foi de alguma maneira consensual. É evidente que sentimos que há falta de médicos, de especialistas em muitos locais do país, as condições de acessibilidade dos doentes crónicos variam muito. Há bons exemplos de coisas muito bem feitas que muitas vezes há dificuldade em replicar e não conseguimos perceber porquê. O que vimos da parte da ministra, e isso deu-nos algum alento, é que ela quer ir para a frente com decisões, que os doentes estejam incluídos nestas decisões e que haja uma interação entre o Ministério da Saúde e as associações de doentes, para que se possa reorganizar as coisas pondo o doente no centro, mas que haja esta ligação entre aquilo que circula à volta e o doente, que o sistema consiga ir ao centro da rotunda interagir com os doentes.

Outro caminho que a ministra vê com bons olhos são estes centros de responsabilidade integrada (CRI). As consultas multidisciplinares são fundamentais, porque uma doença crónica tem uma série de outras comorbilidades associadas. Isso implica que todos os profissionais de saúde tenham acesso à mesma informação. Daí a importância do registo único de dados em saúde. Estes centros de responsabilidade integrada, apesar de terem sido criados na legislatura anterior, foram um grande avanço para aumentar a acessibilidade e dar resposta às listas de espera e por isso são uma aposta ganha. Foi isso que nos foi transmitido pela ministra. Isso é muito importante para os doentes crónicos.

HN – Têm um projeto na área do envelhecimento saudável, com foco na saúde mental, designado “Projeto Saúde Mental 360º Algarve”, cujo impacto será avaliado pela Escola Nacional de Saúde Pública. Em que consiste e quais são os objetivos do projeto?

JM – Vem na continuidade do projeto de inovação social anterior, que era o Espaço Saúde 360º Algarve. A Plataforma Saúde em Diálogo dispõe de um espaço no Algarve, cedido pelo Hospital de Faro, onde desenvolve, há mais de 15 anos, projetos de promoção de estilos de vida saudável e combate ao isolamento junto da população mais sénior, através da colaboração com uma série de parceiros locais, com as nossas associações de doentes e promotores de saúde. Em 2020, e aproveitando toda esta experiência no terreno e considerando as características sociodemográficas e os indicadores de saúde da região algarvia, pensámos que seria o momento de dar um passo em frente e avançar com uma candidatura ao Portugal Inovação Social. É assim que surge o ’’Espaço Saúde 360º Algarve’’, com um objetivo muito claro: dar resposta a um problema social com elevada prevalência nacional e regional, principalmente junto da população idosa vulnerável – a iliteracia em saúde, através de um conjunto de atividades de promoção da saúde e gestão da doença e de uma abordagem personalizada, integrada e centrada no cidadão, com avaliação do impacto na qualidade de vida.

Foi um projeto realizado entre setembro 2022 e junho 2023 em colaboração estreita com as autarquias locais de sete concelhos algarvios, tendo envolvido 780 cidadãos idosos que realizaram mais de 1800 atividades ao longo de mais de dois anos. Contámos ainda com 15 farmácias parcerias que realizaram cerca de 70 serviços de revisão de medicamentos aos cidadãos polimedicados que quiseram usufruir do serviço.

O projeto superou as métricas a que se propôs, tendo havido um aumento da qualidade de vida de todos os participantes (em pelo menos 5%), sendo que para aqueles que permaneceram mais tempo no projeto (24 meses) esse aumento foi superior a 10%.

Isto, claro, deu-nos ânimo para continuar com estas iniciativas no terreno e até replicá-las noutros territórios de baixa densidade demográfica, marcados por um forte índice de envelhecimento e isolamento social. Mas para isso temos sempre de ter financiamento.

Tendo em conta os resultados do anterior projeto e tendo sido identificados pela equipa casos de pessoas idosas com doença mental ou que apresentavam um risco elevado de vir a ter doença mental ou demência, pensámos que era essencial continuar a causar impacto na comunidade, dando resposta a um problema de saúde maior da população portuguesa e da população que apoiamos (idosos vulneráveis), e que se reveste de um elevado impacto social e económico – a doença mental. E foi assim que avançámos com o projeto seguinte: “Saúde Mental 360º Algarve’’, que conta, em parte, com apoio financeiro da Fundação Belmiro de Azevedo. O projeto está no terreno desde setembro e decorre até fevereiro de 2025 em três concelhos algarvios, cujos municípios também já apoiam a iniciativa. A ideia é, à luz do modelo da ‘’prescrição social’’, disponibilizar respostas de saúde mental direcionadas para a comunidade idosa vulnerável, através de atividades de capacitação e promoção do envelhecimento ativo e saudável, com foco na saúde mental (depressão, declínio cognitivo e prevenção do suicídio). No final, e com apoio da Escola Nacional de Saúde Pública, iremos avaliar o impacto da intervenção no bem-estar mental e na qualidade de vida destes participantes.

HN – Portugal tem sabido gerir os desafios do envelhecimento populacional?

JM – Faz parte de quem anda nestas lutas da representatividade dos doentes: temos sempre de nos queixar. Infelizmente, não haverá sociedades ideais. Mas também parte muito de nós não estarmos sempre à espera de que nos resolvam os problemas. Enquanto organizações da sociedade, temos de propor soluções e integrá-las. São processos complicados porque as pessoas com mais idade também são muitas vezes aquelas com maior dificuldade no acesso à informação. A comunicação é fundamental. Muitas vezes ficamos nestas bolhas urbanas e esquecemo-nos de que há pessoas que nem sequer têm um telemóvel para fazer chamadas. A integração entre a parte da saúde e a parte social é fundamental. Se nós, hoje, já fazemos o nosso IRS por meios digitais e aqueles que não podem têm uma junta de freguesia que os ajuda, têm uma ação social que os pode ajudar, na área do envelhecimento também devemos ter esta integração entre os cuidados de saúde e a ação social para que toda a gente possa ter acesso ao conhecimento. É também essencial zelar pela saúde destes cidadãos, para que preservem a sua autonomia e as suas capacidades durante mais tempo, sendo crucial a implementação de medidas capazes de preservar a capacidade de as pessoas idosas se manterem nas suas casas, com autonomia e com qualidade de vida. É uma responsabilidade do Estado zelar por isso. Há pouco falei do Estatuto do Doente Crónico. Saúde, social e trabalho: é importante que tudo isto esteja integrado para que haja uma resposta integrada também. Tudo isto é importante para que as pessoas tenham uma qualidade de vida mesmo quando estão mais idosas.

Entrevista de Rita Antunes

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