O ser-humano por natureza não gosta de mudar. Cria hábitos e, depois, segue-os porque pensar é um exercício que exige muita energia. É mais fácil afirmar “está tudo bem” e seguir com as rotinas. Se está bem, porque vamos mudar?
Idealmente gostaríamos que todos, em vez de corrermos para as urgências, ligássemos para o SNS24 ou fossemos primeiro ao Centro de Saúde.
Conhece alguém que defende e acredita no Serviço Nacional de Saúde como base de acesso à saúde, tendencialmente gratuito e, que no último ano não foi a um hospital público ou a um Centro de Saúde? Provavelmente essa pessoa terá um seguro e recorre ao SNS quando o copagamento se torna incomportável, não?
A essa pessoa eu chamo um “crente no SNS não-praticante”.
Tive a honra de participar numa convenção sobre “repensar a farmácia”. Todo o evento, as mesas de debate e intervenções foram pensadas para discutir a transformação a acontecer na sociedade e o respetivo impacto nos serviços prestados pelos Farmacêuticos. Desde as mudanças de necessidades e expectativas de consumidores, da necessidade de profissionais mais qualificados e adaptados, da sustentabilidade da distribuição e do retalho, até aos modelos de cuidados e a “desospitalização”.
A minha intervenção tentou versar que para a transformação que se prevê será necessária preparação de cultura de mudança a 3 níveis: de comunidade, de organização e política.
Primeiro e em relação à população em geral, quem gosta de ir ou de ficar num hospital? Não sei se é a comida, o cheiro, o medo de contágio ou o esforço de deslocação, seja financeiro, pessoal, familiar ou profissional. Sem falar nos mais velhos ou naqueles com mobilidade reduzida. E o impacto económico disto? Cidadãos que faltam ou usam dias de férias para se deslocar várias vezes para exames ou tratamentos ou para acompanhar familiares.
A esta transformação necessária trará menores custos e maior qualidade de vida ao cidadão chamo cultura de comunidade.
Depois, os profissionais saúde, a todos os níveis, terão de adaptar-se. Escutamos, cada vez mais, sobre alegados erros médicos, terceira causa de morte nos EUA, cidadãos a colocarem processos jurídicos, profissionais a pedirem escusa de responsabilidade, etc.
A pandemia obrigou os hospitais a ter portas e janelas abertas, menos lugares nas salas de espera. As pessoas ficaram a formar filas nos corredores ou na rua. Já agora, porque é que temos salas de espera nos hospitais?
Chamemos a esta transformação cultura de organização.
Em terceiro lugar, como está pensado o modelo de financiamento de um hospital? Desde logo, está estruturado para funcionar eficientemente em carga de 60% a 80%. Toda a evolução, ao longo de décadas, tem sido centrada na melhoria da eficiência dos serviços. Quanto custa uma cama de cuidados não-urgentes ou na urgência?
Uma pessoa com uma doença crónica estabilizada com medicação fornecida em exclusivo pelo hospital, se receber a medicação e tiver acompanhamento em proximidade aumenta a adesão à terapêutica e diminui os custos globais, por exemplo com agudização e/ou internamentos.
Qual é o incentivo para uma administração hospitalar ter menos pessoas, em hospital-de-dia? Ou menos camas ocupadas? Quanto custa a recuperação de rastreios não efetuados comparado com tratamentos de doenças graves, como cancros, em estado mais avançado? E a dívida dos hospitais à indústria farmacêutica? Alguém acredita que uma negociação hospital a hospital é mais eficiente que uma negociação centralizada?
E a esta transformação chamemos cultura política.
O modelo está desenhado para ser eficiente e estar centrado na concentração de meios, o mais próximo possível. Como uma fábrica. Com o número de doenças a crescer, a esperança de vida a crescer, a população mundial a crescer: é incomportável!
De forma geral concordamos que o SNS necessita de mudar e esperamos que isso seja por decreto. Como é que habitualmente calça os sapatos? Primeiro o esquerdo e depois o direito? Ao contrário? Experimente durante uma semana fazer o oposto do seu hábito.
A cultura de mudança faz-se de dentro para fora. É preciso criar novos hábitos. A palavra é seduzir. O SNS tem de seduzir cada pessoa de cada comunidade para que tenhamos uma nova atitude. Não basta parecer, tem mesmo de ser.
Para mudar a cultura de comunidade precisamos de seduzir a sociedade de que esta mudança trará melhor qualidade de vida. E isso vem da capacitação do cidadão das vantagens para si próprio.
Para mudar a cultura de organização precisamos de seduzir os profissionais em transformar o seu no melhor lugar para se trabalhar, a começar pela gestão de topo. E isso vem com a humanização. Um gestor não cuida de utentes. Cuida de pessoas que cuidam de pessoas que cuidam de pessoas que cuidam de utentes.
Para mudar a cultura política é preciso seduzir quem tem o poder das vantagens da digitalização. Porque pode até significar perda de poder e perda de orçamento. Digitalização não significa mega hospitais. Digitalização é interligação, interoperabilidade e trabalho em rede. Os serviços à volta do cidadão com avaliação contínua de satisfação do utente. É a perceção de valor que fará a cultura política mudar. E é no pagamento por valor que estará a transformação que necessitamos para um SNS sustentável. Sem sustentabilidade não adiantará mudar.
Se concordarmos que necessitamos de mudar e que essa mudança tem de ser estruturada, necessitamos também de concordar que algo só é urgente porque quando foi importante, não lhe demos a importância suficiente para transformar de modo estrutural. E se hoje continuarmos a atuar sobre o urgente, vamos perder a oportunidade de planear e executar de modo estrutural.
A cultura nasce dos hábitos. Construamos novos hábitos. Se começarmos hoje e repetirmos consecutivamente, estamos a criar um novo hábito. E esse é o princípio para a mudança de cultura.
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